O tráfego e o tráfico da democracia

HELDER CALDEIRA*

Venho pensando muito no que seja a Memória - em especial a nossa, dos brasileiros, tão curta! - e seus impactos no tráfego da democracia na sociedade. Aliás, no seu tráfico também, já que os sucessivos escândalos de corrupção, enraizados no coração de um governo eleito sob valores e vetores democráticos e que os utiliza para sustentar mamatas e o pseudopoderismo de uma vasta "turma de companheiros" apaniguados e desqualificados, é capaz de distorcer até a legislação vigente no país, quiçá sua administração e condução.

São tantos escândalos que a memória do cidadão não dá conta de registrar, analisar e punir os algozes da República (Res+Publica = Coisa Pública). As instituições estão prostituídas e a eficiência nunca lhes foi pilar no Brasil, permitindo a fundação de um Estado da Impunidade. E nem precisamos falar em burocracias, leniências, falta de tecnicismo, desqualificação profissional e afins.

O Supremo Tribunal Federal - que deve ser observado como independente - tenta emergir de sua distância social e aproveita a ocasião para tentar colar adesivos nos rombos que a impunidade causa ao ambiente democrático. Adesivos apenas, fique claro. Até porque, convencionou-se classificar o Mensalão como "maior escândalo de corrupção da história brasileira", sem que este, de fato, o seja.

Na verdade, trata-se do maior escândalo que é, efetivamente, apurado pelos institutos de fiscalização e controle e julgado pela Suprema Corte do país, condenando políticos de alta cúpula. Tantos outros sequer foram investigados. Há tanta corrupção em curso e outros casos, lamentavelmente, hão de vir. E o STF já avisou: não pretende julgar outras ações penais tão grandes. O tempo de julgamento, a publicidade das divergências e a pressão da opinião pública desgastaram nossos togados senhores ministros, que revelam o limiar da exaustão. Serão desmembradas e remetidas para julgamentos em instâncias inferiores. Em suma, perderão a unicidade e o foco e tenderão ao limbo e à poeira dos arquivos mortos do Judiciário.

Outrossim, quase uma reserva legal da Imprensa brasileira, investigar e denunciar os "esquemas profanos" da República passou a ser instrumento de defesa dos cidadãos. Alguns compreendem; outros condenam. Alguns participam; outros acreditam ser a ascensão do denuncismo; alguns fortalecem o espírito da liberdade de expressão; outros a reduzem, pendurando a pecha de "Quarto Poder". Nem tão longe de cada um de nós, podemos ver as várias faces do Jornalismo brasileiro: uns servem-se desse poder e dessa responsabilidade para ameaçar, locupletar e traficar democracia, construtores de atômicas bombas sociais; outros tomam a sábia decisão de construir usinas de força e fazem do seu labor pura luz. Categoricamente, estes optam por defender o tráfego da democracia.

Entre o tráfego e o tráfico, o Jornalismo talvez seja, atualmente, o maior guardião da Memória, mesmo que nossos traços socioculturais a tenham em diminuto espaço. Ainda assim, bombas ou usinas, protagonizamos aberrações. A quase unanimidade dos telejornais noturnos da última quinta-feira, 29 de novembro de 2012, reservou nada além de 1min30seg para saldar a memória do extraordinário jornalista Joelmir Beting, um mestre para a expressiva maioria dos apresentares, comentaristas e repórteres. "O tempo de tevê é caro", dizem os traficantes. A única exceção ficou por conta do Grupo Bandeirantes, que tratou de exaltar um de seus mais célebres e experientes contratados.

No dia em que Joelmir Beting tombou, foi considerado mais importante veicular o discurso de um antigo fenômeno sobre a futura Copa do Mundo no Brasil, seguido por extensa saudação ao neofenômeno dos gramados e suas indicações a prêmios internacionais pela realização de gols extraordinários. À Memória do mestre jornalista e seus 55 anos de ininterrupta e brilhante carreira, restaram 1min30seg. Discreto e amante do futebol, é provável que Joelmir Beting fizesse alguma piada sobre o episódio.

Fosse a Memória tão valorizada na sociedade quanto o futebol, talvez tivéssemos algum futuro a celebrar. Traficantes ou condutores, bombas ou usinas, será sempre importante que os jornalistas revejam e mensurem seu papel na sociedade. Será um "gol de placa" a favor da democracia.

(Este artigo é especialmente dedicado à Memória da "usina de forças" JOELMIR BETING [1936-2012])

Escritor, Jornalista a Apresentador de TV

www.ipolitica.com.br - helder@heldercaldeira.com.br

*Autor do best-seller "A 1ª PRESIDENTA" (Editora Faces, 2011, 240 páginas) e Jornalista e Comentarista Político da REDE RECORD, onde apresenta o "iPOLÍTICA". Acaba de lançar seu primeiro romance de ficção: "ÁGUAS TURVAS" (Editora Faces, 2012, 278 páginas).


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Timothy Bancroft-Hinchey