Literatura pernambucana: Um prefácio e Seis Contos
Não há a menor dúvida, amigos, de que existe um acordo tácito e implícito entre o prefaciador e o prefaciado. Tanto quanto os atributos dos textos analisados, sempre busca o primeiro retribuir ao segundo, de forma positiva, a gentileza do convite e da confiança depositada.
Não há a menor dúvida, amigos, de que existe um acordo tácito e implícito entre o prefaciador e o prefaciado. Tanto quanto os atributos dos textos analisados, sempre busca o primeiro retribuir ao segundo, de forma positiva, a gentileza do convite e da confiança depositada. E aí é que a vaca torce o rabo: não sendo o analisado dotado de grande capacidade literária e imaginativa, sobrará ao prefaciador o esforço hercúleo de juntar os cacos das mal traçadas linhas e estabelecer uma colagem razoável e digna.
Clóvis Campêlo
No entanto, sendo o escritor dotado de boa capacidade literária e dominador das técnicas narrativas, torna-se agradável e pertinente, ao prefaciador, criar o seu texto apresentativo e paralelo, sem medo nenhum de ser feliz. De uma forma ou de outra, escrever prefácios é construir linhas de cumplicidades e parcerias.
No caso de Marcos Godoy, que além de amigo, colega de trabalho e companheiro de literatura, é um escritor competente e já reconhecido na sua labuta de escreviver, a tarefa a nós imposta, apesar da imensa responsabilidade, tornou-se muito mais um prazer do que uma obrigação. Não há como negar a sua competência na construção textual e narrativa.
No conto chamado de A confissão, mas que bem poderia ser chamado de A vingança, já podemos observar as opções técnicas por ele escolhidas para definir as bases do seu texto. Narrado na primeira pessoa, mostra-nos o que alguns estudiosos do assunto chamam de narrador autodiegético, personagem principal e que relata as suas experiências pessoais. A predominância da descrição em muitos momentos das histórias, como o fizeram todos os grandes autores do Realismo, leva-nos a entender a preocupação de Godoy com a verossimilhança. Sendo os contos narrados o resultado das histórias que escutava do seu pai, segundo o que o próprio autor nos revelou, nada mais justo do que preocupar-se com a contextualização e com a sua inserção em ambientes reais. O conto, aliás, que bem poderia ter acontecido em Serra Talhada, cidade natal do autor, situada a 415 quilômetros do Recife e uma das mais importantes do sertão pernambucano, conta a história da peça pregada pelo autor em Zé das Cabritas, sertanejo esperto mas crédulo na sua fé religiosa, obrigando-o a pagar uma penitência exagerada em função da sua confissão ao falso padre. Descoberta a farsa, pacientemente, Zé das Cabritas aguardou anos até surgir a oportunidade de dar o troco, fazendo com que o narrador literalmente entrasse numa fria.
No conto O estranho mundo de Doralice, a história começa em media res, com os acontecimento anteriores ao início da narrativa sendo resgatados pela memória do narrador. Esse artifício utilizado faz com que o fatos ocorridos anteriormente ao início da narrativa sejam trazidos ao presente através de flash-backs e analepses, provocando uma mudança no plano temporal. Esse artifício narrativo, aliás, é usado em profusão pelo autor em vários momentos desta e de outras narrativas deste livro. Talvez, numa tentativa de criar um jogo interpretativo com o leitor, quebrando um pouco da sua inércia diante do texto. Nesse sentido, outro recurso também muito utilizado são as digressões. São pequenas histórias, observações ou descrições acrescentadas ao texto principal e que nem sempre tem necessariamente a ver com ele, afastando do leitor a atenção momentânea sobre as ações da história principal.
No caso específico de O estranho mundo de Doralice, serve-nos de exemplo o episódio da anciã octogenária que discute com o dono da padaria por causa de divergências no valor da sua caderneta mensal.
De uma maneira geral, poderíamos considerar ainda o uso pelo autor do discurso direto livre como uma forma de interpor um personagem qualquer entre o narrador e o leitor. Se há algo interessante a ser dito, que o narrador saia de cena e fale o personagem. É a própria Doralice quem se expressa diretamente ao afirmar que precisa dormir para sonhar, para fugir de realidade da sua vida insatisfatória, para criar a utopia que insiste em perseguir e que a faz suportar a desventura da sua vida.
No conto O cangaceiro, ao contrário do que o título poderia supor (mais uma atitude lúdica do autor?), não é o cangaceiro Jesualdo Ibiapino da Silva, o Tenente Atropelo, que figura como protagonista da história. Durante toda a narrativa o anti-herói mantém-se fora da moldura da história, aparecendo apenas no final, envolto numa nuvem de poeira, que o traz à cena e, do mesmo modo, o leva de volta aos bastidores. Só reaparece no final do conto, com a sua morte anunciada numa notícia de jornal. Ele, que durante a vida matara tanta gente com crueldade, morre em consequência de um câncer no pulmão, provocado pelo cigarro que tanto lhe aprazia. Ironicamente, o cigarro e os fósforos que salvaram o personagem Joel, no encontro casual com o cangaceiro, são os elementos responsáveis pela doença causadora da sua morte. Nesse texto, fica latente as situações de "distraimento" do leitor pelas artimanhas narrativas do autor. Aqui, os personagens pouco falam, imperando a voz do narrador. Afinal, não seria de bom tom lhes dar voz e facilitar a leitura e interpretação do texto por parte dos leitores.
No que tange aos cigarros, em um tempo onde verificamos a sua demonização e tentativa de exclusão social, permitindo-me também uma digressão, lembro da história de Clayton, amigo da juventude, que, assim como Joel livrou-se da morte por acender o cigarro do cangaceiro, escapou da morte por sair da parada de ônibus onde se encontrava para comprar cigarros em um fiteiro. A parada ficava em frente a um sobrado antigo que desabou matando as outras pessoas que lá se encontravam. Para Clayton, como não cansava de afirmar, o cigarro salvara a sua vida.
O conto O Advogado Baiano é narrado na terceira pessoa e repete o cenário interiorano referenciado nas histórias anteriores: a mesma calmaria, a mesma arrumação, a mesma praça, os mesmos bancos. As horas passam perceptíveis, realçando a rotina do local. De novidade, apenas o novo coreto a ser inaugurado e o personagem recém-chegado, com ares ilustres de personalidade importante a ser apresentada. Aliás, como que demonstrando antecipadamente que a narrativa se encaminharia para um desfecho hilário e cômico, o narrador chega a compará-lo com o personagem de Clark Gable, no filme Aconteceu Naquela Noite. O final da história, porém, além de completamente inusitado, joga por terra todo o glamour da figura do jovem advogado e mostra com humor até onde pode chegar a ganância e a ambição humana.
O conto A Flor e o Espinho destoa de todos os outros anteriores. Primeiramente, como o diz o próprio narrador, porque aconteceu numa aldeia distante, distante das terras e dos dias de hoje. Ou seja, o tempo da narração é posterior ao tempo da narrativa. Do mesmo muda o cenário do acontecimento narrado. Não mais temos como palco as terras secas e áridas do sertão. Agora, estamos numa floresta úmida e perfumada. No que tange à construção do texto e da história, somem as descrições realistas e, em seu lugar, surgem as metáforas românticas, sugerindo ao leitor que chegara a horas de ser contada uma história de amor. Na verdade, um amor trágico, bem ao sabor dos românticos, destruído pela rigidez das convenções sociais que regiam aquela comunidade e aquele povo.
Narrado na primeira pessoa, Sobre Amores e Amigos é um conto pessoal e introspectivo. O narrador/personagem volta-se para dentro de si e apenas faz referências espaciais externas para se contextualizar. Debruçado sobra a larga janela, observa as pessoas e o mundo sem se deixar contagiar. Uma mulher que passa sob a chuva, vestida como se fosse para a missa, com uma sombrinha chinesa e sapatos de duas cores é uma figura interessante mas sem nenhuma influência no seu conflito interno. Ela a observa, mas logo a esquece.
Duas palavras destacam-se no primeiro parágrafo pela repetição: começo e vazio, que denunciam o imenso sentimento de solidão no qual o narrador/personagem está submerso.
A introspecção do texto reflete diretamente na sua forma narrativa: é a voz do narrador que predomina. O discurso direto livre aparece apenas duas vezes, de forma curta, em telefonemas equivocados que demonstram a sua inutilidade. E é voltando-se para dentro de si mesmo, das suas memórias e conjecturas, que o narrador/personagem irá procurar e reconstituir o seu equilíbrio emocional no aqui e no agora.
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