[Introdução] Em meados dos anos 80, Jean-Bertrand Aristide era um jovem padre paroquial que trabalhava em um bairro pobre e conflituoso de Porto Príncipe. Corajoso defensor dos direitos e dignidade dos pobres, logo se tornou o mais amplamente respeitado porta-voz de um crescente movimento popular contra a série de regimes militares que controlaram o Haiti depois do colapso da ditadura pró-americana dos Duvalier, em 1986.
Em 1990, venceu a primeira eleição presidencial democrática, com 67% dos votos. Sentido como uma perigosa ameaça pela elite minoritária dominante do Haiti, foi derrubado por um golpe militar em setembro de 1991. Conflitos com essa mesma elite e suas legiões, apoiada por seus poderosos aliados nos EUA e França, tem marcado toda a trajetória política de Aristide: depois de conquistar uma esmagadora vitória nas eleições de 2000, seus inimigos lançaram uma campanha de propaganda massiva para caracterizá-lo como violento e corrupto. A resistência estrangeira e da elite local por fim culminaria em um segundo golpe contra ele, na noite de 28 de fevereiro de 2004. Amigo e politicamente aliado de Thabo Mbeki, da ANC, Aristide foi para um relutante exílio na África do Sul, onde permanece até os dias de hoje.
Desde sua expulsão do Haiti, há três anos, seus simpatizantes têm sofrido o mais brutal período de opressão violenta na história recente do país. De acordo com as melhores estimativas disponíveis, talvez 5.000 deles tenham morrido pelas mãos do regime apoiado pelos EUA e ONU, que, em março de 2004, suplantou o governo constitucional. Apesar de a situação permanecer tensa e de as tropas da ONU continuarem ocupando o país, o auge desta violência veio a acontecer em fevereiro de 2006, quando René Préval, antigo primeiro ministro de Aristide e aliado, que o sucedeu como presidente em 1996 foi reeleito por esmagadora vitória após outra extraordinária campanha eleitoral.
Apelos para o retorno imediato e incondicional de Aristide continuam a polarizar a política haitiana. Muitos analistas, assim como alguns importantes membros do governo atual reconhecem que, se a constituição permitisse a Aristide candidatar-se novamente a uma reeleição, ele venceria facilmente.
Peter Hallward: O Haiti é um país profundamente dividido e você tem sido sempre um personagem profundamente conflituoso. Para a maioria dos numerosos observadores simpatizantes dos anos 90 era fácil entender essa divisão mais ou menos em função de critérios de classe: você foi demonizado pelos ricos e idolatrado pelos pobres. Então, as coisas começaram a ficar mais complicadas. Certos ou errados, ao final da década, muitos dos que originalmente o apoiavam passaram a ficar mais céticos e seu segundo governo (2001 - 2004), do início ao fim, foi implacavelmente perseguido por acusações de violência e corrupção. Apesar de, em todas as medidas possíveis, você permanecer folgadamente como o político mais confiável e popular entre o eleitorado haitiano, parece que você tem perdido muito do apoio que gozava entre partes da classe política, dos trabalhadores, ativistas, intelectuais e outras, tanto no país como no exterior. Muitas de minhas questões referem-se a essas acusações, especialmente a de que, com o passar do tempo, você fez concessões ou abandonou muitos de seus ideais originais. Para começar, gostaria de retornarmos brevemente a um território familiar e perguntar sobre o processo que o conduziu ao poder em 1990. O final dos anos 80 foi um período muito reacionário na política mundial, especialmente na América Latina. Como você explica a considerável força e resistência do movimento popular contra a ditadura no Haiti, movimento que passou a ser conhecido como "Lavalas" - palavra que em creóle significa "inundação", ou "avalanche", assim como "multidão", ou "todos juntos"? Como você explica que, apesar das circunstâncias, e certamente contra os interesses dos EUA, dos militares e de todo o poder que dominava o Haiti, você conseguiu vencer as eleições de 1990?
Jean-Bertrand Aristide: Grande parte do trabalho já tinha sido feito por pessoas antes de mim. Refiro-me a pessoas como Padre Antonio Adrien e seus companheiros, e Padre Jean Marie Vincent, que foi assassinado em 1994. Eles haviam desenvolvido uma visão teológica progressista que refletia as esperanças e expectativas do povo haitiano. Já em 1979, eu estava trabalhando no contexto da Teologia da Libertação. Há uma frase em particular que ficou marcada em minha mente e que pode ajudar a resumir meu entendimento da situação naquela época. Você deve lembrar-se de que a Conferencia de Puebla aconteceu no México, em 1979, e naquele tempo muitos teólogos da libertação estavam trabalhando sob severas restrições, ameaçados e impedidos de participar. O slogan que ao qual estou me referindo dizia algo como "si el pueblo no va a Puebla, Puebla se quedara sin pueblo" - se o povo não vai a Puebla, Puebla ficará sem povo.
Em outras palavras, o povo é para mim o próprio centro de nossa luta. Não se trata de lutar pelo povo, em nome do povo, à distância do povo; é o povo, ele mesmo, que está lutando. Trata-se de lutar com o povo e no meio do povo.
Isso leva a um segundo princípio teológico, que Sobrinho, Boff e outros entenderam muito bem. A teologia da libertação somente pode ser uma etapa de um processo mais abrangente. Esta etapa, na qual nós temos que começar falando em nome dos pobres e oprimidos, tem fim assim que eles comecem a falar com sua própria voz e com suas próprias palavras. O povo começa a assumir seu próprio lugar na cena pública. A teologia da libertação dá lugar, então, à libertação da teologia. O processo completo leva-nos longe do paternalismo, de toda noção de um "saber" que poderia vir a conduzir o povo e resolver seus problemas. Os padres que eram inspirados pela teologia da libertação naquele tempo entendiam que nosso papel era acompanhar o povo, e não tomar o lugar dele.
No Haiti, a emergência do povo como força pública organizada, como consciência coletiva já tinha começado nos anos oitenta, e, por volta de 1986, essa força era forte o suficiente para afastar a ditadura Duvalier do poder. Foi um movimento da base popular, e não um projeto piramidal, dirigido por um único líder ou uma só organização. Também não foi apenas um movimento político. Ele tomou forma, sobretudo através da construção de numerosas pequenas comunidades eclesiais de base, ou "ti legliz", por todo o país. Foram essas comunidades que desempenharam um papel histórico decisivo. Quando fui eleito presidente, não se tratava somente de um cargo estritamente político, da eleição de um político, de um partido político convencional. Não! Tratava-se da expressão de um grande movimento popular, da mobilização do povo como um todo. Pela primeira vez o Palácio Nacional tornou-se um lugar não só de políticos profissionais, mas para o povo, ele mesmo. O simples fato de permitir-se a pessoas comuns entrarem no palácio, o simples fato de serem bem vindas pessoas das camadas mais pobres da sociedade haitiana no coração central do poder tradicional - isto já foi um gesto profundamente transformador.
PH: Você hesitou por algum tempo antes de aceitar colocar-se como candidato naquelas eleições de 1990. Você estava perfeitamente consciente de como, considerando-se as relações das forças existentes, a participação nas eleições poderia enfraquecer ou dividir o movimento. Olhando para trás agora, você ainda pensa que foi a coisa certa a fazer? Haveria alguma alternativa viável àquela de seguir a via parlamentar?
JBA: Eu sou inclinado a pensar a história como um processo de cristalização de diferentes tipos de variáveis. Algumas delas são conhecidas, outras não. As variáveis que nós conhecíamos e entendíamos naquele tempo eram bastante claras. Nós tínhamos uma idéia do que éramos capazes e também sabíamos que aqueles que buscavam manter o status quo tinham inúmeros meios à disposição. Eles tinham toda sorte de estratégias e mecanismos - militares, econômicos, políticos... - para desorganizar qualquer movimento que desafiasse sua continuidade no poder. Mas nós não podíamos saber exatamente como eles se serviriam destes meios. Eles mesmos não poderiam saber. Estavam acompanhando atentamente a forma como o povo lutava para inventar modos de organizar a si mesmo, modos de promover efetivamente este desafio. Isso é o que eu penso acerca de variáveis desconhecidas: o movimento popular estava em processo de ser inventado e desenvolvido, sob pressão, no campo de batalha, e não havia meios de saber de antemão que contra-ataque eles iriam provocar. Agora, dado o equilíbrio desses dois tipos de variáveis, eu não podia voltar atrás. Não recuei em nada. Em 1990, fui convocado por outros no movimento a aceitar a cruz que tinha caído sobre mim. Foi nesses termos que o Padre Adrien descreveu isso e foi assim que eu entendi: eu deveria aceitar o fardo daquela cruz. "Você está no caminho do Calvário", ele disse, e eu sabia que ele estava certo. Quando recusei isso, no início, Monsenhor Willy Romélus, em quem eu depositava muita confiança, como elder e conselheiro, insistiu que eu não tinha escolha. "Sua vida não pertence mais a você", ele disse, "Você a ofereceu em sacrifício ao povo. E agora que uma missão concreta se apresenta a você, agora que você se encontra frente a essa convocação especial, de seguir Jesus e carregar sua cruz, reflita cuidadosamente antes de voltar atrás. Isto era o que eu sabia, e sabia muito bem, então. Foi uma espécie de caminho do Calvário. E assim que decidi, aceitei este caminho tal como ele seria, sem ilusões, sem enganar-me a mim mesmo. Nós sabíamos perfeitamente bem que não seríamos capazes de mudar tudo, que não seríamos capazes de corrigir cada injustiça, que iríamos trabalhar sob severas restrições, e assim por diante.
Suponha que eu dissesse não, que não aceitasse ser candidato, como as pessoas iriam reagir? Entendo agora o eco de certas vozes que perguntavam: "Vamos ver agora se você tem a coragem de tomar essa decisão. Vamos ver agora se você não passa de um covarde para aceitar essa tarefa. Você, que tem proferido os mais belos sermões, o que vai fazer agora? Vai abandonar- nos, ou vai assumir essa responsabilidade de modo que juntos possamos seguir em frente?" E eu pensei sobre isso. Qual a melhor maneira de colocar em prática a mensagem do evangelho? O que eu deveria fazer? Eu lembro como respondi a essa questão, quando, alguns dias antes da eleição de 1990, fui a uma manifestação pelas vítimas do massacre da Viela de Vaillant, no qual vinte pessoas foram mortas pelos Macoutes, no dia das eleições canceladas de 1987. Um estudante perguntou-me: "Padre, o senhor pensa que poderá mudar sozinho essa situação tão corrupta e injusta?" E eu, em resposta, disse-lhe: "Para chover, é necessária uma, ou muitas gotas de chuva? Para uma inundação, basta um fiozinho de água, ou a torrente de um rio? E eu agradeci a ele por dar-me a chance de apresentar nossa missão coletiva na forma dessa metáfora: não será sozinhos, como gotas de chuva, que você e eu conseguiremos mudar essa situação, mas juntos, como uma inundação ou uma torrente, "lavalassement", que iremos transformá-la, saná-la, sem ilusão de que isso será fácil ou rápido.
Então, haveria alternativas? Acho que não. No entanto, estou seguro de que havia uma oportunidade histórica, e de que nós demos uma resposta histórica, uma resposta que transformou a situação, um passo na direção certa.
Naturalmente, fazendo isso, provocamos uma reação. Nossos oponentes responderam com um golpe de estado. Primeiro, a tentativa de golpe de estado de Roger Lafontant, em janeiro de 1991, e, como ele falhou, o golpe de 30 de setembro de 1991. Nossos oponentes tinham sempre meios desproporcionalmente poderosos de reprimir o movimento popular. Nenhuma simples ação ou decisão poderia mudar isso. O que importa é que nós tínhamos dado um passo adiante, um passo na direção certa, seguido de outros passos. O processo que começou naquele época ainda é forte, apesar de tudo, ainda é forte, e eu estou convencido de que ele virá somente a se fortalecer ,e que, no fim, ele irá prevalecer.
PH: O golpe de setembro de 1991 aconteceu apesar do fato de as políticas concretas que você aplicou, quando estava no poder, terem sido muito moderadas, muito prudentes. Teria sido um golpe inevitável, então? Apesar do que você fez ou não fez, bastaria que a simples presença de alguém como você no Palácio Presidencial fosse inaceitável para a elite haitiana? E, neste caso, o que mais poderia ser possível fazer para prever e resistir aos violentos contra-ataques?
JBA: Bom, essa é uma boa questão. Eu entendo a situação do seguinte modo: o que aconteceu em setembro de 1991 aconteceu também em fevereiro de 2004 e poderia facilmente ocorrer novamente no futuro, sempre que a oligarquia que controla os meios de repressão venha a empregá-los para manter uma versão oca de democracia. Essa é sua obsessão: manter uma situação que poderia ser chamada de democrática, mas que, de fato, consiste em uma democracia importada e superficial, controlada de cima para baixo. Eles têm sido capazes de manter essa situação por um longo tempo. O Haiti é independente há 200 anos, mas nós agora vivemos num país onde um por cento da população controla mais que a metade da riqueza. Para a elite, trata-se de estarmos nós contra eles, de procurar um modo de preservar as desigualdades massivas que afetam cada faceta da sociedade haitiana. Nós estamos submetidos a uma espécie de apartheid. Mesmo depois de 1804, a elite tem feito o possível para manter as massas à margem, no outro lado dos muros que protegem seus privilégios. É a isso que nós somos contra. É a isso que qualquer democracia genuína é contra. A elite fará tudo que puder para certificar-se de que controla um presidente fantoche, que controla um parlamento fantoche. Ela fará o que for preciso para proteger o sistema de exploração do qual seu poder depende. A sua questão deve ser colocada em relação a esse contexto histórico, em relação a essa profunda e considerável permanência.
PH: De fato, mas nesse caso, o que fazer para confrontar o poder dessa elite? Qual a melhor maneira de enfrentar essa violência se, afinal, ela é preparada para usar violência a fim de conter qualquer verdadeira ameaça a sua hegemonia? Apesar da força do movimento popular que o conduziu ao poder, ele não teve força suficiente para conseguir mantê-lo lá, em face à violência que isso desencadeou. As pessoas às vezes comparam-no a Toussaint L`Ouverture, que conduziu seu povo à liberdade e obteve vitórias extraordinárias, conquistadas sob condições extraordinariamente difíceis. Mas Toussaint é também freqüentemente criticado por não ter ido muito longe, por não ter conseguido romper com a França, por não ter conseguido fazer o bastante para manter o apoio do povo. Foi Dessalines quem conduziu a batalha final pela independência e quem pagou o preço daquela batalha. O que você tem a responder aos que dizem (como Patrick Elie, por exemplo, ou Bem Dupuy) que você foi muito moderado, que você agiu como Toussaint numa situação que, de fato, exigia um Dessalines? O que você tem a dizer aos que afirmam que você depositou muita confiança aos EUA e a seus aliados domésticos?
JBA: Bom... [risos]. "Muita confiança nos EUA", isso me faz rir... Em minha humilde opinião, Toussant L`Overture, como homem, tinha suas limitações. Mas ele deu o melhor de si e, na verdade, não fracassou. A dignidade que ele defendeu, os princípios que ele defendeu, continuam a inspirar-nos até hoje. Ele foi capturado, fisicamente foi preso e morto, sim, mas Toussaint ainda está vivo. Seu exemplo e seu espírito nos guia sempre. Hoje, a luta do povo haitiano é uma extensão de sua campanha pela dignidade e liberdade. Nesses dois últimos anos, de 2004 a 2006, o povo continua a lutar por sua dignidade e recusa-se a ajoelhar-se, recusa-se a se render. Em 6 de julho de 2005, Cité Soleil foi atacada e bombardeada, mas esse ataque, assim como muitos outros similares, não desencoraja o povo em insistir para que suas vozes sejam ouvidas. Eles denunciam a injustiça. Eles votaram para a presidência em fevereiro, e isso também foi uma demonstração de sua dignidade; eles não aceitam mais a indicação de outro presidente de cima para baixo. Esta simples insistência na dignidade é, ela mesma, um mecanismo de mudanças históricas. O povo quer ser o sujeito de sua história, não seu objeto. Assim como Toussaint foi o sujeito de sua história, assim também o povo haitiano tomou e estendeu sua luta, como sujeito de sua história. Mais uma vez, isso não significa que a vitória é inevitável ou fácil. Isso não significa que nós podemos resolver cada problema, ou ainda, que, depois de tratarmos de um problema, aqueles poderosos interesses particulares não irão levar a que se tente todo o possível para desfazer os avanços.
No entanto, alguma coisa irreversível aconteceu. Alguma coisa que fez seu caminho através da consciência coletiva. Esse é precisamente o significado real da famosa afirmação de Toussaint, assim que ele foi capturado pelos franceses, que eles tinham cortado o tronco da árvore da liberdade, mas suas raízes permaneciam profundas. Nossa luta pela liberdade encontrará muitos obstáculos, mas ela não perderá suas raízes. Ela está firmemente enraizada na mente do povo. O povo é pobre, certamente, mas nossas mentes são livres. Nós continuamos a existir como povo, com base nessa tomada de consciência inicial, dessa consciência fundamental do que nós somos. Não é por acaso que quando vieram a escolher um líder, esse povo, essas pessoas que foram mantidas tão pobres e tão marginalizadas pelos poderosos, tenham escolhido, não um político, e sim, um padre. Os políticos deixaram-nos sucumbir. O povo estava procurando por alguém com princípios, alguém que falasse a verdade. De certo modo, isso seria mais importante que sucesso material ou uma pronta vitória sobre nossos adversários. Esse é o legado de Toussaint.
Quanto a Dessalines, a luta que ele conduziu foi a luta armada, foi uma luta militar, e necessária, pois ele tinha que romper as correntes da escravidão de uma vez por todas. Ele conseguiu. Mas será que ainda precisamos levar essa mesma luta, da mesma forma? Penso que não. Dessalines estava errado em lutar daquele modo? Não. Mas nossa luta é diferente. É Toussaint e não Dessalines quem pode ainda acompanhar o movimento popular nos dias de hoje. Sua inspiração conduziu à vitória nas eleições de fevereiro de 2006, que permitiu ao povo manobrar seus adversários para escolher seu próprio líder, contra a vontade do poder constituído.
Para mim isso abre para um ponto mais geral. Nós depositamos muita confiança nos norte-americanos? Fomos muito dependentes de forças externas? Não. Nós simplesmente tentamos permanecer lúcidos e evitar a demagogia fácil. Seria mera demagogia por parte de um presidente haitiano pretender ser mais forte que os americanos, ou de engajar-se numa guerra interminável de palavras, ou opor-se a eles por puro prazer. A única maneira racional de seguir é refletir bem sobre o equilíbrio relativo entre os interesses, compreender o que os americanos querem, lembrarmos do que queremos e avançarmos o possível sobre os pontos de convergência existentes. Vejamos um exemplo concreto: em 1994, Clinton precisava de uma vitória na política externa, e o retorno da democracia no Haiti apresentou-se a ele como uma oportunidade. Nós precisávamos de um instrumento para vencer a resistência do exército haitiano assassino, e Clinton ofereceu-nos esse instrumento. Isso é o que quero dizer por atuar pelo espírito de Toussaint L'Ouverture. Nós nunca tivemos nenhuma ilusão de que os americanos partilhavam de nossos objetivos fundamentais, sabíamos que eles não queriam caminhar na mesma direção, mas sem os americanos nós não poderíamos ter restaurado a democracia.
PH: Não havia nenhuma outra opção, nenhuma alternativa a não ser recorrer às tropas americanas?
JBA: Não. O povo haitiano não está armado. É claro que há alguns criminosos e malandros, alguns traficantes de drogas, algumas gangues que têm armas, mas o povo não tem armas. Você está enganando a si mesmo se pensa que o povo pode partir para uma luta armada. Nós temos que olhar a situação nos olhos: o povo está desarmado e nunca terá tanto armamento como seus inimigos. É inútil meter-se numa luta na área dos seus inimigos ou jogar o jogo deles. Você perderia.
PH: Você não teria pagado um preço muito alto pelo apoio americano? Eles o forçaram a fazer todo tipo de acordo, a aceitar muitas das coisas que você sempre se opôs: um rígido plano de ajustamento estrutural, de políticas econômicas neoliberais, a privatização das empresas públicas, etc. O povo haitiano sofreu muito sob essas restrições. Deve ter sido muito difícil engolir estas coisas durante as negociações de 1993.
JBA: Certamente, mas você tem que fazer a distinção entre a luta, por um lado, como princípio, a luta para persistir na opção preferencial pelos pobres, que para mim foi inspirada na teologia e é uma questão de justiça e verdade e, por outro, sua luta política, que se conduz por regras diferentes. Conforme sua versão de política você pode mentir e trapacear se isso permitir que consiga seus objetivos estratégicos. A acusação de que havia armas de destruição em massa no Iraque, por exemplo, foi uma flagrante mentira. Mas a partir do momento em que foi um útil caminho para atingir seus objetivos, Colin Powell e companhia tomaram esse rumo.
Quanto ao Haiti, voltando a 1993, os americanos aceitaram com prazer um plano econômico negociado. Quando eles insistiram, através do FMI e de outras instituições financeiras internacionais, na privatização das estatais, eu estava preparado para concordar, a princípio, se necessário - mas recusei-me em simplesmente vendê-las, incondicionalmente, a investidores privados. A corrupção no setor estatal era inegável, mas havia muitas diferentes formas de abordar essa corrupção. Ao invés de privatização sem limites, eu estava pronto para concordar com uma democratização dessas empresas. O que isso significa? Significa uma ênfase na transparência. Significa que alguns dos benefícios de uma fábrica ou uma empresa deveriam ser partilhados entre as pessoas que trabalham para ela. Significa que alguns desses benefícios deveriam ser investidos em coisas como, escolas locais, clínicas de saúde, de modo que os filhos dos trabalhadores possam receber algum benefício proveniente de seu trabalho. Significa criar condições em nível micro que são coerentes com os princípios que queremos guiar o desenvolvimento em nível macro. Os americanos disseram "tudo bem, sem problemas".
Nós assinamos aqueles tratados, e estou em paz com minha decisão até hoje. Eu disse a verdade, ao passo que eles o assinaram em um espírito diferente. Eles o assinaram porque com isso poderiam facilitar meu retorno ao Haiti e assim arranjar a vitória na política externa, mas, assim que eu voltei ao governo, eles já haviam deixado planejada a renegociação dos termos da privatização. E foi exatamente isso que aconteceu. Eles começaram a insistir na privatização sem limites e, novamente, eu disse não. Quiseram então desfazer nosso acordo, e então, lançaram uma campanha de desinformação para fazer parecer que eu não cumpri com a palavra. Isso não é verdade. Os acordos que nós criamos estão lá. As pessoas podem julgar por elas mesmas. Infelizmente nós não tínhamos os meios para vencer a guerra de relações públicas. Eles ganharam a batalha das comunicações, espalhando mentiras e distorcendo a verdade, mas eu ainda sinto que nós ganhamos a batalha real, pois a verdade está conosco.
PH: E quanto à sua batalha com o exército do Haiti, o mesmo que o derrubou em 1991? Os americanos refizeram esse exército de acordo com suas próprias prioridades de 1915 e desde então ele tem atuado como uma força para a proteção daquelas prioridades. Você foi capaz de desmobilizá-lo a poucos meses de seu retorno, em 1994, mas o modo como isso foi feito permanece controvertido, e você não foi capaz de desmobilizar e desarmar completamente os próprios soldados. Parte deles voltou a persegui-lo vingativamente, durante seu segundo mandato.
JBA: Novamente, não tenho nenhum arrependimento em relação a isso. Foi absolutamente necessário dissolver o exército. Nós tínhamos um exército de aproximadamente 7.000 soldados, e isso absorvia 40% do orçamento nacional. Desde 1915 ele tinha servido como exército de ocupação interna. Ele nunca enfrentou um inimigo externo. Por que necessitaríamos de um exército como esse, ao invés de uma força policial adequadamente treinada? Nós fizemos o que deveria ser feito. De fato, nós organizamos um programa social para a reintegração de militares desmobilizados, já que eles também são membros da comunidade nacional. Eles também tinham o direito de trabalhar e o estado tinha a responsabilidade de respeitar esse direito. Ainda mais que, você sabe, se eles não encontrassem trabalho, seriam mais facilmente tentados a recorrer à violência ou ao crime, como foram os Tontons Macoutes antes deles. Nós fizemos o melhor que pudemos. O problema não vinha do nosso programa de integração e desmobilização, veio com o descontentamento daqueles que estavam determinados a preservar o status quo. Eles estavam cheios de dinheiro e armas e trabalhavam mão a mão com a máquina militar mais poderosa do planeta. Era fácil para os americanos cooptar quaisquer antigos soldados, treiná-los e equipá-los na República Dominicana e usá-los para desestabilizar o país. Foi exatamente isso o que eles fizeram, mas, eu insisto, não foi um erro desmobilizar o exército. A situação não foi assim, como se nós pudéssemos ter evitado o segundo golpe, o golpe de 2004 se tivéssemos mantido o exército. Ao contrário, se o exército tivesse permanecido intocável, então René Préval nunca teria terminado seu primeiro mandato (1996- 2001), e eu certamente não teria sido capaz de resistir por três anos, de 2001 a 2004.
Agindo desse modo, trouxemos luz sobre o verdadeiro conflito que estava em jogo aqui. Como você sabe, a história do Haiti é pontuada de uma longa série de golpes de estado. Mas, ao contrário dos golpes precedentes, o golpe de 2004 não foi uma ação do "exército" haitiano agindo sob as ordens de nossa pequena oligarquia, em acordo com os interesses estrangeiros, como aconteceu muitas vezes, tal como no golpe de 1991. Não. Desta vez esses poderosos interesses tiveram que fazer o trabalho, eles mesmos, com suas próprias tropas e em seu próprio nome.
PH: Uma vez que Chambleim e seu pequeno bando de rebeldes foram barrados na periferia de Porto Príncipe e não conseguiam avançar mais, os "marines" americanos entraram em ação e expulsando-o do país.
JBA: Exatamente. A verdade concreta da situação, a real contradição que orienta essa situação, finalmente vem à tona e aparece inteiramente à opinião pública.
PH: Voltemos a meados da década de 90. Por um momento, a criação do Partido Fanmi Lavalas em 1996 serviu a função similar, ajudando a revelar as linhas "de fato" do conflito interno que tinha já fraturado a pouco estruturada coalizão das forças que o levaram ao poder em 1990? Por que existiam essas grandes divisões entre você e alguns de seus antigos aliados, pessoas como Chavannes Jean-Batiste e Gérard Pierre-Charles? Quase todo o primeiro mandato de Préval, de 1996 a 200 foi assolado por ataques e oposição de Pierre-Charles e o OPL. Você passou, então, a construir um partido unificado, disciplinado, que pudesse propor e encaminhar um programa político coerente?
JBA: Não, não foi assim que as coisas aconteceram. Em primeiro lugar, por experiência e por inclinação, eu era um professor, não um político. Eu não tinha experiência em partidos políticos, e estava contente de deixar a outros a tarefa de desenvolver uma organização partidária, de treinar quadros do partido, e assim por diante. De volta a 1991, eu estava contente em deixar tudo isso a políticos de carreira, a pessoas como Gérard Pierre-Charles, e, junto com outras pessoas ele passou a trabalhar nesse sentido assim que a democracia foi restabelecida. Ele nos ajudou a fundar a "Organização Política Lavalas" - OPL, e eu estimulei que algumas pessoas se juntassem a ela. Esse partido venceu as eleições de 1995 e, no final de meu mandato, em fevereiro de 1996, ele tinha a maioria no Parlamento. Mas então, ao invés de continuar a ouvir o povo, depois das eleições, a OPL começou a dar menos atenção a ele. Começou a cair nos padrões e práticas tradicionais dos políticos do Haiti. Ele começou a ficar mais fechado em si mesmo, mais distante do povo, mais inclinado a fazer promessas vazias, e assim por diante. Eu já estava fora do poder e permaneci à distância. Mas um grupo de padres envolvidos com o movimento Lavalas sentia-se frustrado e queria restaurar uma ligação mais significativa com o povo. Eles queriam permanecer em comunhão com o povo. A partir desse momento (1996), o grupo de pessoas que se sentiam dessa maneira, que estavam insatisfeitas com o OPL, formava um grupo conhecido como "a nebulosa" - eles tinham uma posição incerta e confusa. Com o tempo, mais e mais pessoas tornavam-se descontentes com a situação.
Nós nos engajamos em longas discussões sobre o que deveríamos fazer, e Fanmi Lavalas nasceu dessas discussões. Ele surgiu do próprio povo. E mesmo quando veio a constituir-se como uma organização política, ele nunca se concebeu a si mesmo como um partido político tradicional. Se você for ver a constituição da organização vai notar que a palavra "partido" nunca é mencionada. Ele descreve a si mesmo como organização, não como partido. Por quê? Porque no Haiti nós não temos nenhuma experiência política positiva de partidos políticos. Partidos têm sempre sido instrumentos de manipulação e traição. Por outro lado, nós temos uma longa e positiva experiência de organização, de organizações populares - as "ti legliz", por exemplo.
Então, não, não fui eu que "fundei" Fanmi Lavalas como um partido político. Eu apenas dei minha contribuição à formação dessa organização, que oferecia uma plataforma aos que estavam frustrados com o partido OPL, que estavam ainda ativos no movimento mas se sentiam excluídos dele (O OPL rapidamente renomeou a si mesmo como "Organização Neoliberal do Povo em Luta"). Agora, para se efetivar, Fanmi Lavalas necessitava canalizar a experiência de pessoas que conheciam um pouco de política, pessoas que poderiam atuar como líderes políticos sem perder o compromisso com a verdade. Este é o problema mais difícil, claro. Fanmi Lavalas não tem a rígida disciplina e coordenação de um partido político. Alguns de seus membros não têm a experiência necessária para preservar ambos: o compromisso com a verdade e uma efetiva participação política. Para nós, política está profundamente relacionada à ética, esse é o ponto crucial da questão. Fanmi Lavalas não é uma organização exclusivamente política. Por isso políticos não conseguem apropriar-se e utilizar Fanmi Lavalas como trampolim para o poder. Isso nunca será fácil. Os membros do Fanmi Lavalas exigem a fidelidade de seus líderes.
PH: Essa é uma lição que Marc Bazin, Louis-Gerald Gilles e outros tiveram que aprender durante a campanha eleitoral de 2006.
JBA: Exatamente.
PH: Até que ponto Fanmi Lavalas tornou-se uma vítima de seu próprio sucesso? Como a ANC aqui na África do Sul, estava claro desde o início que Fanmi Lavalas seria mais ou menos imbatível nas eleições. Mas isso pode ter vantagens e desvantagens. Como você propõe lidar com os muitos oportunistas que imediatamente procuram se imiscuir na sua organização, gente como Dany Toussant e seus associados?
JBA: Eu deixei o poder em 1996. Em 1997, Fanmi Lavalas havia emergido como uma organização funcional, com um claro estatuto. Isso foi já um grande passo à frente em relação a 1990. Em 1990, o movimento político era demasiado espontâneo; em 1997, as coisas já eram mais coordenadas. Além da constituição, no primeiro congresso do Fanmi Lavalas nós votamos e aprovamos o programa escrito em nosso Livre Blanc: "Investir no Humano", que, eu sei, você já conhece. Esse programa não surgiu do nada. Por aproximadamente dois anos nós promovemos encontros com engenheiros, com agrônomos, com médicos, professores, e assim por diante. Nós ouvimos e discutimos os méritos de diferentes propostas. Foi um processo coletivo. O Livre Blanc não é um programa baseado em minhas prioridades pessoais ou ideologia. É o resultado de um longo processo de consulta com profissionais em todos esses domínios, e foi compilado como um verdadeiro documento colaborativo. Como o próprio Banco Mundial veio a reconhecer, ele foi um programa genuíno, um plano coerente para a transformação do país. Ele não foi um pacote de promessas vazias.
Agora, no meio dessas discussões, no meio dessa organização emergente, é verdade que você irá encontrar oportunistas, você irá encontrar futuros criminosos e futuros traficantes de drogas. Mas não era fácil identificá-los. Não era fácil descobri-los em tempo e afastá-los em tempo, antes que fosse muito tarde. Muitas dessas pessoas, antes de ganhar um assento no parlamento, comportavam-se perfeitamente bem. Mas, você sabe, para algumas pessoas o poder pode ser como o álcool: depois de um copo, dois copos, uma garrafa inteira... Você já não está lidando com a mesma pessoa. Ele deixa algumas pessoas inconscientes. Essas coisas são difíceis de prever. No entanto, eu penso que, se não houvesse intervenção das potências estrangeiras, nós seríamos capazes de fazer um avanço concreto. Nós tínhamos estabelecido métodos viáveis para a discussão colaborativa e para preservar ligações diretas com o povo. Eu penso que nós teríamos feito um avanço real, dando passos pequenos, lentos, mas seguros.
Mesmo com o embargo sobre a ajuda, nós conseguimos realizar algumas coisas. Nós fomos capazes de investir em educação, por exemplo. Como você sabe, em 1090 havia somente 34 escolas secundárias no Haiti; já em 2001 havia 138. O pouco que nós tínhamos para investir, nós investimos no rumo que indicava o programa "Investir no Humano".
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=01064f1de9dfcd9d77b14d11beefefd4&cod=5430
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