O MITO
Raul Longo
O cara era daqueles de cair na gargalhada em cabeceira de moribundo por asfixia. Tão maluco quanto ideia de arrancar dente de criancinha para não morder na hora do sexo oral. Mas fome é fome, e tudo fica nublado, transtornado.
“Transtornado o caralho!” – gritou sozinho, depois só pensando: “E daí! Não sou coveiro, mas sou canibal. Como gente!”. Gritou outra vez, pra si mesmo: “Tá com fome? Mata um homê e come!”
A moça desviou. Era daquelas que vale a pena estuprar, mas nem pintou clima. Quê clima depois que se foi o tempo em que montava moto, jet-ski? Nem pangaré mais! Nem bicicleta!
Tudo o que agora precisa é de um mito para chamar de seu, pra levantar o moral, parar de pensar em mansões e dinheiro vivo. Pra olhar ao infinito e bater continência pra bandeira dos outros! Mas a vida o transtornou num touro às avessas, touro que foge ao invés de investir contra o que apareça na arena.
Saudade do clima da ARENA! Fardas lustras, ultra brilhantes dragonas, todo mundo virando marechal. Aquele foi seu melhor tempo... Carne pendurada em pau de arara, fritada na cadeira do dragão. Tanto sangue que então nem sentia fome. Mas pegou nojo da cor. Pavor! Touro transtornado chegou a fugir de uma bandeira vermelha e só de mais longe percebeu que era propaganda da Coca Cola.
Precisava de um mito, uma arma para matar o transtorno. Transtorno se mata no tiro, na bala. Só com arma na mão se impõem liberdade pra matar o vermelho da Coca Cola. Arma mata até fome, mãe do transtorno e de um mundo que nunca acaba. Anda, anda, anda... e tudo plano. Subida é plano, descida é plano, curva é plano, reta é plano. O plano de saúde, plano econômico, o orçamento do plano e o segredo do orçamento secreto. O sigilo em 100 anos planos...
No plano da Pátria, Deus e Família, a Terra também é plana. O Universo é plano.
Não precisa mais de plano nenhum! Agora só precisa de um mito. Um mito para espantar a fome, para matar o transtorno da fome.
Cruzou a esquina sem olhar. Buzinas repetindo a Ipiranga e São João do maldito Caetano Veloso, venenoso como o preto Chico Buarque. Ou Chico Buarque é transtorno e preto é o Gilberto Gil. Quem é a Preta Gil? Não lembra mais, mas não fraquejaria se fosse filha sua. Afogava no batismo para dar exemplo evangélico.
Buzinas calando o Posto Ipiranga, transtornando a ladeira, repetindo Caetoso Velano como num eco às avessas. Ao invés de entrar, o eco saindo pelos ouvidos, de dentro da cabeça. É o transtorno da fome, mas não precisa de fome. Tudo o que precisa é de um mito e de Deus acima de tudo. Entre Deus e o mito, uma arma. “Minha especialidade é matar.” Ninguém assustou, porque só pensou, falando pra dentro.
Na vitrine do restaurante, um polvo exposto. Ou era uma estrela de pernas abertas? Estrela ou polvo, foi-se a fome. Detesta polvo, estrela e lula, sobretudo lula de polvo. Se ainda tivesse uma arma matava tudo o que era polvo no país e mundo plano. E matava lula, matava propaganda de Coca Cola.
No transtorno da fome seguiu descendo a ladeira plana e foi chegando ao Paiçandu xingando povo, estrela, e lula “Pau no cu dessas putas! Vão comprar cocaína na casa da mãe”. Quem precisa de mãe e vacina? Tudo que se precisa é de Cloroquina! Ivermectina! “Tudo verme!” – gritou, mas na evidencia do transtorno, ninguém olhou, só desviaram confirmando a conclusão que ameaçou murmurando pra dentro em sua transtornada conversa consigo mesmo: “Tudo verme! Verme se mata no tiro”.
Tudo o que transtorna precisa é de uma arma. Uma arma e o mito acima de tudo, com Deus no meio. E pátria, e família.
Levado pelo transtorno entrou na boca sem dente do Paiçandu com uma fome de mamar em chupeta de piroca, mas o que é a fome pra quem precisa de mito?
Saindo do Ponto Chic, um enorme bauru de terno e gravata passou pela mão de um “Pau no cu!” – berrou e correu. Antes de chegar à porta da igreja que na ditadura refugiou trabalhador e estudante, foi alcançado pelo PM. E tome chulapa!
No transtorno da fome cada bordoada era um carinho. O pau no cu dono do bauru correu pedindo ao policial: “Faz isso, não! O coitado só tá com fome!” Mas policial é policial e não tem perdão. Enquanto outro buscou o bauru pisado no piso plano do Paiçandu, policial cumpria a função de polícia entre carinhosas chulapas ou carinhos chulapados do tudo transtornado: “Vagabundo! Não tem vergonha de roubar sanduíche?” Bordoada de esquerda e bordoada da direita, nem deu pra pegar o sanduíche pisado no Largo do Paiçandu que o outro pau no cu quis devolver. Foi enfiado na viatura. Ligaram o eco da sirene e partiram.
“Vai comer a lavagem do xadrez!”, rosnou o da direção enquanto o do banco de carona virava atrás numa atenção de mais tapa-carícia. Gostou tanto que quis se fazer importante com a mentira que apareceu na mente em transtorno: “Pensei que era celular”. O PM enfureceu: “Tá achando que sô lulista, seu filho da puta!” E tome chulapa que de tão gostoso cheirava a chuleta. Pediu: “Bate! Bate mais!”
Policial se indignou: “É um puto esse viado!”, e já ajoelhado no banco do carona, multiplicou bordoadas. No delírio do gosto no transtorno, berrou: “Mais meu mito! Eu quero é mais!”
“É maluco ou tá chapado” decidiu o da direção quando decidiu virar a esquina fazendo o das porradas vacilar no banco de carona, no que deu tempo de bater continência declarando “I Love You”. Agarrou a cara do PM e tascou um beijo na boca convencido de que, enfim, encontrou o mito de que precisava para ser tornado em touro e deixar de ser gado transtornado.
“Iêêêêê boi!” Em nome de Jesus ele encontrou a salvação.
Raul Longo, escritor, roteirista de HQ, repórter, cronista e editor de jornais, autor de Caos & Cosmos, livro publicado em 2010, atuou em diversos jornais e revistas.
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