por Fernando Soares Campos(*)
Desde a Antiguidade até os dias atuais, os significados das palavras "verdade" e "realidade" se confundem. Talvez esse fato ocorra em consequência de possível desconhecimento nosso sobre a incoerência do raciocínio que nos leva a crer que esses vocábulos formam sinônimos perfeitos entre si. Ou seja: nossa ignorância vocabular nos faz crer que ambos os termos teriam o mesmo significado.
Filósofos, acadêmicos, hermeneutas, intelectuais, gramáticos e dicionaristas, em tempos diversos, expuseram teorias semânticas, ideias, opiniões e interpretações sobre os significados denotativos e as possíveis conotações que relacionam entre si as palavras "verdade" e "realidade". Como resultado desses conhecimentos especulativos, metodicamente desenvolvidos, foram identificadas variações de sentido em que se pode empregar um ou outro desses dois vocábulos; desde que, considerando-se a contextualização em que venham a ser inseridos, possamos reconhecer uma inter-relação circunstancial, ocasional, ou mesmo acidental, entre os significados de ambos. O erro consiste em conferir-lhes, em determinadas situações, status de sinônimos perfeitos. Os que assim consideram esses vocábulos incorrem em erro elementar, fazendo crer que, em suas essências, tratam-se de sinônimos exatos, como, por exemplo, "belo e bonito", "morrer e falecer", “avaro e avarento”. Estes pares de palavras são exemplos de sinônimos perfeitos, são termos que podem ser substituídos um pelo outro, em qualquer manifestação da linguagem verbal (oral ou escrita), sem que haja qualquer alteração em seus significados. Expressam, com rigorosa clareza, um mesmo significado para ambos, em qualquer contexto frásico.
Por que não devemos utilizar a palavra "realidade" como sinônimo perfeito de "verdade"?
A sucessão e o encadeamento dos fatos geram em cada observador uma noção específica da realidade. Cada indivíduo vê, sente e reage aos acontecimentos de acordo com o conceito de realidade que possa ter plasmado. Assim sendo, podemos deduzir que "realidade" jamais poderia ser confundida com "verdade", visto que esta é única, imutável, absoluta.
Quando dizemos "Essa é a realidade dos fatos", podemos estar querendo dizer apenas que "os fatos são verdadeiros". Nesse caso, não expressando juízo acerca da "verdade", ou seja, ao nos referirmos à "realidade", nem sempre dizemos que "os fatos são a verdade", mas, sim, que "os fatos são verdadeiros". Atribuímos, dessa forma, um predicado à realidade dos fatos que observamos ou que nos foram relatados. Entretanto, para que uma dessas palavras não se confunda com a outra, devemos estar sempre atentos ao fato de que os relatos de alguém sobre qualquer acontecimento são formulados de acordo com a noção que esse alguém possa ter sobre a sua realidade pessoal. Disso concluímos que tais narrações podem ser falsas ou verdadeiras, sejam elas proferidas de boa ou de má-fé. Podemos, então, observar que a relação gramatical mais comum ocorrida entre as palavras "verdade" e "realidade" se dá no âmbito da adjetivação (qualificação), não da ação realizada por aquilo a que nos referimos.
Ao discorrermos sobre fatos, tratando das inter-relações entre os acontecimentos e os elementos que possam tê-los provocado, de forma que possamos claramente identificar interdependência entre si, dizemos que "essa é a realidade". No entanto, geralmente falamos isso com intenção de nos referirmos à "verdade", sem levarmos em conta que tais fatos, apesar de reais, podem ser, por si mesmos, a expressão da "inverdade".
Ao tratamos, por exemplo, de devastadores incêndios florestais, casos em que o fogo se alastra rapidamente, alegando que tais desastres ocorrem por causa de rigoroso verão, sol causticante, longa estiagem, vegetação seca, fatores propícios à propagação das chamas, podemos estar incidindo em erro da origem, pois essas condições certamente contribuem em favor da propagação do fogo, mas podem não estar diretamente relacionadas com a origem do incêndio. Certamente não ocorreu combustão espontânea, o fogo não se fez do nada e se alastrou. Condições tais como rigoroso verão, sol causticante, longa estiagem e vegetação seca não são as causas dos incêndios, são apenas facilidades para disseminar aquilo que pode ter sido causado por meios diversos. Portanto, devastadores incêndios florestais ocorrem por causas diversas, inclusive por ato criminoso.
O dualismo formado pelos conceitos de "verdade" e "inverdade" só pode ser estabelecido quando o objeto apreciado possa ser contestado quanto à sua existência material ou ocorrência factual. Pela simples apresentação do objeto e o reconhecimento incontestável, por parte de qualquer observador, de sua existência como elemento de tal espécime, assim, não se pode tratá-lo como sendo "verdade" ou "inverdade", mas tão somente como real. [Wikipédia: "Realidade (do latim realitas isto é, "coisa") significa em uso comum "tudo o que existe". Em seu sentido mais livre, o termo inclui tudo o que é, seja ou não perceptível, acessível ou entendido pela filosofia, ciência ou qualquer outro sistema de análise."]
Uma pedra, por exemplo, não comporta, concomitantemente, dois princípios opostos, referentes à verdade e à inverdade. Diante de um ou mais observadores, tal objeto não pode ser entendido como uma verdade ou uma inverdade, ele explicita tão somente o real (lembremo-nos de que o irreal não significa necessariamente uma inverdade).
As opiniões subjetivas que podem suscitar ideia de dualismo, dicotomia dos opostos, só devem ser consideradas através de um sistema de valores; portanto, descartada a possibilidade de negação do objeto como sendo verdade ou inverdade, resta-lhe simplesmente a condição de "aquilo que é", ou "aquilo que existe".
As locuções adjetivas "de verdade" e "de mentira", significando algo que é "verdadeiro" ou "falso", "legítimo" ou "ilegítimo", não têm sentidos significativos equivalentes à verdade e à inverdade objetivas. Não são sujeitos, não são objetos, tratam, em alguns casos, da boa ou má qualidade dos constituintes de um objeto; em outras acepções, referem-se ao original e à imitação de determinado objeto; em ambos os casos, dizem sobre coisas reais, falam ao que é, ao que existe e cuja existência não pode ser negada nem confundida com outro ser.
Antoine-Laurent Lavoisier, conhecido como o "pai" ou "fundador" da química moderna, pôde, através de seus trabalhos de pesquisa, enunciar uma lei que ficou conhecida como Lei da Conservação das Massas ou Lei de Lavoisier:
"Numa reação química que ocorre num sistema fechado, a massa total antes da reação é igual à massa total após a reação".
Ou...
"Numa reação química a massa se conserva porque não ocorre criação nem destruição de átomos. Os átomos são conservados, eles apenas se rearranjam. Os agregados atômicos dos reagentes são desfeitos e novos agregados atômicos são formados".
Ou ainda, sob conceito filosófico...
"Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma."
Assim, concluímos que nada pode surgir do nada e que nada pode transformar-se em nada.
A partir dessa constatação, entendemos que os elementos que constituem o nosso corpo material são eternos, indestrutíveis, eles apenas reagem entre si e se transformam (durante e após o ciclo vital). Assim sendo, considerando suas existências concretas, podemos dizer que esses elementos encerram em si (ou simplesmente representam) a realidade, o real.
Enquanto o ente psíquico, etéreo, autoconsciente, individual, único, unido ao nosso corpo material, é igualmente eterno, indestrutível, entretanto este, à medida que aprofunda seu autoconhecimento, é capaz de criar mecanismos próprios para controlar seus desejos e impulsos afetivos e emotivos; adquire conhecimentos através de processo mental (cognição) em que aplica a percepção, atenção, associação, memória, raciocínio, juízo, imaginação, pensamento e linguagem; desenvolve métodos próprios para o aprendizado de determinados sistemas e soluções de problemas; nele não ocorre a simples transformação de seus elementos, mas, sim, o progresso quantitativo e qualitativo de conhecimentos e o aperfeiçoamento do emprego de suas principais funções (cognição, volição, afeto e motivação), portanto o ente psíquico evolui, podemos também afirmar que, por ele desejar conhecer a verdade e persegui-la, esta evolui consigo.
A realidade é relativa; a verdade, não
Tomás de Aquino afirmou que "nenhum ente esgota a verdade", e isso reforça o nosso conceito de evolução da verdade.
Hegel dizia que uma tese sempre terá para si uma antítese, e a união dessas teorias formaria uma nova ideia, abrangendo aspectos da tese e da antítese em síntese. E a síntese se tornaria uma nova tese. Daí o ciclo se reinicia com a formação de sua respectiva antítese. O que vem a ser isso se não o caráter evolutivo da verdade?
A realidade é individual, é real a forma como o indivíduo vê e sente as coisas, mesmo que as veja distorcida da verdade.
Vejamos: nas mesmas águas em que o indivíduo abastado realiza pesca de lazer, o pobre morador das regiões ribeirinhas pesca por necessidade de prover a sua subsistência e, geralmente, não dispõe de equipamentos tão avançados (tão evoluídos) quanto os do indivíduo abastado. O abastado vê o seu ambiente de pesca como uma área esportiva e, em muitos casos, de cenário deslumbrante; o pobre ribeirinho vê a mesma área como campo de trabalho. Porém, para ambos e para qualquer outro ser humano, aquilo não pode ser outra coisa senão um rio, habitat natural de peixes e de outros animais aquáticos, geralmente margeado por densa vegetação. Quer dizer, a realidade é relativa, varia de indivíduo para indivíduo; a verdade, não; a verdade é única, é para todos, mesmo para os que a desconhecem.
"Contra fatos não há argumento". Este é um preceito utilizado por aqueles que desconhecem que determinados fatos, verdadeiramente ocorridos, podem estar expressando a verdade ou a inverdade. Se tal máxima exprimisse a verdade, não seria possível alguém argumentar contra qualquer fato, pois tal enunciado anula qualquer argumentação contra qualquer ocorrência. Se assim fosse, não haveria razão de existir advogado, pois qualquer fato verdadeiro exposto pela promotoria seria suficiente para condenação do réu, visto que, supostamente, “Contra fatos não há argumentos”.
A verdade é que contra fatos, só argumentos verdadeiros.
(*)Fernando Soares Campos é escritor, autor de "Saudades do Apocalipse - 8 contos e um esquete", CBJE, Câmara Brasileira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2003; "Fronteiras da Realidade - contos para meditar e rir... ou chorar", Chiado Editora, Portugal, 2018.