A Longa Metamorfose Patológica do Brasil
Mário Maestri
Quando um ser conhece transformação profunda de sua essência, dizemos que sofreu uma metamorfose. Mesmo se o processo de transformação é lento e, inicialmente, muitas vezes, quase imperceptível, ele conhece momentos de aceleração, de saltos qualitativos, nos quais assume nova forma para poder expressar plenamente a nova natureza.
A sociedade brasileira não vive situação terminal, como muitos propõem. Conhece apenas enorme aceleração de metamorfose patológica iniciada há muito. A internacionalização, desnacionalização, desindustrialização da economia e sobretudo da industrial brasileira é um processo que vem se acelerando nos últimos quarenta anos. O país viveu verdadeira "desindustrialização por substituição, por importações, da produção interna". Nesse longo período, aumentou fortemente o peso relativo e absoluto da produção primária mineradora e agro-pastoril, direta ou indiretamente nas mãos do grandes capital sem bandeira, cor, cheiro.
Por sua vez, o capital financeiro nacional e internacional literalmente banqueteou-se em forma pantagruélica com a população do país, através das múltiplas dívidas -federal, estadual, municipal- e das pequenas, médias e grandes operações bancárias de cada dia. Sequer o narcotráfico jamais sonhou com tamanho lucro, garantido pela lei do cão que se instalou no país. Com a orientação prioritária para a exportação - minérios, grãos, carnes, sobretudo -, a população nacional retrocedeu como destino do consumo da produção interna. O que viabilizou a crescente implantação de escravidão assalariada, mais rentável que o cativeiro da senzala.
Sem exceção
Desde a chamada "redemocratização", todos os governos, sem exceção - Sarney, Collor, FHC, Lula, Dilma -, com maior ou menor furor, mas sempre com enorme disponibilidade para com o grande capital nacional e internacional, alimentaram o processo de metamorfose profunda que conheceu salto de qualidade inevitável quando do golpe de 2016. Foi ali que a estranha "ovelha", na qual cresciam, havia muito, estranhos dentes e garras afiados, com olhos que cada vez mais avermelhados, perdeu totalmente a lã que se desprendia aos chumaços, revelando sua natureza de besta chupa-cabras, de voracidade insaciável. E agora, muita gente grita horrorizada, surpresa com o que vinha de longe: - Olha o lobo! Olha o lobo fascista!
Quando do Golpe de 1964, a "burguesia industrial" brasileira rompeu o pacto populista que avançava desde 1930, temendo os trabalhadores que se fortaleciam, e ensaiou aliança amarga com o grande capital mundial. A partir de 1967, ela exigiu manter uma ainda que relativa hegemonia na associação com o imperialismo. O fracasso do "Milagre Econômico", quando da crise mundial capitalista de 1975, avantajou o grande capital sem pátria, com destaque para o financeiro, que impulsionou a internacionalização, desnacionalização e desindustrialização da economia nacional .
A chamada "burguesia nacional" metamorfoseou-se em seres parasitas e autômatos da globalização, incapazes de ato, sentimento ou reflexo de independência, por falta de substrato e autonomia material objetivos. Em 2016, deixou que o pouco que havia de capital monopólico nacional público e privado fosse rifado pelo imperialismo, batendo alegre e imbecilmente palmas. Mesmo conhecendo agora profunda crise, aferra-se bovinamente à redução dos trabalhadores a escravos modernos, com salários inversamente proporcionais ao esforço e às condições de trabalho. Sonha com escravidão moderna em que não tenha que comprar os cativos, atirando-os fora quando quiser, surrando-os sem a intermediação das forças policiais e militares.
A Agonia do Nacionalismo Militar
Na Colônia, no Império, na República, a alta oficialidade tupiniquim expressou sempre as classes dominantes. Em 1967-85, com seus oficiais "linha dura nacionalista", ela expressou o projeto burguês sobretudo paulista de um "Brasil Grande", construído com o suor da população, é claro. Hoje, refletindo o desfibramento da "produção nacional", ela produz apenas generais estilo "repúblicas bananeiras", oferecendo e vendendo seus serviços a preços módicos. Todos sonhando com uma casa de um, dois, três andares, em Miami, conforme a teta em que conseguirem mamar.
De país semi-colonial, no qual as classes dominantes mandavam na política da nação, mesmo dependentes na esfera econômica das grandes nações, vivemos metamorfose das instituições, em direção de uma ordem ditatorial institucionalizada, onde as próprias decisões políticas são tomadas pelo grande capital internacional, através dos players locais: a alta oficialidade; a "grande" Justiça; o Parlamento; os proprietários das grandes empresas evangélicas. O Brasil conhece verdadeira ordem "neo-colonial globalizada, própria ao domínio da transnacionalização do capital, que tende a encerrar era dos Estados-nações independentes e semi-independentes.
A metamorfose patológica do Brasil não é um destino inscrito nos astros. É sobretudo produto da atual desproporção mundial da relação de forças do trabalho em relação ao capital, extremamente aguda em nosso país. Essa realidade tem sua história, nacional e internacional. A nova ordem se instalará, se consolidará e se realizará com crescente radicalidade, se não encontrar resistência e propostas de superação efetivas. E esse é o grande drama atual do Brasil - não há qualquer força ou projeto real que se levante contra o tsunami do grande capital que varre o país.
A Metamorfose da Esquerda
Já não há dúvidas. Os partidos eleitorais de "esquerda", com destaque para o PT, PCdoB, PDT, PSB, PSOL e por aí vai, e todas as centrais sindicais, sem excepção, não só não se opõem ao processo em curso, como se desdobram para impedir a movimentação dos trabalhadores e da população contra a atual hecatombe social e econômica. No passado ajudaram a parir o monstrengo e exigem agora que os deixem também embalar. Esforçam-se, sobretudo, para serem aceitos como membros do novo ordenamento, nem que seja como figurantes mudos. Não querem perder as benesses advindas da participação da gestão do Estado, seja a forma que ele adquira. Capa social de centenas de milhares de parasitas, oferecem sem pudor seus bons serviços aos novos amos.
Dois exemplos, recentes, gritantes.
O Intercept Brasil denunciou, no dia 22 de fevereiro, a forma dura com que o governador Flávio Dino tem tratado segmentos populares do Maranhão, ao estender o tapete vermelho ao grande capital mundial, em geral, e chinês, em particular - atualmente o mais dinânico. Tudo para construir infra-estruturas privadas que pretendem transformar o Maranhão Estado em uma verdadeira "área de passagem" da produção das mineradoras e do agro-negócio, também nas mãos do capital transnacional. A principal proposta é a construção de um porto chinês privado! Nada, é certo, que outros governadores não estejam fazendo ou tentando fazer.
A reportagem anódina abriu as portas do inferno, motivando enorme gritaria contra o Intecept Brasil, por ter exposto o projeto do PCdoB de emplacar, em 2022, o gordinho Flávio Dino como candidato substituto palatável de Jair Bolsonaro, respeitador de todas as exigências do grande capital. Para tal, o próprio PCdoB completa agora sua longa metamorfose, nesse caso, sobretudo formal, pois apenas revela a essência que assumira há muito. Ou seja, abandona a pele vermelha pela verde amarela e substitui, pelo Renminbi a falsa dentadura estilo "foice e martelo", já incapaz de morder alguém. Em recente entrevista, Flávio Dino defendeu a proposta de "virar a página". "(...) a foice e o martelo" é "simbologia do século XIX".
É necessário "matar a cobra e mostrar o pau". Tenho me referido ao losurdismo, "anti-capitalismo dos tontos", como ponta de lança do imperialismo, ao propor o desenvolvimento das forças produtivas dos países, sem preocupação com o caráter do Estado e as condições das populações, em associação-submissão ao grande capital internacional, com destaque para o chinês, que o italiano adorava (https://esquerdaonline.com.br/2020/02/18/domenico-losurdo-marxismo-ocidental-e-marxismo-oriental-apologia-da-colaboracao-de-classes/).O versátil youtuber Jones Manoel, losurdista mor no Brasil, realizou a mais desbragada defesa de Flávio Dino. Caracterizou o artigo bem comportado do Intercept Brasil de "linha de frente do anticomunismo, verdadeiro ataque a "toda a esquerda radical do Brasil". Como se aquele governador e seu partido algo que ver com o comunismo, que já rejeitam publicamente. Para não falar com a esquerda, mesmo a mais moderada.
Esqueceu o Socialismo
Jones Manoel afirma que o artigo foi um ataque à China e aos chineses e se dedicou a caricaturar Mao e os valores da Revolução Chinesa - personagem e valores já estrangulados desde dezembro de 1978, com o início da restauração capitalista comandada por Deng Xiaoping. Em todo caso, ao menos no artigo em questão, não se lê referência à Mao e à Revolução Chinesa! O mais interessante é a proposta política de Jones Manoel, seguindo o abecedário losurdista. Para ele, uma "Revolução Brasileira terá, necessariamente, que rever vários contratos com os chineses e expropriar alguns empreendimentos"!
Ou seja, o youtuber, propõe uma "revolução brasileira", sem outro qualificativo. Revolução nacional? Revolução patriótica? Revolução redentora? Não explica. E garante a subsistência dos empreendimentos do grande capital imperialista chinês, com alguns retoques, após a tal "Revolução sem nome", ao igual do fracassado sorvete "homônimo" de inícios dos anos 1980. Em verdade, a proposta do articulista se enquadra politicamente no velho e, ainda mais, no novo PCdoB. Ao contrário, o PCB, partido em que militaria Jones Manoel, propõe, em forma clara, sem tergiversação, uma "revolução brasileira socialista", com a expropriação dos do grande capital internacional, nacionalização das riquezas minerais do país, e por aí vai, a única garantia de independência nacional e social efetiva. Sem perseguições ou privilégios ao capital monopolista chinês.
No mesmo sentido, mas com ainda maior repercussão, foi a reafirmação de Lula da Silva do grito "Fica Bolsonaro", que deu, em 7 de novembro de 2019, ao sair da prisão, em entrevista ao jornal suíço Le Temps, no domingo, 1º de março, ao afirmar que o mandato de Jair Bolsonaro é legal e que não se deve propor seu impeachment, já que nada teria ainda feito de ilegal. Teríamos, portanto, que respeitar seu "mandato" até as eleições de 2022, quando , do país não restará muito, e certamente será eleito o terceiro presidente apoiador do golpe.
Essas declarações esdrúxulas nasceram, certamente, da vontade de Lula da Silva de conquistar a boa vontade dos senhores generais, que mantêm nas mãos, ameaçadores, a chave da cela da prisão em que o ex-sindicalista esteve ilegalmente preso por longos 580 dias. O que é compreensível. Entretanto, elas expressaram, em alta voz, sobretudo, a posição que a esquerda faz-de-conta defende na surdina. Ou seja, deixar o barco correr, que o país role pelo ralo, mas que siga a farsa eleitoral e se mantenham as tetas dos políticos "opositores" Lula não é um traidor, definitivamente - ele foi sempre isso aí. O problema é quem acreditou e acredita no Papai Noel.
É urgente refundar a esquerda. Com esses inimigos aboletados em nossa trincheira, nos chamando de companheiros, a batalha está perdida antes de começar. (Duplo Expresso, quinta-feira, 12/02/2020).
* Mário Maestri, 71, historiador. maestri1789@gmail.com É autor de: Revolução e contra-revolução no Brasil: 1530-2019. https://clubedeautores.com.br/livro/revolucao-e-contra-revolucao-no-brasil#.XKK2kKfOrb0
Foto: Por Henk Monster, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=54748688