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Em vez de justiça, América do Sul está ameaçada pelo caos

Em vez de justiça, América do Sul está ameaçada pelo caos

Em vez de justiça, América do Sul está ameaçada pelo caos

DW

Sul-americanos tiveram uma primavera quente: não chegou a ser uma Primavera Árabe, mas os efeitos podem ser parecidos. A democracia e o Estado de direito perderam reputação, o que pode ser perigoso, opina Uta Thofern.

Equador, Chile, Bolívia, mais recentemente a Colômbia: as imagens transmitidas destes países ao mundo foram semelhantes. Protestos pacíficos que se transformaram em vandalismo e violência, brutalmente combatidos pelas forças de segurança. Protestos cujas consequências foram de longo alcance: a renúncia do chefe de Estado na Bolívia, a anulação de regulamentos controversos ou planos de reforma no Equador, bem como no Chile e na Colômbia. Os protestos mudaram esses países para sempre.

Essas foram as semelhanças óbvias. A situação política e econômica antes das manifestações nos quatro países era diversa, mas ainda assim há causas comuns para os protestos: a cegueira das elites diante de injustiças óbvias, a arrogância do poder e a falta de um modelo econômico que estabeleça um equilíbrio entre competitividade, lucro e equilíbrio social. E há um novo problema comum: um consenso sobre novas vias parece tão difícil no Chile quanto na Colômbia. A Bolívia está politicamente mais dividida do que antes, e a atual calma no Equador engana.

Em todos esses países - diferentemente da Primavera Árabe - os protestos em massa não foram contra ditadores, mas contra governos eleitos democraticamente. Também a Bolívia, onde Evo Morales se apegava cada vez mais ao poder, ainda estava longe da ditadura. No entanto os bolivianos foram às ruas para proteger sua democracia, pelo menos inicialmente. A renúncia de Morales, no entanto, levou a protestos de seus seguidores, ambos os lados se radicalizaram e o governo interino não faz nada contra. Em vez disso, a presidente interina, Jeanina Añez, pratica gestos como romper laços diplomáticos com a Venezuela chavista e retomá-los com Israel, em políticas simbólicas que poderiam ter sido encomendadas pelos Estados Unidos.

Para os grupos indígenas, que se voltaram contra o antecessor Morales, a Bíblia que ela ostentou ao assumir o cargo também foi um sinal de rejeição da cultura deles. A antiga oposição, que deveria ter mais chances em novas eleições, está cada vez mais fragmentada, as forças moderadas estão perdendo popularidade. A polarização está crescendo.

Também no Chile e na Colômbia há evidências de uma divisão social cada vez maior, em vez de uma aproximação entre os muitos grupos de manifestantes e os governos. O fato de os presidentes Sebastián Piñera e Iván Duque, depois da teimosia inicial, terem respondido a muitas das demandas dos manifestantes e estarem dispostos a conversar não surte mais efeito nas ruas.

Depois dos excessos das forças de segurança mesmo contra protestos pacíficos, a confiança no Estado parece ter se perdido. Ao mesmo tempo manifestantes violentos usam os novos protestos para saques e vandalismo, o que alimenta ainda mais a espiral da violência e a sensação de insegurança e perda de controle entre a população passiva.

Nos dois países, o governo e o movimento de protesto parecem viver em diferentes planetas e falar idiomas diferentes. Na Colômbia o conflito armado com os guerrilheiros encobre todos os outros problemas sociais há décadas. No Chile a superação bem-sucedida da ditadura e os dados econômicos positivos camuflam a atual divisão social. A raiva que agora irrompeu já não pode ser contida.

O que os políticos chamam de negociações ou cumprimento da lei, na rua soa como desculpas. No Chile, mesmo a perspectiva de um referendo sobre a Constituição não foi capaz de apaziguar a ira; nem existe uma pessoa de contato do governo com o movimento de protesto. Na Colômbia, negociações sérias já fracassam porque o comitê de greve reivindica representação única e não quer participar de conversas com outros grupos da sociedade.

Além disso, os cidadãos nas ruas de alguma forma querem tudo, e já: uma educação melhor e mais acessível, menos violência contra as mulheres, aposentadorias mais altas, menos racismo, melhor atendimento de saúde, mais proteção para ativistas ambientais e sociais... A lista é longa, o Estado não é diretamente responsável por tudo, e essas reformas não podem realmente ser implementadas da noite para o dia. Nem mesmo numa ditadura.

Até agora os políticos não conseguiram encontrar uma linguagem para falar das reivindicações. Mas também entre os que protestam parece baixa a disposição ao consenso. O pensamento sóbrio é impedido pela sensação de "agora é a nossa vez" e a intoxicação pelo sentimento de poder nas ruas. E, é claro, permanece a desconfiança em um Estado que usou violência. Mesmo assim, a situação não pode continuar sem negociações e sem o reconhecimento de que ninguém tem o direito exclusivo de representação: sejam políticos eleitos ou cidadãos irados, eles só podem representar uma parte da sociedade.

Democracia leva tempo. Democracia é a árdua busca por consenso, pelo equilíbrio entre interesses diferentes. Ao que tudo indica, os manifestantes enfurecidos não querem mais isso, eles esperaram demais, e por demasiadas vezes a democracia os decepcionou. Por mais compreensível que seja, é difícil imaginar uma boa alternativa. Se todas as regras forem anuladas, inicialmente vai prevalecer o caos, geralmente seguido pela lei do mais forte. Isso não é justiça.

Uta Thofern é chefe do departamento América Latina da DW.

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A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. 

http://www.patrialatina.com.br/em-vez-de-justica-america-do-sul-esta-ameacada-pelo-caos/

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey