Os orixás são cruéis ou somos nós
Jolivaldo Freitas
Pesquisas científicas feitas ao longo dos anos demonstram que os animais são criaturas sencientes. O que significa dizer que assim como os seres humanos - nas suas devidas proporções - possuem ampla capacidade emocional. Os bichos sentem dor, prazer, alegria, estresse, medo e dor. Alguns até parecem entender claramente o que vai acontecer a seguir ao movimento ou ação de algo ou alguém.
Dito isso pare e fique a imaginar um sacerdote, um assistente, um filho, uma filha, seja lá quem for que pega uma faca, um facão, uma navalha e degola o animal à frio. O bicho senciente se debate até perder o brilho dos olhos. O sangue é recolhido. A carne terá também sua destinação ritualística. Tanto faz se é uma galinha, um bode, um bezerro, uma pomba.
Porque será que os orixás fazem tanta questão de ver os animais sacrificados? Em pleno século XXI quando se sabe muito acerca dos animais, como pode ser válido tal atitude, levando-se principalmente em conta que as pessoas da religião afro estão cada vez mais esclarecidas? Tem de respeitar os preceitos de cada religião. Tem de manter a tradição, os hábitos, as homilias, mas quem disse que isso não pode ser compactuado com os deuses de outra forma?
Tenho certeza que Iansã, Exu, Ogum e todos os outros deuses da religião de matriz africana não se importariam se a ialorixá ou o babalorixá chegasse com toda humildade e explicasse que estava trocando os animais por frutas, por exemplo. Que estava evitando o sacrifício dos bichos por uma questão de amor. E de amor todos os orixás, deuses e santos entendem. Quem é da religião entende todo o conceito por trás do sacrifício - na verdade oferenda. Mas, como agradar com o sofrimento dos outros? Assim questiona quem não é da área e vê tudo como barbárie, ainda mais neste tempo de política de defesa dos animais.
Tenho certeza que uma nova atitude deixaria a todos satisfeitos. E os animais vivos, e quem sabe, felizes. Todo este lero-lero é que me incomoda ver os animais sendo sacrificados em nome de se fazer uma média, um agrado para um ente superior. E me choca quando sei que no Candomblé, por exemplo, a natureza deve ser respeitada acima de tudo. E onde entram os animais nesta naturaleza?
E também porque esta semana o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a constitucionalidade do sacrifício de animais na realização de cultos de religiões de matrizes africanas. Segundo foi divulgado e que lí no site da EBC (considere as aspas), a questão foi definida por meio de um recurso do Ministério Público do Rio Grande do Sul contra uma decisão do judiciário local que definiu que o sacrifício dos animais não viola do Código Estadual de Proteção aos animais. A norma local definiu que os rituais de sacrifício nas religiões africanas não são inconstitucionais, "desde que sem excessos ou crueldade".
O julgamento começou no ano passado. Na conclusão, os ministros entenderam que a crueldade contra os animais não faz parte do ritual de culto das religiões de origem africana. Além disso, a Constituição garante a liberdade de culto religioso a todos os cidadãos. Um dos ministros entendeu que a lei local deu proteção especial às religiões de matriz africana em razão do histórico de discriminação. "A liberdade religiosa é um direito fundamental das pessoas, é um direito que está associado às escolhas mais essenciais e mais íntimas que uma pessoa pode fazer na vida", disse.
Também foi destacado que todas as religiões devem ter suas liturgias. Durante o julgamento, entidades defenderam a liberdade de culto e afirmaram que as religiões de matriz africana são alvo de preconceitos, que abrem caminho para a intolerância religiosa. Mas, o Fórum Nacional de Proteção de Defesa Animal sustentou que nenhum dogma pode se legitimar pela crueldade.
Mas como aceitar que um momento mágico de congregação entre homens e deuses se transforme num ato de extrema violência? Não canso de perguntar. Veja o exemplo da umbanda, que gradualmente deixou de matar bichos. Respeito todas as religiões, todas as culturas, todas as idolatrias, mas não posso achar que tirar vida, de qualquer ser (não, não sou budista) seja algo de agrado por exemplo de Exu. Tentem o diálogo. Ele vai entender. E os animais que sentem prazer, saudade, estresse, lembram e sentem medo e dor irão agradecer. Ao longo do tempo os deuses sempre evoluíram. Ficaram mais compreensivos. Veja que não tem mais sacrifícios humanos. É a vez da alforria para os bichos, nossos irmãos. Sei que você está me entendo caro orixá.
Escritor e jornalista: Jolivaldo.freitas@yahoo.com.br
Foto: https://pt.wikipedia.org/wiki/Orix%C3%A1#/media/File:Op%C3%B3n_IF%C3%A1.jpg