Meu tipo inesquecível

Meu tipo inesquecível

Há um ano, sozinho em Gramado, devia com urgência encontrar algumas coisas para passar o tempo, além dos jogos de futebol na televisão, as palavras cruzadas e os livros que, mesmo com centenas de páginas, duravam muito pouco.


Pensei, quem sabe, escrever em muitos capítulos, a história de algum personagem que despertasse interesse nos leitores, se, por acaso, essa história pudesse um dia se transformar num livro.


Diga-se de passagem, que publicar um livro sempre foi uma obsessão para mim e para muitas pessoas que, como eu, em algum momento da vida, se acharam em condições de escrever algo que pudesse interessar aos outros.


Quem sabe, com o objetivo inicial de passar o tempo, eu não alcançasse essa meta?
Foi quando decidi escrever uma história de um personagem que fosse bastante interessante, digamos para um leitor comum, obviamente alguém que lesse mais que os jornais diários, mas que não me avaliasse pelos mesmos critérios estéticos que lê uma obra do Gabriel Garcia Marques, do Érico Veríssimo ou até mesmo da Martha Medeiros.


Primeira tarefa seria então, encontrar o tal personagem, alguém cuja vida fosse cheia de aventuras, alguém cujos feitos provocassem a admiração das pessoas.


Nada de um livro com personagens pensadores e cheios de filosofia. Parece que nessa nova sociedade de consumo, os leitores querem ação, aventuras, que não encontram nas suas vidas reais.


Um aventureiro, um herói, um grande esportista, um grande ator, um milionário excêntrico, qualquer um desses personagens ajudaria a chamar a atenção para a história, mas quantos desses personagens, eu conhecia com algum grau de profundidade, para me atrever a contar suas vidas?


Poucos, talvez nenhum.
Teria que fazer uma longa pesquisa, conhecer a fundo este personagem, saber de sua vida em todos os detalhes, algo que exigiria muito tempo, atenção e, também, dinheiro para financiar este trabalho, coisa que, vamos deixar claro, não tinha.
Além disso, não atenderia o objetivo inicial de passar o tempo em Gramado. Exigiria viagens, estudos, pesquisas de campo.

Mas, se fizesse uma revisão da memória, será que não encontraria um personagem pronto, acessível ao que pretendia?
Quem seria a pessoa que conheço mais profundamente no mundo, pessoa sobre a qual tenho uma memória completa, cheia de detalhes e curiosidades?
Obviamente, eu mesmo.

Embora isso possa parecer uma impossibilidade sob o ponto de vista freudiano, acho que conheço bem e me lembro dos principais momentos da minha vida, salvo alguns lapsos de memória que possam ser atribuídos a indícios de uma senilidade precoce.
Seria uma versão atualizada daquela secção que costumava ler nas Seleções do Reader's Digest, quando era apenas um menino em Farroupilha, Meu Tipo Inesquecível.
Então, o personagem eu já tinha, mas isso não resolvia totalmente o problema. Quais seriam os fatos desse personagem que pudessem caracterizar uma vida de aventuras capaz de interessar a hipotéticos leitores, algo que fizesse dele um personagem inesquecível?
Já disse antes que sou uma pessoa comum, sem grandes acontecimentos na vida.

E, então?
Então, eu voltei a Porto Alegre, recomecei a encontrar parentes e amigos, a freqüentar outras vezes as salas de cinema, mas a idéia de escrever um livro, uma biografia livre, ou melhor, uma fantasia biográfica, não me abandonou.

Fazendo uma rápida retrospectiva na minha vida, vi que em alguns momentos, se tivesse tomado uma decisão diferente da que tomei, mais do que isso, se tivesse tomado uma decisão e não deixado as coisas correr no seu curso normal, poderia ter sido um guerreiro no Oriente Médio, um jogador de futebol de prestígio internacional, um advogado famoso, um rico empresário ou, quem sabe, um ator reconhecido nacionalmente.
Como o que pretendia escrever era uma obra de ficção, nada impediria de que no último segundo antes da decisão que me fez ser mais uma pessoa comum no mundo, eu tivesse seguido outro caminho.

O que aconteceria então com este personagem que chamaremos apenas de Marino?
A primeira oportunidade, eu a desperdicei, ao nascer num dia 15 de agosto, do distante ano de 1939. Como naquela época, as crianças nasciam nas casas de suas mães, assistidas por uma velha e prática parteira, eu perdi a oportunidade de ser trocado na maternidade.
Não posso contar uma história de uma troca ao nascer, porque fui o único a nascer, naquele dia de inverno, naquela casa da Avenida Veneza, nome que trocaram para Buarque de Macedo por causa da guerra.

Depois, supondo que tivesse nascido na Beneficência Portuguesa e não em casa, não estaria sendo nenhum um pouco original. Já se contaram várias histórias dessa troca em maternidades, fazendo com que filhos de ricos, fossem condenados a viver como pobres e filhos de pobres chegassem à riqueza.
Eu seria o filho de casal pobre, que viveria como rico, até o dia em que inesperadamente conheceria a mãe biológica, por uma inexplicável atração dos sentidos.
Algo difícil de acreditar, hoje em dia.

Vamos então esquecer essa possibilidade, primeiro porque nasci numa casa da Avenida Veneza, no bairro São João, em Porto Alegre e segundo porque seria um terrível dramalhão, no qual nem aquelas senhoras da Vila do IAPI, ainda acreditam

Vamos começar então essa história 16 anos depois, estabelecendo as seguintes premissas: o cenário é o velho estádio dos Eucaliptos, do Internacional, na Rua Silveiro, Bairro Menino Deus, Porto Alegre. O personagem principal, o grande herói será sempre eu. Os demais personagens serão simples coadjuvantes. Fica estabelecido que, poderei a qualquer momento, modificar os fatos reais e introduzir personagens fictícios sem qualquer aviso prévio.

Como condutor dessas histórias, terei sobre elas o domínio completo, nada me obrigando a respeitar, quando interferirem em situações já conhecidas, a verdade do que aconteceu realmente.
Vamos então à esta primeira aventura, abrindo as portas da fantasia, sem qualquer compromisso com pessoas e fatos reais.
Essa primeira história terá o título de O Gênio da Bola começará assim:
"Era o terceiro gol que eu marcava naquele Grenal, quando inesperadamente ...
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey