O ano em que perdemos a ingenuidade
O Zuenir Ventura escreveu um livro para contar porque 1968 foi um ano que não acabou. O que dizer então de 1964. Talvez que tenha sido o ano em que perdemos a ingenuidade.
Janeiro e fevereiro de 64 foram meses de tirar o fôlego. O comício da Central do Brasil, as Reformas de Base, tudo indicava que o Brasil caminhava para uma experiência socialista, o socialismo moreno de Darcy Ribeiro, com um pé na Revolução Russa, sem Stalin e outro na de Cuba, de Fidel e Guevara, mas com a cabeça e o coração voltados para o Brasil.
Se o Brasil estava quente, Porto Alegre fervia.
A vitória, ainda que parcial, da Legalidade, enchia todo mundo de alegria e esperanças.
As pessoas pareciam mais inteligentes e otimistas.
Os centros tradicionais que exalavam o que chamamos hoje de alto-astral, eram muitos: a Faculdade de Filosofia da Federal, a redação do jornal Última Hora, o Teatro de Equipe, o Clube do Cinema e, claro, a Rua da Praia.
Flávio Tavares, Ibsen Pinheiro, Sérgio Jockymann, Werner Becker, Tarso de Castro, Fernando Peixoto, Hélio Nascimento, o Peréio, Ivete Brandalise, Mário de Almeida, PF Gastal, Jefferson Barros, Enéas de Souza, todo mundo tinha algo importante para dizer. E havia espaço para todos dizerem o que quisessem.
No Salão de Atos da Universidade Federal, um festival do cinema russo-soviético mostrava os clássicos de Eiseinstein, Pudovkin e Dovzhenko; no cinema Ópera, tínhamos uma semana inteira com lançamentos, quase ao mesmo tempo que Paris, dos papas da Nouvelle Vague, Alain Resnais, Truffaut, Chabrol e Goddard, enquanto no Teatro de Equipe estreava O Despacho do Mário de Almeida.
Infelizmente Sartre não viera a Porto Alegre, mas o caderno B do Jornal do Brasil contava tudo que ele dissera no Rio. E não era pouco. O Brasil era o país do futuro e Sartre já deixara de ser o filósofo do nihlismo para engajar na nova revolução, que ia salvar toda a América Latina da opressão americana.
A libertação já começara por Cuba.
O novo estava nascendo na frente de nós e quem não enxergava isso, na universidade, na imprensa e na política - e já eram muitos esses cegos - logo eram devidamente rotulados de alienados, reacionários, direitistas e - quando exageravam nessa cegueira - recebiam a pecha máxima de fascistas.
Mas, um dia o sonho acabou.
Para mim foi na noite de 31 de março. Na frente do Matheus, descendo a Borges, encontro o Aníbal Damasceno, que vai logo informando o que acabara de ouvir no rádio:
- Minas se revoltou e quer se separar do Brasil
Começava o que os milicos chamaram depois de Revolução e de Redentora e terminava para nós os tempos de ingenuidade.
Pensávamos que iria durar pouco mas foram mais de 20 anos, em que poucos tiveram a coragem de resistir e a maioria tratou apenas de cuidar de sua vida.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS