Cartunista discute "peso invisível" do trabalho doméstico para as mulheres
por Radio France Internationale - publicado 13/02/2018 00h04, última modificação 09/02/2018 12h32
Série de quadrinhos feministas de Emma sobre o impacto nas mulheres da "carga mental" associada aos afazeres domésticos viralizou
'Acumulamos este monte de funções e ainda devemos continuar lindas e interessantes', critica Emma, que prefere permanecer anônima
"Por que você não me pediu? Ah, mas era só me pedir", diz o marido ou companheiro surpreso quando a esposa ou namorada reclama de ter que realizar sozinha diversas tarefas domésticas absolutamente previsíveis ao longo do dia.
Com uma pegada assumidamente feminista e didática, a cartunista francesa Emma, 37 anos, faz um sucesso estrondoso na França e em vários países do mundo com seus quadrinhos sobre a "charge mentale", ou o "peso mental" invisível que sobrecarrega as mulheres ao terem que antecipar tarefas e prever situações cotidianas ao lado de homens muito pouco pró-ativos ou nada educados para compartilhar o mundo contemporâneo do século 21.
A primeira vez que a cartunista francesa Emma escreveu sobre a "charge mentale", ou o peso invisível que recai sobre os ombros femininos dentro do planejamento doméstico, foi numa tira de quadrinhos postada em maio de 2017 em suas redes sociais.
O resultado, inesperado, foi impressionante: mais de 210.000 compartilhamentos, traduções para o inglês, o alemão, o italiano ou japonês, entre outras línguas, e dois livros de quadrinhos publicados com muito sucesso na França.
Engenheira informática, Emma prefere não fornecer sua identidade verdadeira por causa "do volume de insultos cotidianos" que sofre na internet por causa de seu posicionamento explicitamente feminista e militante.
Em entrevista à RFI Brasil, ela conta como tudo começou e como vem lidando com o sucesso repentino de suas tirinhas engajadas.
RFI Brasil: Como surgiu a ideia da "charge mentale" no seu percurso de cartunista?
Emma: Minha aptidão pelo desenho apareceu quando eu era muito pequena, minha irmã e meu pai desenhavam bastante, em casa isso era normal. Aos 30 anos me tornei feminista, numa contrapartida aos problemas que encontrei na minha vida como mulher, seja na maternidade ou no meu trabalho como engenheira de Informática.
Eu me informei bastante sobre o movimento feminista, sobre como acabar com o patriarcado e com as relações de poder que os homens tentam impor às mulheres. Descobri que havia soluções simples, de ordem cultural, que poderiam mudar as coisas. Percebi, no entanto, uma dificuldade ao discutir isso com meus amigos: um homem "folgado" parecia ser uma coisa normal.
Quando pedimos a um homem de ser menos "folgado" ele vê isso como uma opressão, sendo que se trata apenas de um retorno à normalidade. Estou orgulhosa de ter tentando reequilibrar essa balança de poder trazendo o conceito de "charge mentale" [ideia que demonstra como mulheres tentam antecipar uma série de situações da logística doméstica ao longo do dia, ao mesmo tempo que homens se contentam em executar apenas uma ação que normalmente lhes foi solicitada pela mulher. Por exemplo: um homem faz compras mas não se preocupa em lavar os produtos ou guardá-los na geladeira].
RFI Brasil: Por que você prefere continuar anônima, apesar do sucesso estrondoso na França e em vários outros países?
Emma: A primeira razão é que desde que eu comecei a desenhar, nunca dividi isso com meus colegas de trabalho, nunca assinei meus trabalhos com meu nome verdadeiro. A segunda razão é que recebo muitas mensagens agressivas e coléricas exclusivamente de homens, com insultos. Algumas mulheres recebem mesmo ameaças, com fotos de seus filhos etc. Não quero ficar exposta a este tipo de coisa.
A terceira razão é que o fato de ser engenheira me dá uma certa liberdade no que eu escrevo, é uma outra profissão. Deixei de lado meu trabalho como engenheira neste momento para me dedicar aos desenhos, mas se eu precisar de retomar para ganhar a vida, ou mesmo para ter recursos para manter essa liberdade em relação a meus desenhos ou a minha militância, quero poder fazê-lo. Como as empresas recrutam bastante hoje em dia pela internet, se eles virem meus desenhos militantes e anticapitalistas assinados, isso poderia me causar problemas para encontrar trabalho.
RFI Brasil: Como se deu o encontro com as temáticas feministas?
Emma: Nasci num terreno "favorável", nunca fui educada na minha família como "menininha", tive uma educação mais ou menos neutra, o que ajudou na aproximação e na conscientização da problemática feminista. Essa educação me permitiu crescer com menos preconceitos que as outras garotas. Por exemplo, nunca me ensinaram que eu deveria ser "discreta", "humilde" ou "bonitinha" por ser menina.
Por isso, compreendi ao longo da vida que este tipo de estereótipo é construído, vem de uma cultura exterior, um condicionamento. A maioria destes comportamentos é adquirido, não são naturais, natos, hormonais, genéticos, ligados à condição biológica da mulher. Mas eu não me considerava feminista, tinha rejeição com esse termo.
RFI Brasil: Por quê?
Emma: Acho que a imprensa passa uma imagem do feminismo que não é correta. Como se as feministas fossem mulheres agressivas sem razão e que discutem por qualquer coisa. Eu acho que as feministas são efetivamente agressivas, mas COM razão. A imprensa acha bobagem algumas lutas das feministas, por exemplo, pela feminização de nomes [na França não existe a palavra "escritora", por exemplo, apenas "escritor".
O mesmo para "professor" e outros cargos historicamente masculinos] ou a supressão do título de "senhorita" ["mademoiselle", em francês, discriminador do estado civil da mulher].
No entanto, não explicam que cada um destes detalhes compõe o que chamamos de sexismo, na verdade. Como eu não tinha conhecimento desse contexto, achava que as feministas eram "chatas", como grande parte das pessoas.
RFI Brasil: O que mudou seu ponto de vista?
Emma: Tudo mudou com a maternidade. Quando me tornei mãe, fui confrontada a uma realidade de abandono para a qual não estava preparada, seja no trabalho ou dentro de casa. Eu não sabia o que fazer, nem como fazer, ninguém me ajudou. Não foi uma boa experiência, todo mundo falava da experiência de ser mãe, de como é ótimo, e eu não vivi isso assim, foi muito duro.
Meu companheiro voltou ao trabalho e não se sentia responsável pela missão de tomar conta da criança. Não só eu não sabia como fazer o necessário, como me diziam o tempo todo que eu fazia tudo errado. Tive uma depressão, tudo isso me fez muito mal.
Nesse momento fui me informar junto a grupos e amigas feministas e descobri que a experiência da maternidade poderia ter sido muito melhor se as coisas fossem diferentes, se tudo não fosse jogado nas costas das mulheres o tempo todo. Ao mesmo tempo, na minha empresa, tinha um posto de responsabilidade onde liderava uma equipe com uma missão difícil, sem recursos nem investimentos.
Para compensar a falta de resultados rápidos, eu costumava fazer horas extras, tarefas que não eram minhas, sempre muito sorridente. O dia em que parei de sorrir e de fazer hora extra, meu chefe me rebaixou de posto, e eu me demiti.
RFI Brasil: Então o feminismo encontra problemas estruturais também na França?
Emma: Os direitos entre homens e mulheres não são igualitários na França. Imagino que, olhando de outros países, as pessoas podem ficar surpresas ao constatarem essa realidade, porque não existe mais nada na lei que seja problemático para as mulheres francesas, o aborto e a contracepção são legais, temos pleno acesso ao mercado de trabalho como os homens. Mas, se olharmos de perto, verificamos que assumimos nosso lugar no mundo dos homens, mas os homens não assumiram seu lugar no mundo das mulheres.
E, por isso, acumulamos responsabilidades, de ajuda aos mais velhos, de trabalho reprodutivo [a procriação], tudo que diz respeito a criar os filhos, cuidar da casa, tudo isso ainda são as mulheres que fazem. Nós francesas estamos implodindo com tudo isso. Acumulamos este monte de funções e ainda devemos continuar lindas e interessantes.
Foto Pixabay
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