É preciso salvar a história, dos historiadores
E preciso salvar urgentemente a História dos historiadores, assim como a Política dos políticos; a Medicina dos médicos, a Economia dos economistas, a Justiça dos juristas e assim por diante.
Quem já fez um curso universitário de História sabe que os mesmos fatos e seus personagens (da História do Brasil, por exemplo), começam a ser contados nos primeiros anos do colégio e só terminam na universidade, como se fosse uma novela de televisão que se desdobra em vários capítulos.
A cada ano que se avança, novos dados são acrescentados à biografia dos heróis e os fatos ganham um desenho mais completo.
Começa assim: Dom Pedro proclamou a independência do Brasil a 7 de setembro de 1822 às margens do arroio Ipiranga, em São Paulo, e termina com uma análise do comportamento pessoal do Imperador, a influência de José Bonifácio e as intrigas das cortes no Rio e em Lisboa.
Com certo exagero, algumas vezes, chega-se ao detalhamento das condições do ambiente que cercava o imperador naquele momento crucial de sua vida, quem eram os acompanhantes, como estavam vestidos e a que hora realmente Dom Pedro bradou: "Laços fora, soldados! Independência ou Morte, seja a nossa divisa".
Muitas vezes se faz apenas a tradução em palavras do que Pedro Américo já mostrou em seu quadro famoso. O máximo que se diz, fora da descrição linear do fato histórico, é um exercício barato de psicologia sobre os sentimentos de prepotência de quem preferia ser rei no Brasil do que príncipe em Portugal, com pitadas de conhecimentos sobre a conjunção de interesses existentes na época entre o imperialismo inglês e os defensores da independência na colônia.
Outro exemplo (verídico) dessa superficialidade: numa aula de História da América, o professor - falando sobre a chegada de Colombo na nova terra - faz uma pergunta que ele imagina importante para o conhecimento do aluno: o que Rodrigo de Triana, na madrugada de 12 de outubro de 1492, viu do alto gávea da caravela Pinta?
Para esta pergunta, só havia uma resposta certa: uma luz bruxuleante no horizonte.
Esquecendo o ensinamento de Plekhanov (1856/1918) de que "a história decorre de leis objetivas, mas os homens fazem história, na medida em que atuam, avançando ou retrocedendo em função dessas leis", o foco principal se localiza, quase sempre no relato dos feitos dos grandes homens que lideraram guerras ou revoluções.
Nada contra essa postura. Ela, porém, é incompleta, mas, certamente, é ainda melhor do que a atual moda de minimização dos grandes feitos históricos, substituídos pelos acontecimentos do cotidiano, como é comum dos novos filósofos e comunicadores franceses.
O correto seria inserir cada um dos grandes personagens da História na vida real de suas épocas, seus condicionamentos sociais, políticos e econômicos e analisar as razões e contrarazões de suas atitudes, avaliar suas consequências e inferir até que ponto elas tiveram maior ou menor relevância para o avanço ou retrocesso do processo histórico.
Tomemos, apenas como motivação para um debate o que está sendo dito por historiadores sobre e os personagens da "Santíssima Trindade Soviética": Lenin, Stalin e Trotsky.
O último, até porque muito cedo foi afastado do poder na União Soviética e pode assim se transformar numa fonte viva de informações sobre a revolução de 1917, ganhou uma biografia exemplar de Isaac Deutscher com a sua trilogia: "O Profeta Armado, Desarmado e Banido".
Lenin e Stalin, entretanto, enquanto perdurou a URSS, mereceram apenas biografias laudatórias, despidas de qualquer espírito crítico. Com o fim da União Soviética e a abertura dos arquivos mantidos em segredo até então, imaginava-se que com todo esse material, os historiadores poderiam, enfim, traçar uma história dos 60 anos de vida da experiência soviética e o que fizeram ou deixaram de fazer seus líderes.
Duas das obras mais badaladas sobre estes líderes soviéticos são "Stalin - a Corte do Czar Vermelho", de Simon Sebag Montefiore, e "Lenin - a biografia definitiva", de Robert Service.
O primeiro - vencedor do prêmio de melhor livro de história do British Book Awards de 2004 - se perde nas minúcias da vida privada de Stalin e transforma sua atuação nos grandes expurgos de 1937, na Segunda Guerra e no fortalecimento do seu poder pessoal, num enredo digno de uma revista Caras.
Stalin manda matar seus antigos companheiros de revolução, mas, ao mesmo tempo, é um pai de família carinhoso. Isso pode ajudar a conhecer a dubiedade de um ser humano, mas é pouco importante para entender o grande (para o bem e para o mal) personagem histórico.
O livro sobre Lenin, do também professor inglês Robert Service, apesar do otimismo do subtítulo - a biografia definitiva - é ainda mais detalhista em determinados períodos da vida do grande líder revolucionário russo - como no caso da execução do seu irmão mais velho, acusado de ações terroristas contra o czar - mas perde de vista os grandes feitos de Lenin como condutor da Revolução de Outubro, suas motivações e consequências. Além de tudo, o autor faz questão de manifestar suas posições anticomunistas, típicas do período da Guerra Fria, que não condizem com a sua pretensa objetividade.
Para quem estiver interessado nesses três personagens, aqui vão algumas sugestões: sobre Trotsky, além de Deutscher, é preferível que leia até uma obra de ficção como "O Homem que Amava os Cachorros", do cubano Leonardo Padura, muito mais interessante do que os livros de alguns historiadores oficiais.
Sobre Lenin e Stalin, ninguém é melhor do que Slavoj Zizek, ainda que sua obra "As Portas da Revolução" cubra apenas um período da vida de Lenin, os preparativos e o desfecho da revolução e "Em defesa das causas perdidas", Stalin é mais um dos inúmeros personagens que povoam o livro.
Algumas frases soltas sobre Lenin, Stalin e Trotsky, extraídas de livros e entrevistas de Zizek, mostram, mesmo em poucas linhas, a originalidade do filósofo esloveno:
"Precisamos retornar a Lenin de um modo crítico. Pensar e analisar os seus erros, para não repeti-los. Lênin foi um filósofo - primitivo e vulgar, mas um filósofo. Por esta via, retornamos a Marx, porém criticamente, com o intuito de repeti-lo de maneira diferente".
"Stalin e Hitler não foram iguais. A prova é a existência de dissidentes. Stalin teve a todo tempo de lutar contra quem o questionava. Muita gente dizia que ele tinha traído o comunismo autêntico. Trotsky é um exemplo. Não havia ninguém assim no nazismo, nenhum grupo questionando Hitler, dizendo que ele era traidor do nazismo autêntico."
"Na União Soviética, algo que originalmente era para dar na libertação do povo - a Revolução de Outubro - terminou em um pesadelo. Mas o objetivo inicial era outro. O nazismo era diferente. Os nazistas conseguiram exatamente o que eles queriam."
"A figura de Trotsky continua sendo crucial na medida em que ela representa o elemento que perturba a alternativa entre o socialismo (social) democrático ou o totalitarismo estalinista. O que encontramos em Trotsky, em seus textos e em sua prática revolucionária nos primeiros anos da União Soviética, é o terror revolucionário, o domínio do partido e assim por diante, mas de modo diferente do estalinismo. Foram as atitudes do Trotsky que impossibilitaram que sua orientação vencesse a luta pelo poder estatal."
Zizek não é especificamente um historiador, mas um intelectual, um filósofo com muitas preocupações e interesses, inclusive sobre a história.
Para completar: o melhor livro sobre a história do Oriente Médio não é de um historiador tradicional, mas de um jornalista atuante: Robert Fisk com sua monumental obra "A Grande Guerra pela Civilização"
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS.