Astrogildo, o organizador
Finjo que não o estou vendo, mas não adianta, ele me puxa pelo braço.
- E aí amizade, como vai essa bizarria?
O Astrogildo não muda essa frase de apresentação há 30 anos.
- Tudo bem
- Como tudo bem, virou hippie depois de velho?
Para o Astro, é assim que ele sempre foi chamado, como estou de calça de brim e tênis, sou um hippie. Ele está sempre de terno e gravata.
- E você, Astro, vai numa festa?
Confesso que minha resposta também não muda há anos.
Ele me conta então que está organizando um grupo de antigos revolucionários para discutir a questão política vista sob uma ótica espiritual e vai dando os nomes dos que já se comprometeram a participar da próxima reunião.
Enquanto vou ouvindo esses nomes, alguns dos quais, já imaginava no andar de cima, como gosta de dizer o Sérgio Gonzales quando anuncia que o cara morreu, fico pensando em qualquer desculpa para justificar que não pretendo entrar em grupo nenhum organizado pelo Astro.
Desde que nos conhecemos no ginásio do Julinho, o Astro sempre foi "O Organizador". Nas peladas do recreio, acabávamos por perder um tempo enorme, com ele dividindo os times por idade, tamanho e habilidade no jogo.
Como ele era o dono da bola, tínhamos que atender suas preocupações com a organização, mesmo que no fim sobrasse pouco tempo para o jogo.
No movimento estudantil seu grande feito foi organizar as tendências de esquerda, dando notas de 5 a 10 para cada um dos componentes dos grupos em função do seu comprometimento com a causa.
Certa vez, quase fui reprovado por ter faltado uma reunião para ir ao cinema ver um filme do Kubrick.
- De um diretor americano, ainda por cima, me criticou o Astro
- O filme é anti-militarista e o Kubrick é até um cara de esquerda.
- Não importa, você faltou exatamente no dia em que íamos decidir sobre a organização de um movimento de protesto contra o corte das verbas para o restaurante universitário.
Consegui, no final, uma nota 6 e fui aprovado, ganhando o direito de continuar participando do grupo organizado pelo Astro.
Subitamente, o Astro desapareceu. Disseram que ele tinha sido preso, torturado e até morto, mas ninguém sabia realmente dele, até que ele apareceu há uns 10 anos transvestido no Pastor Astrogildo, da Organização Religiosa dos Filhos da Ordem.
Como ele descobriu meu endereço ainda não sei, mas desde então a sua meta parece ser a de me incluir na sua organização religiosa.
- Sou ateu, Astro, você bem sabe disso.
- Não importa. A nossa organização é aberta para todos Você vai fazer parte do grupo dos ainda não convertidos. É um processo. Você começa nesse grupo e depois passa para os neo-convertidos, e finamente o grupo dos eleitos.
Prometo pensar no assunto para me livrar do Astro.
Quando me aperta a mão para a despedida, me deixa um cartão
Vejo que o cartão tem seu nome endereço e a frase, Ordem e Progresso. Ia comentar que ele estava plagiando o lema positivista da nossa bandeira, mas achei melhor cair fora porque senão o Astro iria desenvolver mais uma longa tese sobre a beleza das coisas organizadas.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS