Não existem mais marchinhas de carnaval, ou, se existem, ninguém as canta mais. No passado, um mês antes das chamadas "folias de Momo", as rádios já começavam a tocar as que seriam sucessos e uma revista, O Rouxinol, aparecia nas bancas para ajudar os "foliões", outra categoria social em extinção, a decorar as letras.
Está caindo de maduro o tema para alguns dos nossos sociólogos de plantão fazer um inventário desse Brasil da década de 50 cantado no carnaval, a se acreditar que as marchinhas representavam aqueles momentos onde se deixava de lado a hipocrisia, os bons costumes e se dizia o que realmente se pensava.
Vai aparecer então um País profundamente preconceituoso contra o homossexual em primeiro lugar:
"Se veste de baiana/ para fingir que é mulher/ vai ver que é, vai ver que é"
"Olha a cabeleira do Zezé / será que ele é? / será que ele é? / será que ele é bossa nova? / será que ele é Maomé? / parece que é transviado / mas isso eu não sei se ele é / corta o cabelo dele! / corta o cabelo dele! "
"Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão / de dia é Maria, de noite é João"
Contra os mais velhos:
"A pipa do vovô não sobe mais / a pipa do vovô não sobe mais / apesar de fazer muita força / o vovô foi passado pra trás"
Contra as liberdades femininas
"Mulher casada que fica sozinha é andorinha, é andorinha"
"Papai Adão, papai Adão/ Papai Adão já foi o tal/Hoje é Eva quem manobra/E a culpada foi a cobra/Uma folha de parreira/Uma Eva sem juízo/Uma cobra traiçoeira/Lá se foi o paraíso/Hoje é Eva quem manobra/E a culpada foi a cobra".
"Maria Escandalosa desde criança sempre deu alteração / na escola não dava bola, só aprendia o que não era da lição / depois, a Maria cresceu, juízo que é bom encolheu / e a Maria Escandalosa é muito prosa, é mentirosa, mas é muito gostosa / hoje ela não sabe nada de História e de Geografia / mas seu corpo de sereia dá aula de Anatomia"
Contra os negros:
"Tava jogando sinuca / uma nega maluca me apareceu / vinha com um filho no colo / e dizia pro povo que o filho era meu / não senhor, toma que o filho é seu / não senhor, pegue o que Deus lhe deu"
"O teu cabelo não nega mulata / porque és mulata na cor / mas, como a cor não pega, mulata / mulata, eu quero o teu amor"
A favor do consumo de drogas:
"Pode me faltar tudo na vida / arroz, feijão e pão / pode me faltar manteiga / e tudo mais não faz falta não / pode me faltar o amor, disso eu até acho graça / só não quero que me falte / a danada da cachaça"
"Seu delegado não quer que fume isso não, pode dar confusão no salão, mas bote mais um bocadinho que eu vou ao chão devagarinho"
"Você pensa que cachaça é água/ cachaça não é água não/ cachaça vem do alambique e a água vem do ribeirão".
Mas é claro que havia também muita marchinha com conteúdo social.
Vamos lembrar algumas:
"Marcha do Caracol", de Peter Pan/Afonso Teixeira: "Há quanto tempo não tenho onde morar/Se é chuva apanho chuva/Se é sol apanho sol/Francamente, pra viver nessa agonia/ Eu preferia ter nascido caracol/Levava a minha casa nas costas muito bem/Não pagava aluguel nem luvas a ninguém!/Morava um dia aqui, um outro acolá/Leblon, Copacabana, Madureira ou Irajá!"
"Pedreiro Waldemar", de Roberto Martins/Wilson Batista, aborda o tema pelo lado do protesto social: "Você conhece o pedreiro Waldemar?/Não conhece, mas eu vou lhe apresentar/De madrugada toma o trem da circular/Faz tanta casa e não tem casa pra morar/Leva a marmita embrulhada no jornal/Se tem almoço, nem sempre tem jantar/O
"Yes! Nós Temos Bananas" (João de Barro/Alberto Ribeiro): "Yes! Nós temos bananas/Bananas pra dar e vender/Banana, menina, tem vitamina/Banana engorda e faz crescer/Vai para a França o café/Pois é!/Para o Japão o algodão/Pois não!/Pro mundo inteiro/"Home"ou mulher/Bananas para quem quiser".Waldemar, que é mestre no ofício/Constrói o edifício e depois não pode entrar".
"Cordão dos Puxa-Sacos", de Frazão e Roberto Martins, que diz: "Lá vem o cordão dos puxa-sacos, dando vivas aos seus maiorais/Quem está na frente é passado pra trás/E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais/Vossa Excelência, Vossa Eminência/Quanta reverência nos cordões eleitorais/Mas se o doutor cai do galho e vai ao chão/A turma toda 'evolui' de opinião/E o cordão dos puxa-sacos cada vez aumenta mais".
Em 1950, na voz de Francisco Alves, a marchinha que embalou a volta de Getúlio Vargas ao poder foi "Retrato do Velho", de Haroldo Lobo/Marino Pinto:
"Bota o retrato do velho outra vez/Bota no mesmo lugar/O sorriso do velhinho/Faz a gente trabalhar, oi!/Eu já botei o meu/E tu não vais botar?/Já enfeitei o meu/E tu vais enfeitar?/O sorriso do velhinho/Faz a gente se animar, oi!"
Quem sabe, em vez de Getúlio, em 2018, possamos pensar no Lula e cantar
"Bota o retrato do Lula outra vez Bota no mesmo lugar.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS