O Dia da Purga

O direito de matar?

Quem é um ateu como eu,  pode tomar certar liberdades com Deus, que um católico praticante não pode.

Imagine que Deus entre em contato com você (pode ser aqui mesmo no facebook) e diz que não aguenta mais fazer a lista dos que vão morrer todos os dias - só de chineses, são milhões - e pede a sua ajuda.

Você vai poder fazer a sua listinha.

Confesse que pelo menos uma vez na vida você pensou nisso.

Mas quem você vai escolher. Não vale as obviedades - Moro, Temer ou o Luan, do  grêmio, se for colorado - essas Deus mesmo poderia fazer.

Aquele sujeito falando alto pelo celular no ônibus cheio? Ou aquele colunista sacana daquele jornal que você nem gosta de dizer o nome? Quem sabe aquela perua dizendo que "adooora" o Rodrigo Hilbert para sua amiga, mais perua ainda, na academia de musculação? Ou duas, mais o tal Rodrigo? Podia ser também o seu ex-amigo de Nova Prata, que escreve coaching, quando precisa declarar a profissão?

Enquanto você pensa nas suas escolhas, fique sabendo que alguém já pensou antes sobre isso e fez até um filme a respeito.

A história, aparentemente absurda, é o tema central de um desses filmes classe B, produzidos em série pelo cinema norte-americano para exibição nos canais de televisão.  A história do filme Todos os Crimes são Permitidos - Tente Sobreviver ( The Purge) - se passa no ano 2022, quando depois de muitos anos de aumento da criminalidade, com as prisões superlotadas, o governo dos Estados Unidos decide criar um dia onde tudo é permitido, esperando que as pessoas guardem para as 12 horas de desse dia todos os ajustes de contas, todas as vinganças recalcadas durante o ano e que vivam em paz os outros 364 dias.

É o dia da Purga, anunciado solenemente pela televisão, que explica que ele é uma decisão dos Novos Pais Fundadores da Pátria para permitir que todos os ódios acumulados durante o ano possam ser extravasados sem culpa e sem punições.

O filme, dirigido por James De Monaco, apesar do orçamento modesto e a presença de poucos atores conhecidos, é bem feito e tem uma enorme carga de tensão. Um vendedor de projetos de segurança para residências (Ethan Hawke), enriquecido pelo sucesso do seu trabalho, mora com a mulher e dois filhos adolescentes, na casa mais rica e fortificada de um condomínio fechado. A ação se passa durante as 12 horas da Purga, quando nas ruas ficam apenas as milícias de caçadores e suas presas.

Uma delas é um negro que foge de um grupo de justiceiros e acaba entrando na casa do vendedor de projetos segurança, porque o filho do dono, que observava a cena pela televisão, abre uma porta para ele.

Os justiceiros cercam a casa e exigem que o seu dono entregue o fugitivo sob pena de invadirem o local e matarem toda a família. Inicialmente, ele concorda com isso, consegue ferir e depois prender o fugitivo, mas no último momento decide resistir aos invasores.

O filme, na sua modéstia visual, consegue colocar em discussão algumas coisas muito interessantes. A primeira delas é a violência da sociedade americana, com a sua tradição de permitir que as pessoas andem armadas e que, de tempos em tempos, é sacudida por chacinas que não poupam nem crianças. Ela precisa ser então institucionalizada para que possa ser mantida sob controle pelo governo.

A outra é aquela noção, dramatizada por Bertrand Brecht: quando o perseguido é um negro, um judeu ou homossexual, como você não é nenhuma deles, pensa que está a salvo e por isso se omite de qualquer forma de protesto. Só que depois de liquidar o negro, o judeu ou o homossexual, os perseguidores vão se voltar contra você, que não quis tomar partido.

Mesmo vivendo na casa mais fortificada do condomínio, quando os vingadores se aproximam das portas e janelas da casa, o vendedor é obrigado a confessar a mulher que a segurança que ele vendia com sucesso para as outras pessoas no condomínio é relativa e que a rigor, não existem lugares totalmente seguros no mundo.

A violência histórica da sociedade americana é resolvida, simbolicamente, com a escolha de um dia onde tudo é permitido e no qual as grandes vítimas são, principalmente, os pobres e os não-brancos.  Quando se esgotam as horas da Purga, a televisão faz um balanço informando sobre os milhares de mortos nas grandes cidades e prometendo um ano de paz e segurança até a próxima Purga.

A outra questão, sobre a alienação que permite a alguns conviver com a injustiça, sem se envolver diretamente nos crimes, mas sem condená-los também. O recado do filme é que isso é impossível e que, em algum momento, será preciso tomar posição.

Quando são exibidos os créditos finais do filme, vozes em off, anunciam o primeiro telejornal da manhã,com as notícias da Purga. O governo diz que foi a Purga de maior sucesso nos últimos anos e que a bolsa começou o dia em alta, com as ações dos fabricantes de armas em destaque. Depois, vozes de pessoas surgem dando depoimentos, falado do sucesso da Purga em suas cidades, e de como ela foi importante para assegurar a paz nas cidades, até que uma última voz de homem diz:

"Mataram meus dois filhos. Eu era um americano orgulhoso do meu país. Não sou mais"

Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey