Repentinamente, a mídia corporativa dos Estados Unidos, que tem alimentado fundamentalmente a criminosa "Guerra ao Terror" baseada na discriminação através da demonização dos muçulmanos e árabes em geral, passou a se "indignar" com a histeria do novo ocupante da Casa Branca, Donald Trump, contra os muçulmanos, como se fosse algo novo no país ao norte do Rio Bravo.
"Ser muçulmano na América não tem sido fácil desde que as Torres Gêmeas ruíram. Os muçulmanos têm sido demonizados, humilhados, ofendidos e ostracizados pela elite política e por seus muitos instrumentos de eco através da mídia corporativa", afirma Catherine Shakdam, analista política do sítio de notícias norte-americano Mint Press, e diretora-adjunta do Beirut Center for Middle Eastern Studies. Para ela, a mídia nunca tolerou Trump, e agora usa os muçulmanos, uma vez mais, como bola da vez para atingir fins políticos."Esquecemos as muitas e graves violações dos direitos humanos e civis contra cidadãos norte-americanos por conta da sua fé desde o 11 de Setembro? Era culpa do senhor Trump tudo aquilo?".
A sociedade norte-americana sempre foi fortemente discriminatória, excludente especialmente em relação às minorias tais como negros e imigrantes, apesar do mito de ser aberta sem que inúmeros crimes contra essas minorias tenha perturbado a mídia predominante ao longo das décadas. A organização terrorista estadunidense Ku Klux Klan, que apregoa a supremacia branca e protestante de uma raça supostamente eleita por Deus para salvar o planeta, dedica-se ao extermínio de negros e imigrantes há mais de meio século sem encontrar grandes obstáculos. Agora com Trump, setores midiáticos e das classes média e alta dos Estados Unidos tratam de canalizar diferenças políticas - as do establishment que a sustentam, as mesmas que Trump tem desafiado desde a campanha presidencial - na questão da imigração.
Nesta entrevista, Catherine comenta o clima de histeria contra os muçulmanos nos Estados Unidos, o oportunismo midiático, e a posição do Islã em seu contexto mais amplo, à parte uma minoria extremista, em relação a atos de terror. E lembra que a mesma grande mídia que, como ela, condena Trump, por outro lado defende alegremente a mesma "democracia" norte-americana que elegeu Trump - para a analista, o mais perfeito "palhaço" dentro de um "circo" que é o establishment estadunidense.
Confira a íntegra da entrevista, a seguir.
Edu Montesanti: O que significa a eleição de Trump especificamente para os muçulmanos nos Estados Unidos? O que seus ditos e feitos representam para a comunidade muçulmana no país?
Catherine Shakdam: Lamento por esta tendência recente trombeteada pela mídia retratando-o como o anti-Cristo. Independentemente de os meios de comunicação aprovarem-no ou não, o senhor Trump foi democraticamente eleito para a Presidência - isso implica, inerentemente, que sua campanha, suas políticas e as questões que discutiu com a América ecoaram mais alto do que as postuladas por Hillary Clinton. Trump não é o Diabo, e faríamos bem em lembrar que a islamofobia existia muito antes de ele decidir concorrer à Presidência. Eu diria que o establishment, a estrutura do Estado da América tem muito a responder quando se trata de marginalizar os muçulmanos e outras minorias religiosas em relação a esse assunto. Há décadas, os Estados Unidos têm subsistido sobre um Estado de oposição e de rejeição a determinados grupos: comunistas, muçulmanos... Em cada etapa histórica, a América tinha que ter seus demônios para odiar e assustar seu público. Será que o senhor Trump é o novo bicho-papão?
Agora, garanto que o senhor Trump fez algumas declarações bastante chocantes sobre a imigração, o Islã, o terrorismo e a política externa em geral... Mas, novamente, poder-se-ia argumentar que o senhor Trump era suficientemente astuto para saber como jogar com seu público. A política norte-americana é um circo, e o senhor Trump é o palhaço perfeito. Ele é o único que morre de rir na Casa Branca hoje!
Devemos entender que esta súbita preocupação com o bem-estar dos muçulmanos nos Estados Unidos é uma tentativa, por parte da grande mídia, de deslegitimar e demonizar a administração de Trump no início. Olhando para as abominações anteriores às quais os governos dos Estados Unidos comprometeram-se, com forte apelo moral, eu preferiria ver um auto-confessado fanático assumindo suas posições, e ver o que ele faz... não poderá ser pior que as guerras de Obama e de Bush.
Ser muçulmano na América não tem sido fácil desde que as Torres Gêmeas caíram. Os muçulmanos têm sido demonizados, humilhados, ofendidos e ostracizados pela elite política e por seus muitos instrumentos de eco através da mídia corporativa.
Falamos sobre os direitos civis dos muçulmanos estarem no paredão diante de Trump como se as administrações anteriores os protegessem. Esquecemos as muitas e graves violações dos direitos humanos e civis contra cidadãos norte-americanos por conta da sua fé desde o 11 de Setembro? Era culpa do senhor Trump tudo aquilo?
Eu gosto do homem? Não, mas, novamente, não tenho que condená-lo tanto já que o povo norte-americano o elegeu, todos nós temos que seguir em frente e aceitar a opção democrática.
Como está a comunidade muçulmana nos Estados Unidos agora, dada a vitória de Trump e o anúncio da Ordem Executiva que proíbe a entrada de muçulmanos oriundos de sete países, barrada pela Justiça?
Ser muçulmano na América não tem sido fácil desde que as Torres Gêmeas caíram. Os muçulmanos têm sido demonizados, humilhados, ofendidos e ostracizados pela elite política e por seus muitos instrumentos de eco através da mídia corporativa, de modo que o intervencionismo militar poderia ser vendido como solução para um público temeroso.
Aqui está o problema que acredito que temos: temos um problema semântico. Quando o senhor Trump falou contra o terror - e garanto-lhe que ele não é o mais eloquente nem o mais sofisticado dos oradores -, ele realmente se referiu ao wahabismo - a religião estatal da Arábia Saudita (uma das maiores violadoras dos direitos humanos em todo o mundo, aliada histórica dos Estados Unidos). Não é tanto o Islã, a fé que Trump ataca, mas sim o wahhabismo como uma construção política fascista, violenta e repressiva.
Se queremos admiti-lo ou não, é verdade que grande parte do mundo ocidental foi infectado pelo wahhabismo - a própria ideologia que inspirou as opções da Al-Qaeda, do Estado Islamita, do Boko Haram e outras organizações terroristas.
Temos visto muçulmanos sendo uma das piores vítimas de violência e todo tipo de discriminação nos Estados Unidos ao longo de todos esses anos, desde 11 de setembro de 2001. Sua comunidade é perseguida e espionada, a maioria das pessoas que professam sua fé, considerada terroristas em potencial. O que você pode dizer sobre esse cenário, Catherine?
Os muçulmanos têm sido, há muito, determinados como os inimigos do Estado. Por mais de uma década, os governos e as mídias corporativas têm jogado com a ideia de que o Islã é uma religião estrangeira que existe em antítese ao mundo judaico-cristão. Aqui é onde a palha quebra as costas do camelo pois o Islã, tanto quanto o Judaísmo e o Cristianismo, nasceu no Oriente Médio. Por definição, todos os três abraâmicos são, portanto, estrangeiros para o Ocidente.
Eu acredito mesmo que a demonização do islamismo está enraizada no neocolonialismo e neo-imperialismo. O Ocidente gosta de se criar inimigos para justificar suas políticas agressivas. Os muçulmanos são, somente, as últimas vítimas.
Muitos dizem que a comunidade muçulmana deve condenar mais contundentemente ataques jihadistas em todo o mundo, o que significa dizer, segundo tais vozesm que sua comunidade tem sido omissiva ou mesmo conivente diante da violência em nome da religião. O que você pode dizer sobre isso?
A realidade é que os muçulmanos sempre condenaram o terrorismo - a mídia escolheu, simplesmente, olhar para o outro lado... Isso faz com que uma TV de maior audiência faça de conta que os muçulmanos estão lá fora, agachados na escuridão, esperando o momento certo de atacar as pessoas mais inteligentes.
Os muçulmanos, mais do qualquer outro grupo religioso, tem sofrido pelas mãos do wahhabismo. Os muçulmanos foram perseguidos pelos wahhabis por longos séculos para, apenas agora, fazerem como vítima o Ocidente.
Estudiosos, intelectuais, autoridades do Estado, inúmeras figuras públicas aparecerem e falaram publicamente contra a exclusão religiosa, contra o wahhabismo, o contra salafismo... Somente neste ano o Gran Mufti de Al-Azhar do Egito (mestre local da sharia) rejeitou a ideia de que o wahhabismo é parte integrante do Islã. O mundo escolheu ignorar! No Iêmen, no Bahrein, no Iraque, na Síria... Milhões de pessoas pediram o fim do terror, do wahhabismo e, ainda assim, o Ocidente insistiu em fortalecer a aliança com aqueles poderes que que abraçam o wahhabismo.
Sejamos honestos: se é culpa que queremos atribuir a alguém, o Islã não clama por homicídio nem por derramamento de sangue. Este ridículo argumento de que o Islã ordena aos muçulmanos matar os assim chamados incrédulos, é insanidade. Não, onde ele diz isso?! Você não pode tirar versos do Alcorão fora do contexto mais amplo, e esperar argumentar de maneira real.
Agora, não estou dizendo que todos os muçulmanos são perfeitos, longe disso. Mas precisamos realmente definir a premissa de nossa argumentação sobre o radicalismo, deixando o Islã - a fé, fora dele e concordando, em vez disso, que o que estamos lidando é com um culto maléfico: o wahhabismo.
Há muitos preconceitos contra os muçulmanos hoje em que o público ainda associa a fé a uma nacionalidade. Não suporto decepcionar a muitos, mas como o Cristianismo, o Judaísmo, o Budismo e outros tipos de fé que você pode pensar, associando-as à etnia e à nacionalidade, são irrelevantes. O Islã não é uma tribo!