Uma das manifestações mais vivas da realidade cultural de uma nação e da identidade do indivíduo, a língua, está sempre em transformação de acordo, exatamente, com as relações sociais e não com as vontades dos gramaticoides de plantão, geralmente instrumentos de opressão linguística que não incluem em seus estudos, excessivamente teóricos, as implicações sociais envolvendo o idioma em questão.
Edu Montesanti (*)
Estes, estudam a língua de maneira estática, a gramática pela gramática que se encerra na própria gramática, não tendo a sociedade como referência, autêntico sujeito da história: a sociedade e a própria história são objeto da gramática. Portanto, apregoam, deve-se adequar sua realidade, sua história, seus sentimentos, sua personalidade a ela. Em outras palavras: deve-se se submeter ao que lhe é ditado por seres completamente afastados de sua realidade cultural. No caso do Brasil, escravizado em pleno século XXI pelas regras e pela cultura lusitana que não é a nossa.
Como a sociedade brasileira é altamente polarizada e discriminadora, em todos os aspectos (regional, étnico, sexista, de gênero, de classe), tal caráter acaba se refletindo, invariavelmente, em um tipo de fragmentação e de preconceito que permeiam a sociedade ao mesmo tempo que acabam passando desapercebidos diante do forte apelo moralista e da reivindicação intelectual que os discriminadores trazem em seu bojo: a discriminação linguística, fortemente opressora.
A polarização, que se evidencia de maneira inconteste nestes efervescentes dias no Brasil, tem atingido inclusive linguistas das mais diversas vertentes, radicalizando cada vez mais ambos os lados. Se por um lado é inegável que a língua bem falada não pode ter como parâmetro a literatura portuguesa do século XIX, que possui peculiaridades regionais (regionalismos) absolutamente necessárias que devem ser preservadas e que, conforme já observado, ela se transforma (evolutivamente, espera-se) como reflexo das mais diversas experiências passadas de geração a geração (este é o conceito de cultura), por outro é inaceitável se justificar a língua mal falada neste quesito.
E exatamente isso tem ocorrido no Brasil: acentuada polarização entre gramaticoides - indivíduos de mentalidade elitista, a qual se transfere para a esquizofrenia linguística - e, digamos assim, os populistas que, no afã de ganhar adeptos na raivosa briga que atinge a classe dos linguistas, apela inclusive para, "quem está defendendo tal ideia linguística são os mesmos golpistas conservadores que saem às ruas hoje contra o povo", a fim de estigmatizar toda e qualquer divergência (embora exista um grande fundo de verdade nisso, o que será abordado a seguir).
Evidentemente, existe um limite entre regionalismo, entre a realidade cultural de uma comunidade/nação, isto é, aquilo que se configura como perfeitamente aceitável dada a realidade inclusive daquela elite intelectual específica (segurem na cadeira, o "noi fumo" do campo paulista, por exemplo, tendo como célebre representante Adoniran Barbosa), e determinados atentados que não podem ser tolerados ("tu qués" mesmo entre a elite econômica catarinense, por exemplo, ou o "dar ele para eu"). Este é o motivo de choque entre as vaidades dos linguistas hoje.
'Presidenta' ou 'Presidente'?
O furor gramatical dos últimos anos no Brasil tem estado principalmente voltado ao uso de "presidenta" ou "presidente", desde que Dilma Rousseff ganhou as eleições presidenciais em 2010. Dilma solicitou que lhe fosse aplicado o primeiro caso, suficiente para que uma das elites econômicas, auto-creditada nata intelectual das mais ignorantes do globo passasse a se manifestar de maneira tão contrária quanto o forte caráter que os marca: exatamente a ignorância dos fatos que alardeia dominar.
As classes média e alta têm causado grande polêmica sobre isso, que toma conta das faculdades de Letras e de Comunicação Social de péssimo gosto no Brasil - em sua maioria contrários, indignados diante do uso de 'presidenta'. Trata-se de mais um tema em que simplesmente não há diálogo, mesmo entre estudantes e profissionais da área das letras e da comunicação.
Pois trata-se também de mais um preconceito que, contra a "presidenta" Dilma, manifesta-se desde que assumiu o Palácio do Planalto das mais diversas maneiras; na verdade, todas as mulheres em um país, conforme apontado, altamente machista que permeia todos os segmentos da sociedade, da classe D à A.
O que a nata intelectual tupiniquim ignora (também) sobre o uso de "presidenta", é que esta forma feminina foi aprovada por lei federal número 2749, no ano de 1956. Embora não haja consenso entre linguistas, ambas as formas acabam sendo aceitas, feminina e masculina. Contudo, no sentido estritamente gramatical, a regra manda aplicar a forma feminina. No idioma espanhol, por exemplo, apenas "presidenta" é admitido para mulheres.
Ao longo da história, algumas formas masculinas têm encontrado resistência em serem usadas oficialmente no feminino justamente pelo caráter sexista das sociedades globais. Entre a sociedade brasileira, especialmente entre linguistas o termo "engenheira", utilizado pela primeira vez e aprovado nos idos do século XIX, gerou indignação inicial. Hoje, apenas a forma feminina é aplicada às profissionais da área do sexo feminino.
Como nos mais diversos casos atualmente no Brasil, que caminha de mal a pior, nossa elite do bem-dizer e do alto-saber, nesta questão do uso de "presidenta" ou "presidente", para não perder o costume tem se fundamentado em letra morta - mas aqui, o que tampouco é exceção, com um q de ironia que marca de maneira bastante peculiar tais caçadores de bruxas: a mesma gramática à qual agressivamente se apegam (apenas de maneira teórica) para atacar e discriminar, a contradiz.
Também para o bom uso da nossa língua, o brasileiro anda precisando de livros, sim (e urgentemente), mas muito mais que isso: carece do exercício da cidadania que requer sentir o cheiro do povo. Isso tudo faz lembrar a ideia de Jesus aos fariseus de sua época, a cúpula religiosa conservadora, parasitária e corrupta: Quanto mais estudam menos sabem, e mais se distanciam de suas causas. Foram os próprios religiosos, mais estudiosos que esperavam pelo Messias, os que mataram Jesus fechados em suas letras mortas, tornados míopes por suas ideias pré-concebidas que produziam intolerância. Tropeçaram fatalmente naquilo que tanto usavam para atacar ao próximo.
Contextualizando tal realidade à brasileira dos tempos atuais, é exatamente nossa elite econômica e bem educada nas faculdades, que comercializam diplomas e formam grandes imbecis à sociedade, que estão matando nossa democracia acarretando, no futuro próximo, mais retrocesso cultural. De novo...
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(*) Edu Montesanti é professor de idiomas, comunicador e escritor, autor de Mentiras e Crimes da "Guerra ao Terror"(Ed. Scortecci, 2012) / www.edumontesanti.skyrock.com