Fábula no Atacama (Parte 3)

Antecipe-se ao lançamento da fábula "O urubu faminto e o preá agonizante", acompanhando a revisão do roteiro, emocionando-se e, se possível, sugerindo alterações ou inserções de cenas, diálogos, sequências, temas musicais ou qualquer outra ideia que possa contribuir para o aperfeiçoamento desta praticamente perfeita obra cine-literária.

Fernando Soares Campos

Creem os materialistas que o pós-morte é apenas uma passagem para o vazio, uma viagem ao nada, sem volta. Ou mesmo uma viagem sem volta ao nada. Porém, para os religiosos, o último suspiro liberta a alma da pesada matéria que a aprisiona a este mundo e lhe dá acesso à verdadeira vida, paradisíaca ou infernal. Quem morrer verá. Ou não, conforme creem os materialistas. 

Também dizem que os moribundos fazem retrospectivas mentais de suas existências, recordando seus principais feitos e desfeitos; porém, o que teria um preá agonizante a relembrar? Provavelmente as roeduras de cada dia e os chiados de cada coito, entretanto este não é o caso de um fabuloso preá turista brasileiro perdido nos confins do Vale da Morte, no Deserto do Atacama. O nosso preá agonizante tem histórias pra contar, pois incríveis aventuras viveu e tantas outras, fantásticas, ouviu.

003 - Deserto do Atacama - Vale da Morte - noite 

Com a chegada da estrelada noite atacamenha, o urubu faminto recolhe-se ao topo de uma das elevações que ladeiam o corredor do Vale da Morte; enquanto o preá agonizante, acomodado numa pequena depressão do terreno, adormece e sonha revivendo os mais felizes momentos de sua infância nos arredores de Taubaté, interior paulista. 

Flash-back 

Efeitos especiais: close do preá adormecido, a imagem ondula, ondula, ondula... até que, estável, exibe a mãe-preá chegando ao ninho. 

Os quatro filhotes, entre eles o nosso protagonista, tateiam na semiescuridão do lar, ávidos pelas tetazinhas maternas. Seus três irmãos se apoderam dos bicos mais fartos, na parte traseira, sobrando-lhe as glândulas menos lactíferas, próximas às patinhas dianteiras da mãe. Por isso ele se tornou o filhote mais franzino da ninhada, e os seus irmãos o consideravam um tolo, visto que nunca disputava a fartura das mamas da retaguarda. Porém o que nenhum deles percebia era que a sua atitude, aparentemente passiva, tinha objetivos pragmáticos: naquela posição ele, bem ou mal, alimentava-se e, de lambujem, gozava as carícias da mãe-preá, deleitava-se com as lânguidas lambidas maternas. Contudo, além do conflito edipiano e da necessidade alimentar, o preazinho mirrado preferia a primeira fila porque a sua mãe lhe contava maravilhosas histórias de ninar, e, estando ali bem próximo da fonte sonora, ele não perdia um só trecho dos fascinantes contos que a mãe-preá narrava com a competência de uma Sherazade. 

Plano geral: a mãe-preá deitada e os filhotes sugando-lhe as mamas com sofreguidão. Corta para close do preazinho franzino, único a sorver com parcimônia. 

Mãe-preá: - Era uma vez... 

Fim do flash-back 

Close do preá fazendo bico em movimento de abre e fecha, como se estivesse numa pega de sugar. Ele desperta piscando seus olhinhos de rato. O breu da noite atacamenha o traz de volta à realidade, e o doce sonho se transforma em  melancólica lembrança. Uma lágrima brota no canto do olho esquerdo, enquanto o direito se agita, dilata-se e vê a gotícula crescer, rolar e precipitar-se no ar, cintilante, em câmera lenta... A miúda língua do preá agonizante surge estendendo-se progressivamente, milímetro a milímetro, quadro a quadro, e a gotícula se choca sobre ela, fragmentando-se espetacularmente em tantas outras partículas...

Contrarregra: Ploc!

A minúscula língua, ágil, se recolhe... 

Contrarregra: Shupt! 

Legenda (as palavras surgem uma a uma): 

AS  LÁGRIMAS  LAVAM  A  ALMA 

E  EVENTUALMENTE  SACIAM  A  SEDE 

Não se sabe bem qual a razão predominante, se a saudade ou a sede, mas naquela noite estrelada o preá chorou até o amanhecer. 

004 - Deserto do Atacama - Vale da Morte - dia 

O preá está ali, indefeso, prostrado, exausto, não lhe resta força para mais um passo. Desidratado, já não sua, e as amarguradas horas de choro pela madrugada secaram suas glândulas lacrimais, portanto está desprovido de qualquer fonte para saciar a sede.  Aplica intenso esforço e consegue erguer seus olhinhos de rato. O olhar vagueia pelo céu azul anil atacamenho. 

Ponto de vista: o urubu faminto planando em círculos espiralados, agourento. 

Sonoplastia: tema musical do urubu faminto: "El condor pasa".

Subitamente o preá ouve uma voz cavernosa e ecoante:

Voz cavernosa e ecoante: - Preeeááá... á... á... á... 

Preá Agonizante: - Deus?! Ó, Deus, onde estás que não te vejo?! 

Voz cavernosa e ecoante: - Que Deeeuusss, que naaada, seu babaaaca! ...aca! ...aca! ,,,aca! Eu sou a sua pulga... atrás da orelhaaa... a... a... a... Seu idiota... ta... ta... ta... 

Provocada pelo instinto de sobrevivência, uma hipercorrente bioenergética percorre o corpo do preá agonizante, produzindo-lhe um hiperreflexo na patinha direita-dianteira, que avança sobre a orelha esquerda, alcançando a pulga pela ponta de uma de suas garrinhas e levando-a, rapidamente, à boca. 

Contrarregra: Kleck! 

Legenda: Moral parcial: Nunca perca a oportunidade de se passar por Deus, quando alguém assim o considerar, mesmo que você seja apenas uma pulga arrogante. 

005 - Deserto do Atacama ─ Vale da Morte - meio da tarde

Sol escaldante, rajadas de vento transportam sucessivas nuvens de poeira. O preá desperta da sesta após sua pulguíssima refeição, pisca seus olhinhos de hamstere vê aquilo que mais temia: o urubu faminto pousado na borda de sua cavidade-abrigo, observando-o. Pensou em cumprimentá-lo, porém imaginou que desejar uma "boa tarde" poderia soar-lhe ironia. Optou por apenas murmurar um "oi!", mas o faz num tom extremamente pesaroso, tanto que o urubu achou que ele estivesse gemendo de dor. 

- Croooac?! - perguntou o urubu. 

- Falo sim, sou poliglota, mas preferia que conversássemos num dos idiomas humanos. Você fala português?

- Rouc! - respondeu em urubuês, mas logo corrigiu: ─ Ah, desculpe... Falo sim! Sou brasileiro, também sou multilíngue e experiente ator, já trabalhei em diversas fábulas.

-  Céus! Minhas suspeitas estão se tornado realidade!

─ O que você quer dizer com isso?!

─ Tenho a impressão de que já vi você no telão. Atuou em "O urubu e o papagaio"? 

- Fui o único intérprete, fiz duplo papel. 

- Assisti... e jamais esqueceria o perfeito desempenho de ambos os personagens. Só não entendo como conseguiu tal proeza... 

- Caracterizado como um louro falador e sob a minha própria identidade. O resto ficou por conta de efeitos especiais, jogo de espelhos. 

- Bem, eu queria saber mesmo é como conseguiu representar, numa mesma obra, personalidades tão diferentes e, até certo ponto, antagônicas.

- Fiz laboratório. 

- Laboratório?! Onde? 

- Brasília... 

- Ah, Brasília! Congresso Nacional?

- Sim, duas semanas na Câmara e uma no Senado. 

- Nossa! Deve ter assimilado muitas facetas! 

- Realmente, hoje sou considerado um ator multifacetado. 

Apesar de conhecer a natureza necrofágica do urubu, o preá agonizante não ignorava o ditado "o apressado come cru" e temia que, para um urubu faminto, isso pudesse traduzir-se em "o esfomeado come vivo". Precisava distraí-lo. E não havia melhor maneira que apelar para o ego de um ator vaidoso. 

- Eu daria meus últimos momentos de vida para assistir a uma de suas apresentações ao vivo. 

O urubu faminto expressou gesto de falsa modéstia: encolheu-se e moveu a cabeça para os lados, mantendo um sorriso encabulado no bico torto. 

- Pena que não tenha aqui comigo um pedacinho do couro da minha última refeição, pois eu poderia lhe dar um autógrafo.

O preá se abala com a real possibilidade de vir a ser a próxima refeição do urubu faminto.

- Não! - engasgou-se. - Quer dizer, não mereço tanto... Sou um reles preá em extinção... Provavelmente o último da espécie aqui no Atacama. Ficaria satisfeito se pudesse assistir a algumas de suas performances. 

O urubu olhou para o preazinho moribundo e, baseado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, decidiu atender o último desejo de um condenado à morte. 

- Está bem. Veja esses trechos de "Um urubu no Planalto Central". 

Fazendo poses, caras e bicos, o urubu finge atender ao telefone, conceder entrevista, discursar numa tribuna, assinar papéis, interrogar em CPI... Por último, a melhor de suas interpretações: embolsar propina, propina, propina... de dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta por cento...

Tão distraídos estavam que foram surpreendidos pelo entardecer anunciando mais uma estrelada noite atacamenha. O urubu faminto despediu-se, recolhendo-se ao topo da montanha, onde, pacientemente, aguardaria a sua refeição atingir o ponto ideal. 

O preá agonizante, saudoso e sedento, chora. Não se pode determinar a razão predominante, se saudoso ou sedento, ele apenas chora a noite inteira. 

***

Episódios anteriores:

e

Ilustração AIPC - Atrocious International Piracy of Cartoon

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey