Economistas erram ao pensar que a racionalidade humana consiste em aplicar os próprios meios eficientemente para alcançar os próprios objetivos. Não há dúvidas de que a aplicação eficiente dos recursos disponíveis na busca de determinados objetivos é dimensão importante de nossa razão. O erro começa quando economistas, e os que são influenciados por eles, assumem que a racionalidade só teria a ver, exclusivamente, com isso.
Esse tipo de abordagem instrumental do significado da Razão subestima muitíssimo o ingrediente da razão humana que, provavelmente, faz de nós animais excepcionais: a capacidade para submeter a exame racional nossas metas e nossos objetivos. Para nos perguntarmos a nós mesmos outras perguntas, que não, exclusivamente, "devo investir em títulos ou em ações?", mas também outras, como "Gosto de X. OK, mas me interessa gostar de X?"
Esse verão, nossa alma e nossa integridadde, como europeus, enfrentaram desafios enormes. O influxo de refugiados testou nossa humanidade, e nossa racionalidade sente o peso de ter de fazer escolhas dificílimas. Quase todas as nações europeias e respectivos governos fracassaram espetacularmente no teste da história. Fechar fronteiras, deter trens, tratar pessoas desesperadas como se fossem ameaça mortal, admitir discussões as mais descompensadas dentro da União Europeia sobre quem teria de suportar o maior peso -, tudo isso considerado, a Europa agiu de modo abominável, o que levou o primeiro-ministro italiano a exclamar horrorizado: "Se a Europa é isso, não quero ser parte da Europa."
Um país destacou-se, mostrando a sua liderança moral nessa questão: a Alemanha. A visão de milhares de alemães recebendo respeitosa e afetivamente tantos refugiados em situação tão precária, e que haviam sido rejeitados em vários países europeus, é visão a saborear e da qual se pode colher ainda muita esperança. Esperança de que a alma da Europa não esteja completamente corrompida para sempre. A liderança ponderada da chanceler Merkel nesse assunto, até a atitude magnânima de tabloides alemães tantas vezes misantropos, resistentes à entrada dos refugiados, são pontos que ainda resistem contra o total fracasso da Europa ao enfrentar a crise humanitária em curso.
Muitos imputaram motivos menos dignos à generosidade dos alemães. A demografia problemática da Alemanha pode ter contribuído para que o país facilitasse a entrada de sírios relativamente jovens, altamente motivados e a maioria deles muito bem educados e formados. Guntram Wolff, no Financial Times, construiu recentemente uma comparação histórica com o influxo, no século 17, para o estado d Brandenburgo, de protestantes franceses refugiados, que trouxeram com eles habilidades e dinamismo. Empregadores não têm o que lamentar ante a ideia de mais trabalhadores, acréscimo que pressionará para baixo os salários; e macroeconomistas tentam calcular o custo fiscal do sistema de bem-estar em relação aos benefícios econômicos, que advirá de um aumento na demanda agregada.
Mas essa análise cínica de custo-benefício passa sem a ver, pela questão central. Claro que, sim, há benefícios da imigração -, e só os racistas discordam. Países alvos de imigrantes (EUA, Canadá e Austrália são exemplos vivos) são os que auferiram maiores e imensos benefícios líquidos; os países que os próprios cidadãos deixam para trás sempre sofrem. Mas isso é verdade para todas as nações em claro processo de envelhecimento populacional na Europa Central e Nordeste da Europa. Por que, então, só a Alemanha e os alemães receberam com boas-vindas entusiásticas os refugiados? A resposta, é claro, nada tem a ver com economia. Se se veem repercussões econômicas positivas, são meros subprodutos de outro tipo de motivação que levou os alemães a abrirem as fronteiras e o coração aos refugiados. Que motivação é essa?
Estudantes de filosofia podem ser tentados, como eu, a buscar a resposta num dos grandes presentes que a Alemanha fez a toda a humanidade: a filosofia de Immanuel Kant. Diferente dos economistas e dos filósofos anglo-celtas, Kant não se satisfaz com explicações instrumentais do que signifique agir racionalmente. Essas explicações são boas para gatos e robôs sofisticados. Não para humanos. Os humanos temos uma capacidade para construir raciocínios morais que são o que são, não como resultado de dogma, mas da Razão Pura.
A Razão Prática de Kant exige que empreendamos ações tais que, quando generalizadas, elas gerem efeitos coerentes. Mentir, por exemplo, não pode ser escolha racional porque, se se universalizar a mentira, se todos tiverem de mentir todo o tempo, desaparecerá a confiança no que os outros nos dizem, e a linguagem perderá a coerência. É verdade, claro, que muita gente deixa de mentir por medo de que a mentira seja descoberta. Mas Kant não considera plenamente racionais essas razões instrumentais para não mentir. Em seu quadro mental, o racional e o moral fundem-se, quando desenvolvemos uma capacidade para agir pelo chamado "imperativo categórico": agir de modo universalizável, independente das consequências. Pena, mesmo, que o tenha escrito em termos tão enrolados!
Acolher refugiados é um desses atos universalizáveis. Ninguém acolhe refugiados porque esteja contando com lucros futuros. A evidência de que se pode vir a auferir grandes ganhos é irrelevante. O calor luminoso na alma, por ter feito a coisa 'certa', o empurrão na demanda agregada, o efeito sobre a produtividade - são, todos, grandes repercussões da racionalidade kantiana que há em cada um. Mas não são os motivos. Os atos racionais de cada ser humano, segundo Kant, não são determinados por ganhos ambicionados - essa 'utilidade' instrumental, que depende do que outros façam e de incontáveis contingências. Aí não há estratégia. Só a aplicação do raciocínio deontológico que exige que todos ajamos conforme regras 'universalizáveis'.
Claro que não há meio pelo qual provar, empiricamente, que a solidariedade alemã aos refugiados tenha sido de tipo kantiano, não alguma tentativa instrumental para se sentirem melhor com eles mesmos, para mostrar a outros europeus, para melhorar a demografia alemã. Seja como for, não me convencem esses argumentos cínicos, instrumentais. Vi incontáveis alemães em atitudes de extrema gentileza com refugiados rejeitados por outros europeus - e estou convencido de que opera aí algo que é, no mínimo, muito semelhante ao que Kant descreve.
Digo "muito semelhante ao que Kant descreve" porque o comportamento kantiano completo não se vê nem na Alemanha, nem é necessariamente desejável. Há momentos em que boas pessoas precisam mentir (por exemplo, se carecas nazistas armados com correntes interrogam você sobre o paradeiro de uma pessoa negra que aqueles skinheads estão caçando) e há vários campos nos quais as atitudes germânicas estão muito longe de ser consistentes com o pensamento kantiano.
Verdade é que, nesse verão, houve outra ocasião, quando a Europa ultrajou a própria integridade e maculou a própria alma: aconteceu nos dias 12-13/7, quando o governo de um pequeno país europeu, a Grécia, foi ameaçado de ser expulso da Eurozona, se não aceitasse um programa de reforma econômica no qual ninguém realmente crê (nem a chanceler Merkel), nem há quem espere que ele possa aliviar o colapso do meu país, que já se arrasta há tanto tempo, nem a desesperança que vem com o colapso. Naquele momento, não estava em jogo nenhum princípio universalizável. E o resultado foi que uma nação orgulhosa teve de se render a um programa econômico sem lógica, qual toda a Europa, inclusive a Alemanha, pagará alto preço.
Aqui não é lugar para recontar os eventos da infindável crise grega. Nem é preciso recontá-los, porque a causa nada teve a ver com a Grécia.
A real razão pela qual a Grécia continua a implodir, enquanto Berlin e a troika insistem num programa 'de reforma' que empurra o país cada vez mais para o fundo de um buraco negro e lá o mantém desesperantemente sem reforma alguma, é que o governo alemão ainda não decidiu o que quer fazer da Eurozona.
Berlin sabe bem que, como é hoje, a Eurozona não é viável. Tem de passar por grandes reformas. Terá de incluir mecanismos para reciclar os superávits das regiões onde eles existam, para as regiões onde haja déficit. Mas infelizmente Berlin ainda não formou opinião sobre que reformas devem ser essas, sobre que forma de união política europeia a Alemanha quer, nem como convencer Paris a prosseguir com suas prioridades. Assim, enquanto os elefantes franco-germânicos lutam, a pequena Grécia vai sendo esmagada, à espera da 'solução' desse confronto interminável. No processo, milhões de gregos afundam no desespero, centenas de milhares de jovens adultos, homens e mulheres, saem do país. E a oligarquia festeja, explorando o impacto político criado pela rendição do nosso governo em julho.
Deixando de lado - por enquanto - o drama grego: a Europa precisa da liderança moral da Alemanha. Na questão dos refugiados ela lá estava, magnífica. Na questão de como lidar, no longo prazo, com a crise na Eurozona, ainda não se viu nenhuma liderança alemã. - De fato, é o oposto disso, com o governo alemão deixando-se arrastar pelos acontecimentos, só se manifestando no último momento, e só para tentar dar conta dos sintomas, nunca das causas.
O que Berlin deve fazer? Excelente começo seria aplicar o mesmo princípio kantiano evidente no caso da crise dos refugiados. A Razão prática de Kant quer que adotemos políticas que, se generalizadas, gerem resultados coerentes. Vastos superávits comerciais não podem ser 'generalizados'! Como no caso da mentira, garantir prosperidade econômica numa unidade monetária mediante exportações gigantescas em alguns países, aumentando a própria competitividade vis-à-vis outros países europeus, é medida que não passa pelo teste de Kant. E o mesmo vale para a cegueira intencional ante o fato de que o superávit de um é o déficit de outro.
É tempo de a Alemanha estender a liderança moral que mostrou na questão dos refugiados até a questão da arquitetura da Eurozona. Invocar Immanuel Kant para impedir que avance a autovisão incoerente, da Europa como chão de fábrica orientado para a exportação, já seria excelente começo.
14/9/2015, Yanis Varoufakis, Blog
(al. Deutschland, Die moralische Nation [Alemanha, nação moral], em Frankfurter Allgemeine Zeitung)