"... e surge também uma pergunta de um milhão de dólares: onde ficam os EUA no cenário que se desdobra no norte do Afeganistão, onde os Talibã voltaram a atacar? Para dizê-lo do modo mais gentil: a volta dos Talibã em ataques no norte do Afeganistão pode até, afinal de contas, não ser tão má ideia, do ponto de vista das estratégias dos EUA para 'conter' Rússia e China, ou das ações norte-americanas para 'mudança de regime' na Ásia Central."
A atual ofensiva dos Talibã no norte do Afeganistão, focada em capturar Kunduz, faz-me lembrar os dias finais, tensos e angustiantes, do tempo que servi como diplomata em Tashkent nos últimos anos da década dos 1990s, e os Talibã surgiram na região de Amy Darya, deixando um rastro de sangue, horror e vingança. Quando a cidade de Kunduz caiu sob controle dos Talibã daquela vez, dois fatores comprovaram-se decisivos.
O primeiro foi o tradicional predomínio do grupo Mujahideen Hizb-i-Islami liderado por Gulbuddin Hekmatyar (agente favorito dos Interserviços de Inteligência do Paquistão [orig. Inter-Services Intelligence, ISI durante a "jihad afegã") naquela região, onde vive população pashtun de dimensões consideráveis. O segundo foi a realidade, ali constatável em campo, de que a marcha inexorável dos Talibã para dentro da região de Amu Darya, depois que capturaram Cabul em 1996, era de fato operação dos militares paquistaneses, para ir empurrando (e eventualmente estrangulá-las nos estreitos confins do Vale do Panjshir) as forças residuais da Aliança do Norte lideradas por Ahmad Shah Massoud.
Esses dois fatores voltam à cena hoje - embora de modos diferentes. A verdadeira 'identidade' entre os Talibã e Hezb-i-Islami - que sempre foi muito rala (apesar da influência do ISI paquistanês sobre os dois grupos) e sempre intrigou muito a olho nu, porque as dinâmicas locais sempre entravam em ação no labirinto das políticas tribais e regionais; e dado o papel confuso dos "comandantes em campo" - continua a ser criticamente importante mesmo hoje.
De fato, a política durante a presidência de Hamid Karzai consistia em 'terceirizar' a segurança e as redes de inteligência para o Hizb-i-Islami, assim explorando os medos existenciais desses últimos de serem invadidos por enxames de Talibã. Evidentemente portanto, se o ISI continua a controlar o Hizb-i-Islami, o ISI poderia alterar a dinâmica no campo de batalha em Kunduz (embora o grupo insurgente esteja hoje relativamente muito enfraquecido, se comparado ao que foi nos últimos anos 1990s).
Claro, o resumo disso depende de onde, exatamente, está o serviço secreto paquistanês ante a atual ofensiva dos Talibã. A posição oficial do Paquistão é de que Islamabad não encoraja "o aumento da violência" que advém da ofensiva de primavera dos Talibã. Até aí, nada de novo. Mas o fato que realmente conta é que o ISI de modo algum poderia não ter percebido tamanho influxo de insurgentes, inclusive dos chamados combatentes 'estrangeiros' (chechenos, uzbeques, etc.), que cruzava a fronteira para dentro do Afeganistão para apoiar uma ofensiva prolongada, dos Talibã, contra Kunduz. Isso, principalmente quando estão em pleno andamento operações militares paquistanesas nas áreas tribais adjacentes.
Nesse caso, qual o plano de jogo dos serviços secretos do Paquistão? Será o caso de supormos que os Talibã escaparam completamente ao controle dos paquistaneses? Ou é o caso de os Talibã terem agora uma agenda própria? Ou os Talibã estão agindo a serviço de um ou outro ou vários outros serviços de inteligência? Isso, por um lado.
Há muitos indícios de que o clima das relações afegãs-paquistanesas possa deteriorar em breve, se o Talibã pressionar robustamente com a atual ofensiva. O jornal paquistanês Dawn observou que Kabul e Islamabad também abrigam mútuos ressentimentos:
"Há também a questão muito maior da reconciliação interna no Afeganistão que parece não estar avançando - impasse que está começando a tornar-se visível em termos de acusações nada diplomáticas que começam a ser ouvidas outra vez entre Paquistão e Afeganistão.
Do ponto de vista afegão, a abertura sem precedentes do presidente Ashraf Ghani para Islamabad não gerou a desejada cooperação em termos de usar a influência do Paquistão sobre os Talibã Afegãos, para empurrá-los até a mesa de negociações.
Do ponto de vista paquistanês, apesar da Operação Zarb-i-Azb, Operação Khyber-II e do massacre da escola em Peshawar, o estado afegão não respondeu com a presteza necessária às preocupações de segurança dos paquistaneses, nessa hora de necessidade. Confiança, como sempre, é item de oferta sempre pequena dos dois lados."
Claro que os Talibã, praticamente com certeza, há muito tempo têm uma agenda para a Ásia Central. Ninguém precisa contar novamente sobre o nexo entre os Talibã e os grupos militantes do Uzbequistão, Xinjiang, Caxemira e Norte do Cáucaso. Esse é o ponto no qual a atual ofensiva dos Talibã contra Kunduz, na qual os militantes da Ásia Central estão tendo, como já se sabe, papel chave, ganha seu significado regional.
A atual ação dos Talibã pode bem ter o objetivo de enfraquecer a capacidade da Rússia para resistir contra as tentativas dos extremistas para desestabilizar a Ásia Central e o Norte do Cáucaso. O controle sobre o norte do Afeganistão pode ajudar os Talibã - e seus grupos afiliados na Ásia Central - a negar "profundidade estratégica" aos grupos tadjiques e uzbeques nos estados vizinhos da Ásia Central. Tradicionalmente, a inteligência russa sempre trabalhou bem com esses grupos, na antiga oposição que sempre fizeram aos Talibã e a afiliados da al-Qaeda.
Por tudo isso, surge também uma pergunta de um milhão de dólares: onde ficam os EUA no cenário que se desdobra no norte do Afeganistão, onde os Talibã voltaram a atacar? Para dizê-lo do modo mais gentil: a presença dos Talibã no norte do Afeganistão pode até, afinal de contas, não ser tão má ideia, do ponto de vista das estratégias dos EUA para 'conter' Rússia e China, ou das ações norte-americanas para 'mudança de regime' na Ásia Central.
Leiam um colunista da revista National Interest, que explica o que a Rússia pode estar enfrentando: "ISIS em movimento: o mortal problema islamista, na Rússia". Significativamente, o presidente Putin "revelou" (porque era informação sigilosa), em entrevista à televisão, que a inteligência russa tem provas de negociações clandestinas, inclusive com troca de logística, entre os EUA e os separatistas chechenos. Mas aqui entramos em região de fumaça e espelhos.
Por fim, as "Iniciativas do Cinturão e Estradas" [as Rota(s) da Seda" da China, podem nem decolar, se tiverem de dar o primeiro passo nessas terríveis circunstâncias na Ásia Central.
Será que se viam ares de "xeque-xeque-mate" na manhã depois da recente visita do presidente chinês Xi Jinping ao Paquistão? Ou agora, às vésperas da esperada inclusão do Paquistão (e do Irã) como membros plenos da Organização de Cooperação de Xangai - o que converte esses dois estados regionais em garantidores da segurança e da estabilidade na Ásia Central?
Não há respostas fáceis. Entrementes, nos informam que o "Estado Islâmico" (EI) está trabalhando para renascer em Kunduz. Um comentarista afegão disse à rádio Deutsche Welle essa semana, que "o EI recrutou várias centenas de combatentes no Chardarra, distrito de Kunduz. O governador da província já confirmara a informação há alguns meses. Naquele momento, os funcionários disseram que o grupo poderia lançar algum grande ataque. Agora que já atacaram Kunduz, as autoridades confirmaram que aumentou muito o número de militantes estrangeiros em Kunduz, que lutam contra forças afegãs. Testemunhas oculares dizem também que é muito alto o número de jihadistasestrangeiros."
Não há dúvidas de que se devem, sim, considerar as mais sinistras possibilidades, sobretudo agora, quando os alemães já dizem insistente e veementemente que é indispensável uma 'instalação' de longo prazo, de militares dos EUA e da OTAN, no Afeganistão - independente do que desejem ou digam o povo afegão e os governos regionais.
1/5/2015, MK Bhadrakumar, Indian Punchline
http://blogs.rediff.com/mkbhadrakumar/2015/05/02/how-to-puzzle-out-Talibã s-bid-for-kunduz/