Botão do pânico

Alguém aí conhece Maryam J.? Não? Trata-se de uma iraniana que humildemente pediu a um tribunal uma decisão limitando as surras que leva do marido a apenas uma por semana, ao invés de todas as noites.

Por PEDRO VALLS FEU ROSA

Este episódio me trouxe à memória um outro, acontecido no Sudão. Duas mulheres foram condenadas a receber 20 chicotadas cada uma por usar calças compridas. Segundo constatei, o artigo 152 do Código Penal do Sudão prevê uma pena de até 40 chicotadas para quem "utilizar vestimenta indecente" - no caso, uma calça comprida!

Na Somália, recentemente uma mulher de 23 anos foi enterrada em um buraco, ficando apenas com a cabeça de fora, em uma praça da cidade de Kismayu. Em seguida centenas de pessoas a apedrejaram até que ela morresse. O crime dela: ter tido um relacionamento extraconjugal.

Antes que alguém diga ser este tipo de covardia "coisa de país atrasado", peço licença para fazer uma pequena viagem pelo mundo. Começo pela Inglaterra, onde um a cada sete habitantes acha aceitável bater na namorada - sim, já não falamos sequer em esposa, mas meramente em namorada!

 Na Índia, 37% das mulheres apanham dos maridos. Aliás, pobres das que habitam em Bihar - lá o índice de agredidas chega a inacreditáveis 59%! E o pior é que apanhar em silêncio pode ser um "bom negócio": das que ousaram protestar, 50% foram agredidas a chutes e 74,8% acabaram tentando o suicídio.

 Em Taiwan, 44% das mulheres apanham regularmente de seus esposos e companheiros. De todas estas, 33,7% se resignam face à absoluta ausência de proteção estatal - vão levando a vida "entre tapas e beijos", seguramente mais tapas do que beijos.

 Na Espanha, incríveis 84% das mulheres presas sofrem abusos físicos e sexuais. Diante desta monstruosidade, só nos resta acreditar que as 16% restantes são desprovidas de quaisquer atributos físicos que as tornem atraentes. Mais detalhadamente, 74% delas já levaram surras dos guardas de presídio, e 68% sofreram violência sexual.

 Pela Europa afora, entre 20% e 50% das mulheres passam a vida a levar tabefes, socos e pontapés de seus maridos. A cada semana uma delas morre. Parece incrível, mas naquele civilizado e invejado continente, berço da orgulhosa cultura ocidental, a violência doméstica é a principal causa de morte e invalidez entre as mulheres de 15 a 44 anos de idade.

 Mas isto não causa alarme na população: recente pesquisa de opinião pública realizada na Espanha concluiu, de forma chocante, que apenas 0,4% dos homens consideram este tipo de violência um problema grave.

Nos EUA, uma mulher é espancada pelo marido a cada 15 segundos. No Canadá, a despesa anual para tratar de esposas massacradas chega a US$ 1,6 bilhão de dólares ao ano. Na Rússia, 36 mil mulheres apanham dos maridos a cada dia. Na Inglaterra, a cada semana duas delas são mortas pelos seus parceiros. No mundo todo, 70% das mulheres assassinadas foram vítimas de seus maridos ou companheiros e 30% delas foram abusadas em algum momento da vida. Para completar estes números sinistros, 80% dos refugiados deste planeta são mulheres, das quais 85% vítimas de tráfico humano.

Diante desta realidade o que temos nós, brasileiros, feito? Quase nada, eis a verdade. Dizem, por exemplo, que apenas 1% do que acontece nas ruas do Brasil chega ao mundo das leis - um dos mais sérios problemas nacionais, entrave crucial ao nosso desenvolvimento, e lamentavelmente ainda sem o devido enfrentamento.

 

         Sem que o percebamos, vamos nos embrutecendo. O absurdo passa a ser apenas uma rotina desagradável, sobre a qual preferimos não falar. Basta dizer que a cada semana quatro semelhantes nossos são linchados nas periferias de nossas maiores cidades - uma rotina tenebrosa que já não é mais sequer noticiada adequadamente.

 

         Não faz muito tempo o sociólogo José de Souza Martins, da USP, catalogou 20.000 desses linchamentos - em apenas um caso houve condenação, um indicador claro do nível de cumplicidade de uma população que, ao longo dos últimos 50 anos, enviou nada menos que 500 mil de seus filhos para praticar a barbárie da justiça pelas próprias mãos.

 

         É neste cenário que se desenvolve o drama da mulher agredida - um cenário de atraso, de brutalidade, e igualmente de muita hipocrisia e omissão.

 

         Fico a pensar, neste momento, no que encontra uma vítima neste Brasil tão cristão! O sofrimento dela começa já nos hospitais, como recentemente declarou a presidenta Dilma Rousseff quando do lançamento de um sonho chamado "Casa da Mulher Brasileira": "queremos acabar com aquela história da mulher que acabou de sofrer violência ter ainda que enfrentar olhares desconfiados, o que só aumenta o trauma de quem já sofreu humilhações".

 

         Esta dor é ampliada dentro do mundo das leis, raramente preparado para lidar com dramas tão pungentes. Dos hospitais aos tribunais, é raríssima a existência de uma estrutura que procure oferecer um mínimo de conforto que seja.

 

         A este despreparo soma-se uma burocracia inclemente e sufocante, na qual privilegia-se o formalismo em detrimento da justiça. Neste mundo à parte, quase sempre isolado do dia-a-dia das pessoas, as teorias reinam absolutas, desprezando a verdade dura que desfila ali fora, do outro lado da rua.

 

         Torno público meu desencanto com este estado de coisas. Enquanto, por exemplo, juízes enviam ofícios para si próprios, um descalabro tão rotineiro como absurdo imposto por nossas leis, apenas 2% dos criminosos brasileiros cumprem suas penas até o fim - fico a me perguntar se, enquanto justiça criminal, existimos apenas como fator de dissuasão...

 

         Enquanto nosso sistema legal consome o melhor de suas forças a tratar de embargos, agravos, exceções e outros termos tão distantes da vida das pessoas, vai ficando para trás o Brasil dos nossos sonhos, tão decantado em prosa e verso.

 

         Não faz muito tempo calculou-se que nosso país deixa de gerar US$ 100 bilhões a cada ano só por conta da ineficiência do mundo das leis. Se este levasse sua eficiência até o nível alcançado por alguns países do mundo, o volume de investimento aumentaria 13,7%; o de negócios, 18,5% e o de empregos 12,3%.

 

         Mas preferimos mesmo o cômodo mundo da burocracia e das teorias - principalmente se importadas. É assim que ao aumento no número de leis e estruturas raramente corresponde algum aumento no que chamaríamos de "justiça".

 

         E segue a mulher - começou sua caminhada de vítima sem tratamento digno, e irá encerrá-la em companhia da mais triste impunidade. No mais das vezes, restará apenas o humilhante retorno para casa ou a fuga, pura e simples.

 

         À semelhança de Martin Luther King, eu também tenho um sonho. Eu sonho com o dia em que cada ser humano seja atendido com dignidade em cada endereço do mundo das leis. Eu sonho com o dia em que a justiça será superior ao processo. Eu sonho com o dia em que a impunidade será a exceção, e não a regra. Eu sonho com o dia em que a tortura cederá lugar à ressocialização. Eu sonho, finalmente, com o dia no qual o mundo das leis não ignore a realidade, deixando de ser por esta ignorada.

 

         Este dia não chegará amanhã. Nem daqui a uma semana. Ou um mês. Um ano que seja. Sinto, declarando-me um otimista, a necessidade do esforço de toda uma geração simplesmente para que comecemos a compatibilizar nosso mundo das leis às necessidades do momento histórico.

 

         Não faz muito tempo lançamos, aqui no Espírito Santo, a ideia do CIM (Centro Integrado da Mulher). Que através dele as vítimas de violência doméstica possam encontrar em um só local todos os órgãos envolvidos no tratamento legal do seu problema.

 

         E custa tão pouco! Um simples imóvel e boa-vontade, eis a receita. Seria pedir demais que cada município fosse contemplado com este mínimo necessário? Seria sonhar demais dar a cada mulher do interior pelo menos isso?

 

         Talvez seja, sim, sonhar demais - afinal, vivemos no mundo dos interesses paroquiais e das vaidades mesquinhas. Mas há que se sonhar!

          Hoje damos mais um passo à frente - um pequeno sonho que começa a virar realidade. A ideia é simples: uma engenhoca eletrônica que permite a gravação do que acontece no ambiente e bem assim avisa as autoridades sobre a ocorrência de ameaça e onde ela acontece.

 

         Sim, a ideia é simples - mas promete! Fico a imaginar quem insistiria em ímpetos violentos sabendo que tudo está sendo devidamente gravado, de forma a constituir prova judicial! Tenho, sim, profunda esperança neste projeto! Que, silenciosamente, ele salve muitas e preciosas vidas! Que seja abençoado, eis o que humildemente peço ao Criador.

 

         As coisas da vida passam, e passam muito depressa. Que ao final de nossas caminhadas possamos, com sereno orgulho, olhar para trás e dizer que, firmes contra o mal, pessoas de bem e do bem, tentamos fazer a nossa parte!

 

 

PEDRO VALLS FEU ROSA é Desembargador do Poder Judiciário Brasileiro, presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, Sudeste do Brasil.

 


Author`s name
Timothy Bancroft-Hinchey