As palavras são muito mais importantes do que se pensa. Existe uma ideia simplória que se repete por aí, e que é filhote de um certo pragmatismo bobo que vigora hoje em dia, que diz que "o importante é fazer e não falar". Porém, um olhar mais atento mostra a inocência dessa ideia, já que falar não é outra coisa senão "fazer algo". Inclusive gramaticalmente, já que é um verbo, designando assim uma ação. Não passa de mais um dos muitos mitos cotidianos que pululam por aí.
Por Marcelo Henrique Marques de Souza
As palavras são importantes não apenas por serem ações, mas também porque se cristalizam em "sentidos". Algumas palavras viram um sentido tão forte que resiste ao tempo e pode durar séculos, às vezes milênios. Além disso, podem servir tanto como mero veículo de apreensão das situações, quanto para fins ideológicos, tirânicos, ou mesmo para iludir indivíduos ou até multidões.
Há um livro bem divertido, que se chama "Ilusões Populares e a Loucura das Massas". Foi publicado no ano de 1841, pelo autor Charles Mackay, e tem uma edição brasileira de 2001, da Ediouro. Ler esse livro pode ensinar bem sobre o quanto uma palavra ou um certo sentido de uma palavra podem virar objeto de adoração fanática na cabeça das massas e, ao mesmo tempo, mecanismo de dominação nas mãos dos tiranos e malandros de plantão. Na Grécia antiga, Sócrates e Platão sacaram que era essa a lógica dos sofistas e tentaram contrapor-lhes o Bem filosófico. Não deu muito certo e hoje temos que debater a questão por outros meios. Isso porque o fato é que, se Mackay vivesse nos tempos atuais, talvez escrevesse um livro ainda maior, com os mitos do nosso tempo, um tempo no qual não faltam "sofistas", desde os marqueteiros até os pastores de igreja, passando pelos "políticos profissionais" e outros tipos de 171 que proliferam por aí, na esteira da decadência da educação de qualidade...
Um desses mitos é o da tal "homofobia", que virou febre na última década. Vale dar uma analisada mais rigorosa na palavra e no sentido que ela vem adquirindo, para pensá-la sem o embalo das ilusões populares.
Uma outra constante das massas de hoje é querer dar opinião em tudo. Isso é importante. Mas só traz coisa boa quando a pessoa estuda com rigor certos termos e conceitos. Quando um economista ou cientista abre a boca pra falar as suas besteiras na TV, todos param pra ver e repetem no dia seguinte como verdade absoluta. Isso porque a maioria adotou a TV como guru e a economia e a ciência como bíblias. Fazer um pouquinho do que o Foucault chamava de "Arqueologia do Discurso" ajuda a entender que isso não passa de repetição. O dia em que as massas forem convencidas de que existe algo mais atraente que economia e ciência, fazem curva em bando e partem pro outro lado, a repetir o novo mantra. A história ronca na rede de tão cansada de mostrar isso.
Entretanto, quando o tema é a sexualidade, a maioria tem a sua opinião, e no máximo aceitam versões que se parecem com as suas, quando elas vêm da boca de um desses psicológos midiáticos do Paraguai, escritores de auto-ajuda diplomados e fantasiados de pensadores e legitimados pelas nulidades da ocasião, os midialóides que posam de conselheiros dos apáticos massificados da nossa época. Ana Maria Braga e cia ltda...
Um dos mitos mais comuns é o de que a sexualidade é um problema de "escolha". Não é e a psicanálise é outra que está cansada de mostrar isso. Trata-se, ao contrário, de um problema que envolve a formação psíquica da pessoa e que tem raízes inconscientes que em hipótese nenhuma poderiam ser construídas por uma escolha autônoma. Qualquer estudante de graduação que lê a sério a formulação do Complexo de Édipo, do Freud, por exemplo, vai dizer: "É lógico que não se trata de escolha...". As reações das crianças aos estímulos paternos, os voluntários e os involuntários, são produto de bifurcações inconscientes que a mente faz e que, com a consumação do Complexo de Édipo, vão definir a sintomática da criança para o resto da vida. Isso se dá por volta dos cinco anos, o que nos leva ao óbvio de ter que pontuar que o ser humano nasce absolutamente assexuado. A genitália não garante uma repetição no nível secundário da cultura. O bichinho pode vir com pênis, mas por alguma bifurcação significante oriunda do Complexo de Édipo, virar "menina". Existem evidentemente as perversões culturais, mas no geral a sintomática não muda - mais que isso, é ela que rege a relação da pessoa com a sua genitália, e não o contrário.
Seria muito extenso aprofundar várias questões freudianas aqui. O leitor pode ler o próprio Freud e os autores que foram com ele dialogando, pra sacar os detalhes mais aprofundados. Mas vale dizer, para voltar ao nosso papo sobre as palavras, que com a psicanálise se dá uma redefinição de alguma termos, que não foi à toa. A epistême da psicanálise, ou seja, o seu centro de gravitação conceitual, empurra a leitura da gente para a consideração inevitável da psiquê como um aglomerado que se compõe como objeto-sujeito, sem uma exterioridade delimitável, mas também sem uma predominância do individual, já que o sentido é sempre produzido em outro lugar (na linguagem). Ver isso permitiu ao Freud, por exemplo, acessar a literatura e a arte, ao invés de ficar pensando como os neurologistas, que se esquecem da questão das palavras e ficam querendo achar o real em si mesmo. Vão procurar eternamente e não vão achar. Freud foi mais esperto e percebeu que no ser humano o que importa é a palavra (e a escuta que se faz dela) - e cuidado, porque se um crente malandro ler isso pode tentar te seduzir hein..
"Escutar", para a psicanálise, não é apenas virar o ouvido para o falante. É tentar apreender o sentido das palavras em sua complexidade, em suas entrelinhas, em sua história e em seus disfarces. E é isso que devemos fazer em relação a esse termo estranho que se repete todo dia, a tal "homofobia".
Dizem que "homofóbico" é aquele que tem "preconceito" em relação aos homossexuais. Há vários problemas aí: primeiro, toda opinião comum é um "pré-conceito". Se o conceito é a elaboração, tudo o que não é elaborado, é pré-conceito. Nesse caso, a própria ideia de que pode existir algo como um "crime de homofobia" não passa de um pré-conceito, já que ignora várias nuances da palavra. Outra questão que pode ser levantada é sobre a própria palavra "homossexual", já que a atração sexual é sempre uma só, "homo", no nível do sintoma. Não existe ninguém que no nível do sintoma seja "bissexual". Isso é inviável, a não ser na "perversionática cotidiana". Mas não vou aprofundar isso. Vale apenas pensar sobre as tais nuances da palavra "homofobia".
Primeiro, não há nenhuma identificação imaginária oriunda do Complexo de Édipo que não resulte de uma negação constante da sintomática oposta. Em outras palavras, 'menino' só vira 'menino' quando nega a sintomática feminina: quando luta pra não falar fino, quando luta pra assumir uma posição menos "delicada" em relação às coisas, quando, enfim, luta para copiar a figura paterna. Logo, o sentido de "aversão" que se dá para a palavra fobia não serve. E por quê? Porque sintomaticamente (e para uma visão contemporânea, é isso que interessa) não há um menino sequer que não seja "homo-fóbico" (no sentido popular da palavra). Ser menino, no nível do sintoma, é ter 'aversão' ao que lhe é outro no nível da sintomática, ou seja, o "ser menina". E o mesmo serve para as meninas. Essa aversão é bem clara quando olhamos para um grupo de pré-adolescentes, que está saindo da fase de latência, e que começam a sacanear o colega que fala mais fino, ou rir do colega se ele pegar uma flor pra cheirar. O falso moralismo de hoje pode questionar esses detalhes, mas eles são muito importantes, porque não apenas estabelecem identidade para as crianças, mas também porque definem diferenças, o que é sempre bom, para manter a riqueza da cultura. Se todo mundo fosse delicado, ninguém seria delicado, porque não haveria oposto para o símbolo. Se os moralistas não aprenderam isso ainda, vale acessar de novo alguns textos do Nelson Rodrigues, pra sacar essas nuances, porque ele era mestre em dramatizar esse tipo de coisa.
Outra questão está na elaboração feita pelo Freud a respeito da fobia, e que é completamente ignorada pelas pessoas que criaram essa tese da tal "homofobia". O Freud mostrou que o epicentro da fobia é um símbolo que só comparece no primeiro plano de forma mascarada. Leiam lá a história do pequeno Hans, e aproveitem pra mostrar isso pros legisladores que criaram esse termo estranho. O menino tinha um medo absurdo de cavalos, que com o passar do trabalho analítico se mostrou um processo de culpa resultante do complexo de Édipo e que restava como sobra do conflito que essa fase gera entre o menino e seu pai. O cavalo era a parede que impedia que o menino enxergasse a verdadeira aparência da sua questão fóbica. E não a própria questão fóbica em si mesma.
Ora, se a fobia está sempre escondida por trás de uma cortina de tecido pesado, nomeá-la com o nome da cortina é e sempre será falso. Se existe (acho difícil, mas enfim) um homem que tenha "fobia" de homossexuais, ele jamais vai se dirigir a um homossexual, já que o primeiro plano vai ser sempre outro e indiscernível pra ele. Em curtas palavras, fóbico mesmo nunca olha para o que lhe causa fobia. Ele nem sabe o que lhe causa a fobia, essa é a verdade. O que nos leva a achar graça de um termo que se pretende uma definição das pessoas que não gostam de gays. Quem não gosta de gay não é "homofóbico". Pode ser qualquer coisa, violento, antipático, preconceituoso, enfim.. qualquer coisa. Mas não "homofóbico".
E aí, chegamos ao final da reflexão, que é tentar "escutar" essa mania em sua aparência mais objetiva. O objetivo da lei é inibir a violência contra os gays. Mas no fundo, ao que parece, a violência não diminuiu (como mostram casos recentes) e, o que é pior, a lei está gerando nos homossexuais um sentimento de distinção jurídica que não é nem um pouco republicano. E isso não é bom.
Na verdade, para mim a coisa é bem clara. O cara que agride um gay não agrediu um gay; agrediu um ser humano. Se existe uma lei que pune a lesão corporal, ou mesmo o assassinato, qual é a vantagem de se criar uma lei que pune a lesão corporal "contra A ou B" ou o assassinato "contra A ou B"? Absolutamente nenhuma. Pelo contrário. Gera, na verdade, um monte de distorções, que só contribuem para aumentar os "pré-conceitos" e as ilusões das massas. Já que, como sabemos, a falta de elaboração é uma constante muito frequente no nosso já bem conhecido "senso comum".
Nossos legisladores deveriam ler um pouquinho mais. Quem sabe gastariam o seu tempo "caro" para tentar melhorar a nossa educação e a nossa saúde públicas, que estão bem mal das pernas. E que deixem que as pessoas corram atrás do seu prejuízo nas esferas cabíveis. Ou matar um gay é um crime mais grave que matar um pai de família? Eu acho que não é...
*Marcelo Henrique Marques de Souza é do Rio de Janeiro. Ele mesmo declara: "Sou escritor e professor de um monte de coisa ligado às ciências que chamam de "humanas", como se houvesse alguma ciência de cachorro. Ensino (e aprendo) filosofia, redação, literatura, ética e cidadania e preparação de monografia, no ensino fundamental 2, ensino médio, graduação de pedagogia e pós-graduação em 'educação e comunicação' e 'psicopedagogia'. Meus textos são ensaios e artigos críticos da lógica ocidental, que se baseia na tríade patética que mistura a sacanagem do mercado (a propaganda incluída), a hipocrisia do cristianismo e a falácia dos racionalismos. É contra isso que busco a impostura da crítica".
http://www.debatesculturais.com.br/homo-fobia-existe-isso/