"Todos concordam que a imagem que permanecerá desse momento histórico é François Hollande que abraça o médico socorrista Patrice Pelloux, que está em prantos. Hollande lhe acaricia os cabelos, o rosto, o embala. No fundo, à esquerda da imagem, sobreviventes da chacina em Charlie têm um surto de gargalhadas: um passarinho soltou o esfíncter e maculou o ombro do presidente. O caso do passarinho está contado em Le Monde, Le Figaro, etc. (Há um vídeo) ("Paris: o amor pela Polícia", 12-13/1/2015, Jacques-Alain Miller, de Paris, pela lista lacan.dot.com, lacanadmin@lacan.com [fragmento aqui traduzido].
14/1/2014, Jacques-Alain Miller, Paris
Distribuído pela lista lacan.dot.com, lacanadmin@lacan.com (fr.[i])
Na Argentina, merda de pombo traz boa-sorte. É o que ensina minha amiga Graciela, que se bronzeia no litoral: "Por aqui, se alguém é cagado de pombo, significa boa-sorte." Que seja. Sabemos que o presidente Hollande acredita que tem boa estrela. Em resumo: estamos na merda, é bom sinal.
Graciela, que leu minhas aulas, pergunta-se se não seria uma "resposta do real", uma manifestação dos deuses. Os romanos, tão supersticiosos, nunca deixariam de acreditar que fosse. E não esqueçamos que Jesus, depois de batizado, viu o céu abrir-se "e o Espírito Santo desceu sobre ele sob forma corpórea, como um pombo" (Lucas, 3:21). Talvez um cocô divino tenha feito serviço de mão-divina? O boulevard Voltaire feito catedral de Reims? O presidente da República no papel de Ungido do Senhor?
As afinidades do Espírito Santo com o objeto anal não são novidade e estão bem descritas. Lacan - e citá-lo não implica comprometê-lo - cita o artigo de Ernest Jones sobre a fecundação da Virgem pela orelha, em que o dito Espírito Santo é análogo também do cocô. Sem blasfêmia. A tese é anatomicamente fundada: boca e canal anal respondem um ao outro, como duas extremidades de um tubo digestivo contínuo. O sopro espiritual é parente do gás intestinal; a palavra é parente do excremento.
Vê-se que a psicanálise nos seus verdes anos não deixava de ter afinidades, e recíprocas, com o espírito do grupo deCharlie. A escatologia é sua mais pura inspiração desde Hara-Kiri do professor Choron. O fio percorre seus diversos avatares, anarquista, 'ecolô', esquerdista, neoconservador. "Jornal burro e chato"? "Jornal irresponsável"? São aproximações.
Aqui se trata, na verdade, do seguinte: Charlie tem uma missão nesse mundo, de revogar toda e qualquer sublimação, para honrar a pulsão.
Por isso essa pequena folha - que não é folha de parreira, sabemos - tem lugar garantido na história dos costumes. Calcemos nossas botas de sete léguas para percorrer valentemente vários séculos. E em passo acelerado, como numa história em quadrinhos.
As aventuras da pulsão
1. O antigo mundo greco-romano estava muito mais próximo da pulsão do que estamos nós, como o revelaram Schopenhauer, Nietzche, Freud e os outros. Depois veio o discurso cristão. O título de Peter Brown já diz tudo: Le renoncement à la chair: Virginité, célibat et continence dans le christianisme primitif [A renúncia à carne: virgindade, celibato e continência no cristianismo primitivo] (1). Na Renascença, a cristandade retornou às suas fontes greco-romanas. Segue-se daí uma nova aliança entre a religião e a carne. É um dos motivos da revolta protestante, a qual, contudo, num outro plano, dá também seu lugar à carne (os pastores protestantes podem casar). E não se deve esquecer que Martinho Lutero tinha uma queda pela escatologia. Teria declarado "Je suis Charlie"?
2. Naquele ponto aconteceu a separação das águas. O protestantismo ficava com a austeridade, a igreja católica com o prazer dos sentidos, que ela decide, no Concílio de Trento, mobilizar para finalidades de propagação da fé. O século 17 assiste a grandes deslocamentos populacionais: "A Grande Migração" de puritanos ingleses para as colônias norte-americanas (80 mil pessoas); a diáspora dos huguenotes depois da revogação do Édito de Nantes (400 mil deslocados). O século 18 na França? Talleyrand, nascido em 1754, dirá depois: "Quem não conheceu o Antigo Regime nunca saberá o que foi a doçura de viver."
3. Napoleão, deve-se dizer, é a ordem moral. A Santa Aliança estende-se por toda a Europa. Vem para dar o tom rainha Vitória. Boutade: quando terminou de ler o livro de mesmo título, de Lytton Strachey, Lacan disse que a rainha Vitória foi condição sine qua non de Freud. A Belle Epoque termina na carnificina de (19)14. Depois vieram os Anos Loucos. Etc. Na libertação [de Paris], o totem é Le Tabou, rua Dauphine,[1] esquina rue Christine. Últimas guerras coloniais. Em 1960, aparece Hara-Kiri. Pipi côcô, caca-caquinha-pipizinho. Ufa! Afinal se respira. Respiram-se miasmas, mas o odor é tão revigorante quanto o dos queijos de Jerome K. Jerome. Beliscõezinhos no nariz do Carlão [de Gaulle] e da Tia Yvonne (como se chamava popularmente Mme. De Gaulle).
4. Diga-me agora você, que vai (ou que não vai) à exposição Sade no Museu d'Orsay, e que lê (ou não lê) a [coleção] Pléiade, que à época um livreiro de Saint-Germain-des-Près convidava você para a sala nos fundos da livraria para lhe passar escondidos os pequenos volumes azuis de Justine et de Juliette, impressos por Pauvert em papel barato, se se arriscava grande coisa. Não se arriscava grande coisa mas, enfim, gozava-se um pouco da vertigem do proibido. Ao mesmo tempo, os jornais de esquerda eram censurados [orig. caviardés] quando falavam de tortura na Argélia; saíam às ruas com grandes vazios brancos nas páginas. A censura era tão familiar que era personificada: depois dos anos 1870 era chamada de "Anastasie". Era uma espécie de bicho-papão feminino, armada de grandes tesouras (castração!). O ápice foi quando, por insistência de Mme De Gaulle, mobilizada, digamos, pelas freiras da União das Superioras Maiores, o ministro da Cultura proibiu um filme de Jacques Rivette, a partir de La Religieuse de Diderot (2).
5. Foi em 1966, ano em que surgiram os Ecrits de Lacan. Naquele tempo, vejam vocês, falar, escrever, fazia diferença, gerava reação, como em tempos ainda mais antigos. Se se tomava por objeto o exército, a igreja, mesmo que fosse via Diderot, que tem estátua em Paris e obra [completa] na [coleção] Pléiade da [editora] Gallimard, o outro lado respondia.
O Outro moral ainda não se aposentara. O coco-pipi ainda conservava certa potência de transgressão. Tanto que o grande Outro dos anos De Gaulle e Pompidou respondeu "presente". E foi a grande época do professor Choron. Mas, na sequência, esse grande Outro foi desmontado, desmantelado peça a peça. As etapas desse processo estão reconstituídas em recente resumo de Eric Zemmour, cujo traço às vezes antiquado absolutamente não apaga o interesse documental.
De fato, esse grande Outro nunca foi senão um fantoche movido por marionetista genial. O general [de Gaulle] sabia o que fazia e disse-o bem claramente. Uma de suas frases favoritas, segundo seu confidente Alain Peyrefitte: "Sempre fiz do mesmo jeito. Várias vezes até que deu certo" (C'était De Gaulle, p. 171).
6. Charlie Hebdo, que veio depois de Hara-Kiri, estrangulada sobre a lápide do general, morreu, também por sua vez, mas em casa, morte tranquila, em 1981, quando a esquerda chegou ao poder com Mitterrand. Depois de muito tempo, o velho grande Outro neo-gaulliste, progressivamente desativado, como "Hal" no filme de Kubrick, 2001, só respondia com um "Pufff" às provocações, acompanhado desse movimento de levantar os ombros que o mundo anglófono circunscreve sob o nome de "Gallic shrug" [dar de ombros gaélico, ou francês], tanto lhes parece característico de nosso modo-de-ser.
É difícil transgredir, quando não há mais limites ou pelo menos quando já não há muitos limites. Ou seria preciso passar à injúria, à difamação, ao racismo, à convocação ao assassinato.
Quem matou Charlie? Minha resposta, numa palavra: a "permissividade". "A palavra não está no Littré; só aparece atestada na língua a partir de 1967, para traduzir o inglês permissiveness" (Le Robert. Dictionnaire historique de la langue française).
7. Do Charlie cuja redação acaba de ser extinta, falarei pouco. A publicação renasceu, depois de interrupção de 11 anos, em 1992. A presença dos grandes velhos e a firme fidelidade à pulsão sob a forma canônica de pipi-coco-pintinho comprovam que a retomada do título não foi impostura. Seus grandes feitos: republicar, em 2006, as caricaturas holandesas de Maomé; lançar uma edição, em 2011, zombando da [lei da]Xaria [orig. charriant la charia]. Na mesma noite em que a revista saiu às bancas, houve tumultos de rua. O diretor de redação, Charb, e dois desenhistas, passaram a andar com escolta policial. Multiplicaram-se ameaças dos islamistas.
Em 2013, a revista Inspire, publicada online pela Al-Qaeda na Península Arábica, incluiu o nome de Charb em sua lista de "procurados" por "crimes contra o Islã" (Wikipédia). Semana passada, 7 de janeiro, foi o massacre.
Três teses, um paradoxo
Nada, nos 21 primeiros anos da revista, permitiria antever que a maior parte dos redatores tombariam sob o fogo de guerreiros islamistas. Mas, afinal, por que tanto se empenhar em zombar dos valores sagrados da religião muçulmana, mesmo quando o risco era visível e o perigo objetivo e indubitável?
Há a tese nobre: eram combatentes da liberdade de expressão. Charb, que era comunista, disse, em frase muito citada que agora passará à posteridade: "Sei que soa um pouco pomposo, mas prefiro morrer em pé, a viver de joelhos".
Há a tese ignóbil, que Tariq Ramadan já lembrava na própria noite da matança, em diálogo em inglês com Art Spiegelman, criador de Maus (3): escreviam o que escreviam, para ganhar dinheiro.
E há, por fim, a tese 'clínica', por assim dizer, exposta por Delfeil de Ton no L'Obs de ontem.
Antigo colaborador de Charlie e amigo de Charb, Delfeil de Ton (DDT), 80 anos, destaca, em texto perturbador, a obcecação de Charb e sua responsabilidade: "Ele era o chefe. Que necessidade havia de arrastar toda a equipe nessa sua aposta alucinadamente alta?" Relembra o que dissera Wolinski depois dos incêndios pela cidade: "Acho que somos inconscientes e imbecis, e que nos expusemos a um risco inútil". E DDT concluía: "Charb preferia morrer, Wolin preferia viver."
Depois de ler, a pergunta é inevitável: haveria um Charb suicidário? Um Charb tomado de melancolia? De fato, ele se apresentava como homem "com nada a perder": "Não tenho filhos, nem mulher, nem carro, nem crédito."
A jubilação semanal da genial equipe seria, para pergunta-lo à maneira de Mélanie Klein e Winnicott, uma defesa maníaca contra a depressão? Por trás da fachada fálica, a pulsão de morte? Seria esse o segredo de Charlie Hebdo?
Se for necessário escolher entre essas três hipóteses, excluo de saída a segunda, porque, objetivamente, não há interesse financeiro que dê conta da extensão dos riscos a que todos foram expostos na revista. Seria preciso supor que haveria em Charlie a paixão de um Harpagão, e não se vê sinal disso. Só ignomínia, do professor da Universidade de Oxford.
A terceira tese merece consideração, mas ela empalidece na comparação com a primeira, porque, ainda que num melancólico, num perverso, num neurótico, nem por isso o heroísmo é menos heroísmo.
Aqui, MUITA ATENÇÃO: para que haja o que se chama "heroísmo", quer dizer, sacrifício por um ideal, é preciso que haja sublimação. Mas... Ora! Até aqui estou argumentando na direção de que Charlie Hebdo seria antissublimação, a favor da pura pulsão, que se dedicava ao culto da pulsão, à exaltação do gozo. Há pois uma contradição.
É onde uma frase de Erik Emptaz, na primeira página do Canard Enchaîné, nos esclarece. Agora que o também o CE já começou a receber as mesmas ameaças que Charlie, Emptaz promete continuar, com os companheiros, a "rir de tudo, exceto da nossa liberdade de poder rir de tudo." Aí está, sem dúvida, o xis da questão, que se desdobra.
(1) Se eu realmente desejo rir de tudo, é impossível para mim fazer piada da minha liberdade para rir de tudo. É o limite do riso. A piada tem de parar aí. Ninguém que leve a sério a liberdade para rir de tudo, ri dela.
Dito de outro modo: quem quer rir de tudo, não pode rir de tudo.
(2) Rir-se de tudo, inclusive da minha liberdade para fazê-lo, leva ao mesmo mau resultado: sacrifico minha liberdade de rir de tudo, sacrifico minha capacidade para gerir o chicote e o lombo. Em resumo, para rir de tudo, tenho de me abster de rir de tudo.
A posição (2) é cínica. A posição (1) chamei de heroica.
Talvez alguns dos Charlie se acreditassem cínicos. Talvez até, uns mais outros menos, o fossem. Mas fato é que eram heroicos, Charb sabendo que era, e nós só descobrindo agora, depois de tudo.
O erro de Delfeil de Ton, me parece, é nos pintar um Charb tomado por um "Viva a morte!" Ao contrário, o propósito de Charb sugere uma fórmula completamente diferente, que faz dele um "soldado do ano 2" verdadeiro, não de papiê-machê: "A liberdade ou a morte!"
A cláusula decisiva aí é "ou a morte!"Quem não põe a própria vida na balança do destino, quem não engaja o próprio ser (e só engaja seu talento, algumas competências) foge da luta, não luta a sério. O primado da vida é tão firmemente ancorado nas sociedades ocidentais que, no caso da barragem de Sivens que custou a vida de Rémi Fraisse, ouviu-se um encarregado local, do Partido Socialista, enunciar a seguinte enormidade: "Morrer pelas próprias ideias é uma coisa, mas mesmo assim é meio estúpido, meio idiota" (4).
Não detonemos o infeliz. O que se lê não é, com certeza, o que quis dizer (que Rémi lá estava para defender uma ideia, que não pensava em pôr em risco a própria vida, que foi morto por um triste conjunto de circunstâncias, etc.). Mas, até porque é uma espécie de lapso, a frase é ainda mais verídica. Já lá vão 20 anos que Lipovetski publicou Le Crépuscule du devoir (L'éthique indolore des nouveaux temps démocratique) [1992] [Crepúsculo do dever (A ética indolor dos novos tempos democráticos[2]).
Nada de surpreendente que não hesitemos em negar aos mártires de Charlie a qualidade de heróis, e façamos deles imprudentes, para não dizer doidos. Correlativamente, sapateamos sobre os assassinos deles.
Não nos basta ter matado aqueles três homens, os terroristas. É preciso ainda declará-los loucos furiosos, doentes e, sobretudo, bárbaros. Chamamos "bárbaro"" aqueles aos quais nós negamos que pertençam a uma civilização digna do nome (5).
Saibamos reconhecer, para começar, que nossos guerreiros brotam de um outro discurso diferente do nosso, não menos estruturado nem menos "civilizado", mas civilizado de outro modo. E nesse outro discurso, eles também são heroicos.
Para os gregos da Antiguidade, "bárbaro" era quem falasse língua ininteligível para os gregos, daí a palavra, formada por repetição, bar-bar, como nosso blá-blá-blá. Bárbaro é o que nem fala, só faz ruídos de boca. E de fato, quando um dos irmãos Kouachi, ao sair do massacre e antes de entrar no carro, lança na rua, em voz alta e inteligível, três vezes, o brado "Vingamos o profeta Maomé!" (6), nós nada compreendemos; só que o Islã nada tinha a ver com aquilo e os dois não passam de brutos sanguinários e mentalmente desarranjados.
Por que não os declarar "animais de duas patas", como os romanos diziam dos hunos? [Continua (7)]
____________________________
NOTAS
(1) O livro de Peter Brown foi publicado em 1988 ; apareceu em francês, editado por Gallimard em 1995.
(2) Sobre o affaire de La Religieuse, consultar os Cahiers d'études du religieux, http://cerri.revues.org/1101.
(3) O vídeo intitulado " Comics Legend Art Spiegelman & Scholar Tariq Ramadan on Charlie Hebdo & the Power Dynamic of Satire" pode ser visto no site Democracy now, em http://www.democracynow.org/2015/1/8/comics_legend_art_spiegelman_scholar_tariq
(4) O socialista responsável pelo Tarn, em vídeo:
http://www.lefigaro.fr/politique/le-scan/citations/2014/10/28/25002-20141028ARTFIG00107-sivens-mourir-pour-des-idees-c-est-stupide-juge-le-president-ps-du-tarn.php
(5) Sobre os bárbaros: de Bruno Dumézil, Les Barbares expliqués à mon fils, Seuil, 2010.
(6) Os dois irmãos ao sair do massacre na redação da revista, em vídeo obtido pela agência Reuters. Disponível na internet desde ontem pela manhã, em http://fr.euronews.com/2015/01/13/nouvelle-video-glacante-des-freres-kouachi-juste-apres-le-massacre/
(7) Espero conseguir escrever ainda sobre a coluna publicada ontem em Le Monde, p. 9, pelo prof. Alain Renaut, que dá corpo, em termos, concordo, ainda muito gerais, ao que chamei de "via da concessão & compromisso", sob a forma dita de um "multiculturalismo temperado pela preocupação com o interculturalismo".
[1] No número 33, onde está hoje o Café Laurent, ficava Le Tabou, célebre cave de dança e jazz, que funcionou de 1947 a 1948 [NTs, com informações de http://fr.wikipedia.org/wiki/Rue_Dauphine]
[2] Além da tradução portuguesa, há trad. brasileira: LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade pós-moralista. O crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos democráticos. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005 [NTs].