Durante uma década depois da autoextinção da URSS, foi como se o mundo estivesse livre da disputa pela dominação ideológica. Muitos especialistas concordavam que o mundo caminharia para sistema único de valores, baseado na democracia liberal ocidental e no capitalismo.
'Ocidente' vive num 'mundo imaginário' (e a Rússia sugere regras para o mundo real)
26/4/2016, Sergey Karaganov,* Izvestia (ru.), e Rússia Insider (trad. ru.-> ing., por Julia Rakhmetova e Rhod Mackenzie)
Durante uma década depois da autoextinção da URSS, foi como se o mundo estivesse livre da disputa pela dominação ideológica. Muitos especialistas concordavam que o mundo caminharia para sistema único de valores, baseado na democracia liberal ocidental e no capitalismo. Europa e EUA acenaram com a liberdade e com o sistema político vencedor que aquelas nações pareciam ter para oferecer ao mundo.
Os anos 2000s trouxeram outra realidade.
Naquela euforia, o 'ocidente' começara a impor à força as suas posições e valores políticos (Afeganistão, Iraque e Líbia). Mas perdeu a disputa. O apoio 'ocidental' à primavera árabe desestabilizou ainda mais o Oriente Médio, o que fez a democracia parecer cada dia menos atrativa.
Depois da crise financeira de 2008-2009, o modelo econômico do Consenso de Washington cedeu ante os chineses: uma maioria de países em ascensão decidiu não seguir as receitas de Washington.
Ao mesmo tempo, a Europa, e em menor grau também os EUA, abandonaram os valores que haviam 'oferecido' ao mundo, pelo menos os cristãos, e passaram a impor um multiculturalismo raso, uma nova tolerância zonza na abordagem das relações sociais e familiares, inaceitáveis para a maioria das culturas e povos não 'ocidentais'.
A abordagem das relações internacionais proposta por europeus sinceros e EUA calculistas, denunciaram soluções forçadas e esferas de influência baseadas exclusivamente na lei internacional. Começou quando a Alemanha, e depois a União Europeia, reconheceram ilegalmente a divisão de Bósnia e Croácia, separadas da Iugoslávia, o que levou à guerra civil a ao atroz bombardeio do país em 1999 e, com o tempo, também à agressão contra Iraque e Líbia.
Outro importante valor da Europa Ocidental moderna - a não violência e o pacifismo - vai-se tornando 'incômodo' no mundo novo e hoje imprevisível chamado 'ocidente'. Os europeus, que padeceram os horrores de duas guerras mundiais, tentaram impor aqueles valores ao mundo. Como seria fácil prever, as coisas saíram pela culatra e acabaram piores que nunca antes: a entrada massiva de cidadãos de outras culturas (que começou há décadas) forçou a Europa a adotar e adaptar políticas de direita, abandonando parcialmente importantes liberdades democráticas, supostamente para assegurar alguma ordem e segurança. Esse processo é extremamente doloroso e dispara reações ideológicas.
A alternativa trazida pela Rússia apareceu com ainda mais brilho, posta sobre o pano de fundo do 'ocidente'. A ameaça de um desafio russo contra a elite europeia explica-se em parte pelo fato de que, na busca de meios para se auto-restaurar, a Rússia oferecia ao mundo memes e valores mais viáveis e mais atraentes.
Em relações internacionais, esse tipo de soberania do estado, com identidade cultural e pluralismo, contradiz o meme 'ocidental' da universalidade como ideologia dominante.
A Rússia defende conceitos como honra e dignidade nacionais e coragem. Para muitos europeus são valores que parecem antiquados, inspirados pelas guerras que os europeus lançaram e perderam. De algum modo, a Rússia conseguiu sair vitoriosa naquelas guerras - a custo monstruoso - e também está pronta para defender pela força a própria soberania e valores de que a Europa também carece.
No "mundo de Putin", é impensável que os homens não defendam as próprias mulheres e os próprios valores, como aconteceu em Colônia, Alemanha, quando das agressões causadas por migrantes. Os europeus têm medo desse novo mundo duro, feroz, que é hoje 'personificado' pela Rússia.
A segunda mensagem ideológica da Rússia ao mundo é que o consumo não é tudo nem resume tudo nem resolve tudo. Mais importantes são a dignidade individual e nacional e a busca de objetivos mais 'elevados', como o crescimento interno. A Rússia apoia todas as religiões e todas as aspirações religiosas, e está preparada para defender cristãos.
A terceira mensagem é a prontidão, na Rússia, para seguir princípios tradicionais de política externa, incluindo defender pela força seus interesses nacionais, especialmente se tiverem sólido fundamento moral.
Esse conjunto de mensagens e valores garante à Rússia considerável"soft power" [poder suave], apesar da menor riqueza relativa e da 'falta' de liberdade [liberal].
A luta é urgente. O 'ocidente' supôs que tivesse vencido, mas agora já se vê que está sendo derrotado, e a Rússia recolheu a vantagem de uma política não ocidental atraente para a maioria dos países, inclusive muitos do 'ocidente'. Mas não parece ter planos para exportar essa sua ideologia, como o 'ocidente' faz, para vingar qualquer eventual derrota passada.
A alternativa vem do passado, do "moderno" sistema de Westphalia, mas visa à maioria. O "pós-modernismo" europeu e 'ocidental', que pareceria mais humano e progressista, está perdendo espaço, provavelmente por ser absolutista, ou porque a maioria dos humanos não estão preparados para essas ideias.
Depois da reação forte da Rússia contra a expansão ocidental na Ucrânia, a chanceler alemã Merkel acusou Putin de viver num mundo imaginário. É. Melhor seria talvez se todos fôssemos cegos e vivêssemos - sempre de olhos bem abertos! -, numa mesma realidade humana falsamente pacifista e falsamente tolerante.*****
* O autor é decano do Departamento de Economia Mundial e Política Global da Escola Superior de Economia de Moscou e um dos mais influentes especialistas russos. Em 1992, Sergey Karaganov escreveu (apud "Sergey Karaganov, o homem por trás da combatividade de Putin", 30/3/2014, The Globe and Mail):
"Estamos numa situação de pré-guerra mundial, mas, por causa das armas atômicas, não chegaremos lá" - disse ele, antes de agradecer aos cientistas soviéticos que garantiram à Rússia o seu poder de contenção. - "Mas podemos ter situação militar, ou quase-militar".
Sanções, disse o prof. Karaganov, não empurrarão a Rússia na direção que os líderes 'ocidentais' gostariam de vê-la marchar.
"Sanções mostram que nossos colegas 'ocidentais' não compreendem coisa alguma. Eles pensam que Putin e seus homens lutam por dinheiro. Não. Eles só lutam por poder e pela honra."*****