Adivinhem quem entrou na sala, 5a-feira passada, em São Petersburgo: o vice-príncipe coroado e ministro da Defesa Muhammad bin Salman, filho preferido do rei Salman; o ministro do Exterior Adel al-Jubeir (ex-embaixador nos EUA e ator muito próximo dos players do Departamento de Estado); e o todo poderoso ministro do Petróleo Ali al-Naimi. Todos lá estavam para um encontro com o presidente Vladimir Putin, à margem do Fórum Econômico de São Petersburgo.
Em princípio, não poderia haver virada de jogo mais espetacular à vista. Uma caravana dos reis sauditas oferendo tributo, ouro, incenso e mirra (ou, quem sabe, preços mais altos para o petróleo). Ninguém ainda sabe como tudo isso se articula no Novo Grande Jogo na Eurásia, no qual um dos principais frutos é a Guerra Fria 2.0 entre EUA e Rússia.
Putin e o rei Salman - muito discretamente - estiveram em contato por telefone durante semanas. O filho do rei convidou Putin a visitar Riad. Convite aceito. Putin convidou o rei a visitar Moscou. Convite aceito. Não há dúvidas de que o suspense já está matando gente, de tanta ansiedade. Mas é vida real? Ou são só fumaça e espelhos?
Quem é aliado de quem?
Para começar, o crucial front da energia. Putin discute agora o que, até aqui, foi guerra de preços, mas que pode (atenção: pode) vir a tornar-se uma "aliança de petróleo" (em palavras de Naimi), diretamente com a fonte: a Casa de Saud.
Assumindo-se que essa entente cordiale venha eventualmente a levar a uma subida no preço do petróleo, Putin marca importante vitória interna contra o que pode ser descrito como uma Quinta Coluna Atlanticista que tenta minar o impulso multipolar dos russos. Mais que isso, não machuca Moscou, em termos geoeconômicos, poder agregar a Arábia Saudita como grande comprador dos sistemas de defesa russos, de superior qualidade.
A inteligência russa está perfeitamente consciente de que a Casa de Saud ficou tremendamente "desapontada" - eufemismo monstro! - com a política do governo Obama que eles mesmos descrevem como "Não faça merda coisa estúpida", e por alto número de motivos, das quais uma, nada insignificante, é a possibilidade concreta de um acordo nuclear Iran-P5+1 dia 30 de junho, o que será sinalização codificada de que Washington finalmente aceitou baixar sua própria Muro da Desconfiança contra a República Islâmica, erguido há 36 anos.
Reunião de alto nível com a Casa de Saud e, pior, na Rússia, arrepia furiosas penas no Departamento de Estado. Não ficará sem castigo - contra Moscou e contra Riad. Afinal, os verdadeiros Masters of the Universe - não seus office-boys em diferentes setores do governo dos EUA - já há algum tempo procuram jeito para descartar a Casa de Saud.
A inteligência russa também sabe que, em Washington, a Casa de Saud depende hoje dos bons favores do lobby israelense - e tudo tem a ver com demonizar o Irã. E, agora, um acordo nuclear com o Irã - que tornará Teerã "normal", na relação com o ocidente - já disparou o sinal mais vermelho possível de alarme, numa Riad já vulnerável.
A mensagem de Putin ao Irã é mais sofisticada. Moscou trabalhou muito ativamente a favor de um acordo nuclear bem-sucedido com o Irã; o que invalida a teoria de que Moscou esteja começando a jogar a carta saudita, para extrair "concessões" de Teerã.
Não há "concessão" alguma. A Rússia - e eventualmente também o Irã - fornecerão energia, ambos os países, para os mercados europeus. Não imediatamente, porque a modernização da infraestrutura iraniana exigirá anos e cataratas de investimentos. Mas logo ano que vem, um Irã não sancionado pode ser afinal admitido como membro da Organização de Cooperação de Xangai (OCX).
Implica dizer que o Irã não virará fervorosamente pró-ocidente de um dia para o outro - como sonham algumas facções não neoconservadoras no Departamento de Estado. O Irã está consolidando seu poder regional; se engajará em relações normais, especialmente com europeus; mas, sobretudo, acelerará a integração na Eurásia, o que implica relações ainda mais próximas com ambasm Rússia e China. Para não dizer que na Síria, o Irã e a Rússia estão exatamente na mesma página geopolítica, o que é posição totalmente oposta à da Casa de Saud.
O movimento de Putin pode também isolar o Qatar - o qual, indiretamente, mas muito eficazmente, subsidia a al-Qaeda na Síria, com vistas a promover o próprio objetivo geoeconômico máximo: um gasoduto para gás natural do campo de Pars Sul, pela Arábia Saudita e Jordânia, até a costga do Mediterrâneo.
O projeto rival é o oleogasoduto Irã-Iraque-Síria, agora perenemente ameaçado, porque o grande acordo do "Siriaque" está já sob a mira do ISIS/ISIL/Daesh. Aqui, o que se vê é que o falso Califato apoia geoeconomicamente os projetos do Qatar; e geopoliticamente, os dos sauditas.
O que é certo é que a peregrinação de sauditas de alto escalão até São Petersburgo não poderia ser mais diametralmente oposta à cena em que se viu o (já tombado em desgraça) Bandar Busha ameaçar Putin, em agosto de 2013, de atiçar os jihadistas chechenos contra os Jogos Olímpicos de Sochi, se Moscou não parasse de apoiar Bashar al-Assad da Síria.
Quem diz o quê?
É tentador ver nesse drama fabuloso uma subtrama do movimento dos BRICS - principalmente Rússia e China - em avançada no Oriente Médio, com Washington na ponta perdedora. Mas a coisa é mais como Putin jogando Mundo Multipolar, não Monopólio, e cuidando para que o Império do Caos tenha de suar muito para manter "no discurso previsto" [orig. "on message"] os seus blocos fantoches/vassalos, como o Conselho de Cooperação do Golfo.
Ainda falta verificar, no longo prazo, se tudo não passa de jogada desesperada dos sauditas para arrancar "concessões" do seu protetor imperial. Mas, assumindo-se que seja contato às veras, Moscou garante para si a capacidade para atender aos interesses dos dois lados, do Irã e dos sauditas; e assegura que esse "pivô [russo] para o Oriente Médio", bem feito, de comum acordo, venha talvez a ser tão espetacular como o "pivô para a Ásia", da Rússia; e as Novas Rotas da Seda, da China.
Até agora ainda não há provas de que a Casa de Saud tenha realmente percebido, mesmo, de que lado sopra o vento - quer dizer, o vento que empurra a caravana eurasiana da Rota da Seda do século 21 -, não importa o que o pensamento desejante dos excepcionalistas por aí viva a repetir.
Eles são medrosos; eles são paranoicos; eles são vulneráveis; e eles carecem de novos "amigos". Ninguém melhor que Putin - e a inteligência russa - para tocar a nova batida, em várias tonalidades. A Casa de Saud absolutamente não merece confiança. É só ver os telegramas sauditas que WikiLeaks acaba de divulgar. Tudo isso pode revelar-se uma bonanza geopolítica/geoeconômica. Mas também pode ser caso de manter os amigos próximos; e ainda mais próximos, os inimigos. *****
(e como sempre, ninguém nem viu o que estava para acontecer)
22/6/2015, Pepe Escobar, Sputnik
http://sputniknews.com/columnists/20150622/1023689645.html