Os bárbaros que nos ameaçam
12/10/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
"E agora, o que será de nós, sem os bárbaros?
Aquela gente era uma espécie de solução."
Waiting for the Barbarians
C. P. Cavafy
Agora, ao entrarmos no último mês da eleição dos EUA, está próximo o clímax esperado de animosidades há muito enterradas. É improvável que seja breve ou decisivo. Mas coisa bem diferente são as convulsões internas dos EUA. A implosão da confiança social nos EUA está-se espalhando, e seus efeitos correm já por todo o mundo. Se a precarização mal disfarçada[1] de nossos tempos - agravada pelo vírus - está-nos deixando nervosos e tensos, talvez aconteça porque intuímos que um modo de vida - e um modo-de-economia - também estejam chegando ao fim.
O medo da convulsão social semeia desconfiança. Pode produzir o estado espiritual que Emile Durkheim chamou de anomia, sensação de estar desconectado da sociedade; convicção de que o mundo ao redor é ilegítimo e corrupto; de que você é invisível - um 'número'; objeto indefeso de repressão hostil, imposta pelo "sistema"; um sentimento de que ninguém é confiável.
A literatura russa do século XIX, incluindo os romances de Dostoievski, narrou modos como tais sentimentos entre filhos dos ricos russos podiam evoluir para ódio ardente. Este ódio chegou até às bombas de pregos lançadas contra cafés elegantes, para "ver como o burguês imundo se contorcerá em agonia de morte".
A era pós-guerra do Ocidente foi definida em grande parte pela geração 'Woodstock': os 20% dos ricos (brancos) do globo viviam num paraíso de opções e superconsumo; e os 80%, não brancos, não. Essa geração viveu em um período de relativas coesão cultural e estabilidade social - e raramente foi chamada a fazer sacrifícios ou suportar adversidades. Foi a era de uma 'decisão fácil' depois da outra, construindo um ethos que instalava a liberdade pessoal acima de qualquer outro valor, incluído qualquer dever social.
As gerações emergentes de hoje, David Brooks argumenta em The Atlantic, "não desfrutam absolutamente dessa sensação de segurança. Cresceram num mundo em que as instituições faliram, os sistemas financeiros entraram em colapso e as famílias eram frágeis. Mas os seres humanos precisam de, pelo menos, algum senso básico de segurança, para prosperar - como diz o cientista político Ronald F. Inglehart: seus "valores e comportamento são moldados pelo grau em que a sobrevivência seja garantida".
"Os valores das gerações Millennial [nascidos após o início da década de 1980 até, aproximadamente, o final do século] e "Z" [nascidos entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010] que dominarão nos próximos anos são o oposto dos valores Boomer [nascidos entre os anos de 1946 e 1964]: não libertação, mas segurança; não liberdade, mas igualdade; não o individualismo, mas a segurança do coletivo; não meritocracia tipo 'ou nada ou se afoga', mas promoção com base na justiça social (...). Pessoas desconfiadas tentam tornar-se invulneráveis, blindam-se num amargo esforço para se sentirem seguras (...) e começam a ver ameaças que não existem".
Brooks não elabora totalmente, mas está sugerindo um cisma geracional chave, que tem sido pouco analisado: Millennials e Geração Z ainda procuram soluções políticas (reformadas). Mas alguns na geração sucessora, Geração X, simplesmente querem queimar completamente, até transformar em cinzas, todo o sistema.
Aqui está o ponto: para o resto do mundo - aqueles 80% (com poucas exceções) - nunca houve uma era pós-guerra estável de superconsumo sem esforço ou estabilidade institucional (exceto para uma pequena fatia de elites cooptadas). Para muitos, foi era atormentada por conflitos, insegurança pessoal, financeira, e pela violência. Alguém se surpreende, sendo assim, que a consciência nacional dessa geração tenha-se transformado? Que novas normas e crenças, novos valores tenham surgido, para o que é admirado e o que é desprezado? O poder foi renegociado principalmente em meio a severas convulsões civis, não na calma de uma sociedade estabelecida.
O ex-embaixador indiano, MK Bhadrakumar, escreve:
"A desintegração da União Soviética em 1991 foi um desastre geopolítico para a Rússia. Mas o divisor de águas, paradoxalmente, fez com que Moscou e Pequim, antes adversários, se aproximassem, enquanto assistiam sem se deixar seduzir, à narrativa triunfalista dos EUA sobre o fim da Guerra Fria, que derrubava a ordem que ambos consideravam crucial para o próprio status e as respectivas identidades nacionais, apesar de todas as diferenças e disputas.
O colapso soviético resultou em grande incerteza, conflito étnico, privação econômica, pobreza e crime para muitos dos estados sucessores, em particular para a Rússia.
E a agonia da Rússia foi observada de perto pela China, do outro lado da fronteira. Estrategistas políticos em Pequim estudaram a experiência das reformas soviéticas, para evitar a "trilha da carroça quebrada". (...)
[Pouco depois, em dezembro de 2012] Xi Jinping falou de "corrupção política", "pensamento herético" e "insubordinação militar" como razões para o declínio do Partido Comunista Soviético. Consta que Xi teria dito que "Causa importante [do declínio do PCUS] foi que ideais e crenças foram abalados". No final, Mikhail Gorbachev, com uma palavra, declarou extinto o Partido Comunista Soviético, "e o grande partido se foi (...)."
"No final, o grande Partido Comunista Soviético desapareceu como revoada de pássaros ariscos ou bando de feras assustadas. A grande nação socialista soviética caiu em pedaços. Eis o rastro que deixa uma carroça quebrada!" (...)
Nas palavras de Xi, "o Partido Comunista Soviético tinha 200 mil membros, quando tomou o poder; tinha 2 milhões de membros, quando derrotou Hitler, e 20 milhões de membros, quando renunciou ao poder... Por que renunciou? Porque os ideais e crenças já não estavam lá".
Mas o ponto em que Putin e Xi Jinping convergem (...) que ambos apreciam a surpreendente velocidade com que a China chegou à posição de superpotência econômica.
Nas palavras de Putin, a China "conseguiu da melhor maneira possível, na minha opinião, usar as alavancas da administração central (para) desenvolver uma economia de mercado (...) A União Soviética nada fez de semelhante a isso, e os resultados de uma política econômica ineficaz impactaram a esfera política."
O ensaio de David Brooks em The Atlantic trata do colapso da confiança em curso nos EUA. A confiança, diz ele, é medida da qualidade moral de uma sociedade. O ensaio, diz o autor, trata do modo como, ao longo de umas poucas décadas, os EUA tornaram-se "sociedade menos confiável (...). Os americanos hoje experimentam mais instabilidade do que em qualquer outro período da memória recente - menos filhos são criados em lares com pai e mãe casados, mais famílias monoparentais, mais depressão e maiores taxas de suicídio".
As pessoas hoje vivem no que o falecido sociólogo Zygmunt Bauman chamou de "Modernidade Líquida" - todas as características que antes eram atribuídas ao indivíduo pela comunidade, cabe agora ao próprio indivíduo determinar: identidade, moralidade, gênero, vocação, propósito, e o lugar de pertencimento de cada um.
O que Brooks não aborda, no entanto, é modo como a desconfiança interna - entre os norte-americanos, uns desconfiando dos outros, e todos desconfiando de qualquer outra pessoa que não seja o próprio indivíduo, por serem 'um império' -, teve impacto mais amplo, sobre a ordem geopolítica, e sobre percepções da própria gestão de outras economias - as quais, no caso de Rússia e China foram extraídas da experiência de convulsões anteriores delas próprias, não dos EUA.
A desconfiança espalha-se hoje, nos EUA, mais rápida que o Coronavírus.
A Rússia está-se desacoplando da Europa, porque não confia mais na Europa. Uma grande mudança.
75 anos após o fim da 2ª Guerra Mundial, o militarismo e o nacionalismo alemães estão agitados - e suas elites outra vez miram a Rússia: "Berlim está encerrando a era iniciada por Gorbachev, de relação de confiança e amizade com Moscou. A Rússia, por sua vez, não espera mais nada da Alemanha e, portanto, não se sente obrigada a levar em conta a opinião ou os interesses da Alemanha, disse o respeitado chefe do escritório da Carnegie em Moscou, Dmitri Trenin.
A Rússia está vendo que a Europa está em processo de construir uma plataforma ocidental anti-Rússia. A era que começou na esteira da queda do Muro de Berlim parece estar terminando. Mas essa mudança não será talvez mais um reflexo das próprias inseguranças e desconfiança sociais da Europa, do que efeito de alguma "ameaça" que emanaria da Rússia?
Alemanha - e Europa - é que passam hoje por uma metamorfose: toda a UE está sob efeito de seu próprio déficit de confiança. Partidos popularescos e céticos estão em alta. O desprezo pelos insiders e pelas elites de Bruxelas só faz aumentar, assim como as suspeitas e a desconfiança contra qualquer pessoa que detenha alguma autoridade. E, como Brooks aponta, lideranças nervosas tendem a "ver ameaças que não existem".
A UE está profundamente empenhada no esforço para se reinventar como portadora dos valores liberais e de mercado liberal (sem os EUA). A UE "quer ser mais forte, mais autônoma e mais firme". E o presidente Macron diz aos europeus que "devem enraizar nesses valores o próprio pertencimento". Macron tentando reunir a Europa contra a próxima 'era dos impérios', postulando para tanto que a Europa também deva tornar-se uma espécie de 'império', para competir e sobreviver no confronto que se aproxima, entre os gigantes econômicos e tecnológicos.
O problema, na relação com a Rússia é duplo.
Primeiro, que foi Samuel Huntington quem escreveu em seu Choque de Civilizações, que "o conceito de uma civilização universal ajuda a justificar o domínio cultural pelo Ocidente sobre outras sociedades, e a necessidade de essas sociedades imitarem as práticas e instituições ocidentais." Bem, para começar, a Rússia rejeitou durante três séculos precisamente essas tentativas de forçá-la a imitar práticas e instituições ocidentais.
Segundo, que é claro que a Europa não existe agora como entidade coerente e limitada.
O que isso significa? Significa que a Alemanha está prestando mais atenção às reclamações e preconceitos de estados como a Polônia. A Europa ainda terá de construir a própria coesão, se quiser imaginar-se como o "império médio" emergente. Daí a Bielorrússia.
Mais uma vez -e outro sinal de que o 'vírus' da desconfiança espalha sua infecção pelo espaço geopolítico -, esse mês, o Conselho do Atlântico chamou a atenção para o modo como o 'espaço de informação' está permitindo que a China projete a "História da China" - "isto é, projete-se ela mesma como imagem positiva por meio da narrativa no cenário da mídia, tanto nacional como internacional". Essa projeção é denunciada como ameaça cultural aos EUA - a 'ameaça' do Poder do Discurso Chinês.
À medida que as convulsões dos EUA e a Covid combinadas destroem a credibilidade da "velha economia de livre mercado" de Adam Smith e da Escola de Chicago, não surpreende que a própria experiência de turbulência econômica e política da China e da Rússia os tenha atraído para o uso de processos administrativos 'orientais' - dado que não podiam mais confiar apenas nos mercados, para desenvolverem seu próprio ecossistema de empresa econômica. Ou que eles estejam repassando essa abordagem para outros.
Paradoxalmente, economia nacional fechada e autocirculante sempre foi, em todos os casos e antes de tudo, ideia ocidental em primeiro lugar (para o caso de o Conselho do Atlântico não ter percebido).
Em 1800, Johann Fichte publicou The Closed Commercial State (O Estado Comercial Fechado). Em 1827, Friedrich List publicou suas teorias da economia nacional que discordavam da "economia cosmopolita" de Adam Smith e JB Say. Em 1889, o conde Sergius Witte, político influente e primeiro-ministro da Rússia Imperial, publicou artigo intitulado "National Savings and Friedrich List", que citava as teorias econômicas de Friedrich List e justificava a necessidade de uma indústria nacional forte, protegida da concorrência estrangeira por barreiras alfandegárias.
É efetivamente o outro lado da moeda de Adam Smith. Os russos, como Sergei Glazyev [para saber quem é, veja aqui (NTs)], vêm pensando nessas coisas há anos - e principalmente, desde que a Rússia foi expulsa do G8.
Finalmente, a questão que salta aos olhos é: será que toda essa dispersão de expressões de desconfiança agora já repetida por todos os lados seria algo efêmero? Será simples reflexo de tempos incertos e inquietantes? Ou estamos testemunhando o aumento de uma desconfiança explosiva? A desconfiança explosiva não é apenas ausência de confiança ou sensação de alienação desapegada. - É animosidade agressiva e desejo de destruir.
Lembre-se da experiência de desconfiança explosiva na Rússia pré-revolucionária: "Qualquer pessoa que usasse uniforme era candidata a uma bala na cabeça ou ácido sulfúrico no rosto. Propriedades rurais foram incendiadas ('iluminações rurais') e empresas foram extorquidas ou explodidas. Bombas foram lançadas ao acaso em vagões de trem, restaurantes e teatros (...). No entanto, em vez de o pêndulo balançar para trás, a matança cresceu e cresceu, tanto em número quanto em crueldade. O sadismo substituiu o simples assassinato".
"E como a sociedade liberal educada respondeu a tal terrorismo? Qual era a posição do Partido Democrático Constitucional (Kadet) e seus deputados na Duma (o parlamento criado em 1905)? O líder do partido, Paul Milyukov, declarou que "todos os meios agora são legítimos (...) e todos os meios devem ser tentados". Quando solicitado a condenar o terrorismo, outro líder liberal então na Duma, Ivan Petrunkevich, respondeu sua conhecida resposta: 'Condenar o terrorismo? Seria a morte moral do partido!'
Bem, desconfiança geopolítica explosiva é acreditar que estados que discordam de você não estão apenas errados, mas são ilegítimos e sempre ameaçadores. São os bárbaros, do lado de fora das muralhas da cidade.*******
[1] Ing. Imprecarity. A única ocorrência que encontramos dessa palavra na Internet está em Refugee Review: "[2] Imprecarity is defined as precarity's opposite: the formal processes and informal arrangements that permit security and stability", o que não parece fazer sentido no texto acima. Pelo sim, pelo não, tentamos escapar da armadilha dos falsos cognatos. Mas registramos aqui que Alistair Crooke é autor que se vale de vocabulário muito rico, sempre difícil de traduzir, e é possível que "imprecarity" seja, sim, semanticamente equivalente à expressão "precarização mal disfarçada" (port.). Todos as correções e comentários são bem-vindos [NTs].
Foto: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/07/Germaniae_antiquae_libri_tres%2C_Plate_17%2C_Cl%C3%BCver.jpg