Avós de Maio apreensivas com política do novo governo para a Memória na Argentina
Em carta dirigida ao novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, a organizaçãoAvós da Praça de Maioexplicitou sua profunda preocupação pela situação do Arquivo Nacional da Memória e pela falta de informações sobre quais serão as políticas do atual governo para a Memória, Verdade e Justiça. Ao longo de quase 40 anos, o grupo tem mantido um diálogo aberto com distintos governos como parte da luta incansável para localizar e restituir às suas legítimas famílias todas as crianças sequestradas e desaparecidas durante a ditadura militar no país (1976-1983).
"O motivo da nossa inquietude são as declarações públicas expressas pelo atual secretário de Direitos Humanos do governo, Claudio Avruj, sobre uma mudança de paradigma em matéria de direitos humanos, e do papel que seu governo quer atribuir aos órgãos que representamos.", aponta a entidade.À Adital, Estela de Carlotto, presidente das Avós da Praça de Maio, relata que a resposta social recebida ao longo dos 38 anos de luta tem crescido, com a população se apropriando da causa da entidade. Ela prevê que o movimento seguirá forte, para além de qualquer conjuntura política. "Sempre tivemos a solidariedade dos governos, instituições e cidadãos, mas, nos últimos 20 anos, o acompanhamento da sociedade tem sido emocionante".
Sobre o tratamento dado pelos governos anteriores aos trabalhos desenvolvidos pela associação, Estela explica que tanto a gestão de Cristina Fernández como a do seu antecessor, Néstor Kirchner, foi sensível à problemática dos netos e apoiou a busca e os direitos humanos em geral. "Certamente, converteram nossas bandeiras históricas de Memória, Verdade e Justiça em uma política de Estado e isto é saudável, não somente para o presente, mas, sobretudo, para o futuro do país".
A ditadura militar instituída na Argentina, em 24 de março de 1976, empreendeu uma política de terror e perseguições, afetando mais de 30.000 pessoas, submetidas à prisão, tortura e desaparecimento forçado. Estela cita como principais violências cometidas contra as crianças desaparecidas - a mentira, manipulação psicológica, o ocultamento, "arrancá-las dos braços de suas mães, quando ainda não tinham sequer linguagem para expressarem semelhante horror, separá-los de nós, suas famílias legítimas".
Segundo a presidenta das Avós, a cadeia de danos que provoca um sequestro dessa natureza é interminável e, além disso, cada caso é diferente. A única maneira de começar a curar esses sofrimentos, e de cessar o delito, para ela, é a restituição da identidade das crianças desaparecidas. Neste processo, as Avós já conseguiram recuperar os laços com 119 netos. O mais recente é o do Mario Bravo (neto 119), em dezembro do ano passado, que buscava pela mãe (Sara) há 40 anos.
A polêmica envolvendo a suposta neta 120, que seria Clara Anahí Mariani, reforça o delicado e responsável processo empreendido pelo movimento das avós. Clara Anahí desapareceu em 24 de novembro de 1976, aos três meses de idade, na cidade de La Plata. Uma jovem havia procurado, em novembro de 2014, a filial das avós, em Córdoba, quando foi encaminhada para a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi), organismo estatal que atende aos que desejam saber a própria origem, por terem sido vítimas do terrorismo de Estado. A jovem realizou os testes de estudo genético, no Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), em 13 de março de 2015, mas o resultado foi incompatível com os perfis genéticos dos familiares de Clara Anahí. Em 25 de dezembro, uma revisão nos resultados ratificou o laudo, mas o caso já havia repercutido internacionalmente.
O exame genético consiste no "Índice de Abuelidade", uma fórmula estatística que, estabelece com precisão indubitável a probabilidade de parentesco entre um avô e seu neto. "E foi o resultado dos nossos reiterados pedidos à comunidade científica internacional", explica Estela. O BNDG foi criado por lei, em 1987, a pedido das Avós de Maio e "cumpre com as principais normais internacionais em genética forense e é um lugar de excelência profissional, como deve ser.", assinala Estela.
Sobre o processo de aproximação das avós junto aos supostos netos, Estela destaca que nunca se divulga o nome nem os dados dos netos restituídos para que se respeite a intimidade e o tempo de cada um. "Nós esperamos, com paciência, sabendo o difícil que é o processo de recuperar a identidade". Após reconhecidos legalmente, em geral, ela diz que os netos restituídos são acompanhados por assistência psicológica, jurídica e afetiva.
Em relação ao vínculo com as famílias que criaram esses netos desaparecidos, o impacto na relação depende se houve ou não ocultamento da informação. "Cada caso, como dissemos, é diferente. Há netos cujas famílias de apropriação não tinham vínculo direto com o regime militar, e nestas situações é mais compreensível que sigam tendo uma relação. Mas, na maior parte dos casos, houve ocultamento, e isto, tarde ou cedo, uma vez desvelada a verdade, influi nessa relação", destaca Estela.
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Cristina Fontenele