Sidi Mohamed Dadach, presidente da CODAPSO (Comité de Apoio à Autodeterminação do Sahara Ocidental) nasceu em 1957 em Guelta, Sahara Ocidental, que foi declarado a província nº 53 de Espanha em 1958. Chamam-lhe Mandela do Sahara, ou por alguns amigos Mandela versão pobre. Nos três dias que comparti o dia a dia de Dadach, em Badajoz, no país que abandonou os saharauis de forma cruel e ilegal, nunca o vi como o Mandela do Sahara, mas sim como o Dadach do Sahara, um pessoa única com uma integridade e força escondidas num corpo maltratado pelas torturas, com cicatrizes enormes e um ligeiro coxear. A força deste Homem é no entanto bem visível nos olhos limpos e intensos que nos penetram quando fala e num discurso claro e preciso de quem sabe o caminho que é necessário percorrer para alcançar por fim a paz.
28 anos de prisão no total, 23 anos consecutivos dos quais 14 com sentença de morte, desaparecido durante mais de uma década, a injustiça, o sofrimento e as torturas de que foi alvo são indiscritíveis e envergonham a humanidade. Dadach tinha 16 anos em 1973 quando se juntou à Frente Polisário para lutar contra a ocupação espanhola, em 1975, Marrocos invadiu o Sahara Ocidental e Dadach foi capturado em 1976 pelo exercito marroquino. Dois anos depois foi obrigado a integrar o exercito marroquino sob ameaça de pena de morte, tentou desertar e regressar à Polisario, tentativa que falhou e voltou à prisão. Em 1980 foi condenado à morte, sentença essa que foi retirada 14 anos depois, conheceu a liberdade no século XXI, mas continua preso na maior prisão a céu aberto do mundo, os territórios ocupados do Sahara Ocidental. Mais de uma década ninguém sabia se ele estava vivo, um dos muitos desaparecidos saharauis.
Vamos caminhar até ao rio, e falar... a voz calma e baixa de Dadach acompanha o nosso passeio, com memórias dolorosas, referencias a amigos, a surpresas e desgostos, a sofrimento e alegrias.
Durante 23 anos não podia nunca sair da cela após as 17h00, estava fechado das 17h00 às 09h00, agora quando chega a esta hora necessito de passear de sair, sabes estive mais de duas décadas sem ouvir nem ver uma criança, uma mulher, sem ver vida.
As 04h30 da manhã vinham os guardas, ouvia os seus passos, pam pam pam, vinham buscar os condenados à morte para os executar. Nunca dormia antes, só conseguia adormecer após a execução, já de manhã depois de ouvir o chamamento da mesquita, e aí dormia ... até às 09h00.
Não quero falar mais disso, quero esquecer um pouco... o seu olhar vagueia e a dor que vejo nos seus olhos não tem descrição ainda, as palavras que conheço não a podem descrever.
Passado um bocado e à beira do Rio Guadiana (o meu rio em árabe) sentados na relva continua a recordar.
A minha cela tinha dois metros por um e cinquenta. Tinha um buraco aberto no chão para fazer as necessidades, era muito suja não me davam nada para a poder limpar. Tinha muitas baratas e outros insectos e cheirava muito mal, um dia veio visitar-me um senhor da Cruz Vermelha. Quando entrou na minha cela quase vomitou e pediu para falarmos no pátio da prisão, não aguentou o cheiro, a sujidade.
Tinha um buraco na parede da minha cela, como uma janela, mas muito pequeno, não via nada desse buraco apenas outro muro. Estive mais de duas décadas sem ver a lua, as estrelas .... temos que parar de novo, as memórias levam-no a sítios que não pode partilhar, faltam novamente as palavras. Recorda que conseguiu arranjar um bocadinho de espelho e com esse bocadinho tentava ver as estrelas.
Uma vez entrou um passarinho por esse buraco, um passarinho gordo, muito gordo... eu não comia carne há muito tempo só tínhamos um café sujo pela manhã com um bocadinho de pão duro e depois arroz, cuscuz, grão ou lentilhas, por vezes de longe a longe 40gr de carne... Olhei para o passarinho gordo que voava em redor da minha cela sem conseguir voltar a sair, podia come-lo ... dei-lhe um pouco de água e umas migalhas de pão, apanhei-o e libertei-o deixando o voar outra vez pelo buraco, pareceu-me ser uma boa noticia.
Na prisão havia muitos criminosos violentos com tatuagens em todo o corpo, aprendi a viver com eles, de manhã no pátio saudava toda a gente, sbah el jair (bom dia) e apertava-lhes a mão. Havia também comunistas, um deles, o seu líder ajudou-me a escrever cartas e faze-las chegar ao exterior à Amnistia Internacional e outras organizações.
Sempre estive sozinho na minha cela... era mais seguro. Estava muito tempo sozinho ... cantava baixinho ... e Dadach começa a cantarolar uma melodia calma mas dura, a letra fala da independência.
Chegamos ao ultimo dia da minha visita, passei o Eid Al Adha (páscoa muçulmana) com Dadach e outros saharauis, matamos um cordeiro de acordo com a tradição e comparti muitos mas muitos copos de chá. O chá esteve também presente na entrevista que lhe pedi no ultimo dia.
Dadach o activista de direitos humanos, o homem que chamam Mandela Saharaui, mas também podiam chamar Ghandi, a verdade é que para mim Dadach é Dadach e estou convicta que essa descrição chega.
Entrevista
- Existem mais de 50 presos políticos saharauis nas prisões marroquinas, continuam as detenções arbitrárias, os sequestros e a as torturas, a comunidade internacional continua silenciosa, em sua opinião quais as ações que se poderiam desenvolver exigindo a libertação dos presos?
- Na minha opinião é necessário reforçar a pressão internacional pela libertação dos presos políticos. As organizações, associações e pessoas individuais que apoiam a causa saharaui e o respeito pelos direitos humanos deveriam organizar-se e desenvolver ações de protesto em cada país em frente às embaixadas e consulados do Reino de Marrocos, exibindo as fotografias dos presos políticos e com pancartas exigindo a libertação imediata de todos os presos políticos. Há presos políticos com sentenças de condenação perpetua.
Sugiro ainda que todos escrevam cartas exigindo a libertação dos presos, não apenas dirigidas aos organismos das Nações Unidas, como também à União Europeia, ao Ministro da Justiça de Marrocos e a todas as embaixadas estrangeiras com representação em Rabat, como é o caso dos EUA, França, Espanha, Portugal etc.
O envio de cartas é essencial para aumentar a pressão internacional.
- As condições dos presos e das prisões marroquinas não respeitam nenhum acordo nem convênio internacional subscrito pelo Reino de Marrocos, será possível que Marrocos algum dia respeite a Lei Internacional e cumpra o que subscreve?
O Reino de Marrocos não cumpre o que assina. Não respeita o que tem escrito em papel, não passam de um conjunto de documentos cujas diretrizes não são aplicadas.
Sempre que a União Europeia pressiona Marrocos de alguma forma para a libertação dos presos políticos e sobre os temas do direitos humanos, Marrocos contrapõe com a ameaça de entrada massiva de emigrantes ilegais, com a abertura de Ceuta e Melila e o livre transito para os milhares de subsaharianos que querem cruzar o mediterrâneo.
- Qual deve em sua opinião ser a exigência principal da comunidade internacional na questão do Sahara Ocidental?
O conflito do Sahara Ocidental é político e militar, a Frente Polisario esteve mais de 16 anos em guerra contra Marrocos e também durante pouco tempo contra a Mauritânia, até à assinatura do cessar-fogo em 1991 e a entrada da MINURSO. Todas as infracções e o sofrimento dos saharauis tanto nos territórios ocupados como nos acampamentos de refugiados são consequência direta desta ocupação e só irão terminar no dia em que for implementada uma solução definitiva para o Sahara Ocidental.
O apoio da maioria das organizações, associações e movimentos civis na Europa reduz-se à ajuda humanitária, não focando o apoio político com o objectivo de alcançar a autodeterminação.
As organizações e o movimento solidário de Espanha são quem mais ajuda humanitária envia para os acampamentos de refugiados, todas estas organizações, associações e movimentos cívicos deveriam exigir a autodeterminação do povo saharaui ao governo Espanhol que continua a ser o administrador in jure do território, e exigir o mesmo ao Rei de Espanha. Peço aos nossos amigos espanhóis que façam esta exigência para uma solução imediata para o nosso povo que sofre há mais de 40 anos. Necessitamos da ajuda humanitária sem dúvida, mas necessitamos sobretudo um apoio político para terminar o nosso sofrimento. Não podem reduzir a sua ação à ajuda humanitária.
Peço ás organizações, associações e movimentos civis, que reequacionam a sua forma de solidariedade e começam a desenvolver ações de pressão política pela autodeterminação do Sahara Ocidental para que seja possível um fim rápido deste conflito.
Não existe nenhum país que reconheça a ocupação marroquina do Sahara Ocidental. A União Africana nos últimos tempos tem tomado várias posições e publicado relatórios e recomendações no sentido de uma rápida solução para a descolonização definitiva do Sahara Ocidental. O presidente da África do Sul declarou recentemente na Assembleia Geral das Nações Unidas a necessidade do agendamento de uma data concreta para a realização do referendo para a autodeterminação.
A aceitação da Federação Suíça da Frente Polisário como aderente da Convenção de Genebra, em Junho deste ano, confirma o seu reconhecimento como movimento de libertação do Povo Saharaui.
Todos estes factos são uma ajuda no desenvolvimento de ações de pressão sobre o governo de Marrocos.
Não existe nenhum saharaui nem nos territórios ocupados, nem nos acampamentos de refugiados que aceite um plano de autonomia, a única solução é a autodeterminação.
É nossa esperança que este problema se resolva de forma pacífica, não queremos entrar em guerra, mas se este impasse continua ninguém pode prever o que vai acontecer.
Estive reunido há pouco com um alto responsável da Frente POLISARIO e coloquei-lhe esta questão, se é possível que tenhamos que regressar à guerra com Marrocos, a resposta dele foi que é possível.
Não temos pessoas a viver nas zonas libertadas, continuam as manobras e a formação militar, assim como a renovação de armamento exatamente porque estamos preparados para esta eventualidade.
Eu estou a dizer isto para que tenham consciência que a situação não vai poder continuar assim, e por isso apelo mais uma vez à comunidade internacional e a todos os amigos do povo saharaui que façam toda a pressão possível e desenvolvam as ações possíveis de forma evitar que sejamos obrigados a voltar à guerra. Uma guerra não é boa para ninguém.
- Fala-se nos saharauis nos acampamentos de refugiados e nos territórios ocupados, e os saharauis na diáspora?
Existe um número cada vez maior de saharauis na diáspora, consequência direta de 40 anos de ocupação, do impasse político e das situações de desespero tanto nos territórios ocupados como nos acampamentos de refugiados.
Não é normal haver tantos saharauis fora do seu país, é evidente que se trata de uma situação anormal. Não se tratam de emigrantes que saem de um país independente apenas com o objectivo de melhorar a sua vida economicamente, como acontece na maioria dos países actualmente.
São pessoas que fogem ao sofrimento, ao impasse político, à estagnação das suas vidas.
A saída destes saharauis para a diáspora é a consequência da repressão marroquina e do sofrimento dos acampamentos de refugiados.
A responsabilidade e a união de todos os saharauis, os que vivem nos territórios ocupados, nos acampamentos de refugiados e na diáspora é indispensável para que se alcance uma solução do conflito.
Nós territórios ocupados por exemplo, organizamos e participamos em manifestações, em sittings e outras formas de protesto pacifico exigindo a autodeterminação, denunciamos as violações que as autoridades marroquinas cometem aí e denunciamos junto da comunidade internacional que não existe liberdade de expressão nos territórios ocupados, não há respeito pelos direitos humanos, continuam os sequestros, as detenções arbitrárias e as torturas, o sofrimento do povo saharaui.
Em consequência da ocupação marroquina continua a haver até ao dia de hoje desaparecidos saharauis e presos políticos.
Gostaria de apelar à diáspora saharaui e perguntar-lhes o que estão a fazer para denunciar a situação dos territórios ocupados e dos acampamentos de refugiados.
Não podem restringir-se a apoiar de forma humanitária ou económica o nosso povo.
Que fazem aqui na diáspora? É apenas para melhorar as vossas vidas e resolver o problema da documentação? Ou é também para denunciar o que se passa no vosso país?
Não devem perder tempo apenas a construir e procurar os vossos interesses pessoais na Europa, a vossa presença na Europa é consequência da ocupação e do roubo do vosso país. Vivem em países que não são o vosso, onde ninguém fala o vosso idioma, não têm as vossas tradições, a vossa alimentação, o vosso clima, as vossas memórias e famílias. Nunca devem esquecer que estão nesta situação devido à ocupação e que têm que lutar com os meios que têm disponíveis, para que seja possível regressarem à vossa pátria.
Melhor que ninguém sabem o que devem fazer para exigir a autodeterminação e o fim da ocupação, sabem como e o quê podem fazer em cada país onde se encontram, cada um a sua maneira, com manifestações ou outras formas de luta e denuncia.
O caminho é claro e o destino também, não devemos perder tempo com coisas que não irão mudar de facto o nosso futuro, a nossa situação, mas sim concentrar-nos no essencial a autodeterminação.
Isabel Lourenço
Badajoz, 23,24 e 25 de Setembro de 2015