Na segunda-feira 18, os governos da União Europeia, liderados por Angela Merkel, aprovaram a criação de uma força naval para deter o tráfico de imigrantes pelo Mediterrâneo. Para colocá-la em ação, falta a ONU autorizá-la a atacar as embarcações no mar e realizar incursões em território líbio para desarticular as supostas redes de migração ilegal. Sintomaticamente, foi descartada pelo veto do Reino Unido, França e Espanha a proposta alemã de uma cota de 20 mil imigrantes a serem acolhidos e distribuídos entre os países da organização, mesmo se isso representar uma pequena fração do fluxo total. Só na Itália, chegaram de janeiro até a primeira quinzena de maio 34 mil, e outros 2 mil morreram na tentativa. No ano passado, 180 mil tentaram a travessia e neste ano deverão ser muitos mais.
por Antonio Luiz M. C. Costa - Carta Capital
O que pode dar errado nessa política? Praticamente tudo, mesmo sem contar a morte certa de muitos inocentes no processo. Repetem-se as falácias da "guerra ao narcotráfico" e da "guerra ao terror". A ilusão de uma "rede de tráfico" comandada por um punhado de vilões pode vender bem nos jornais populares, mas trata-se de arranjos locais e independentes, de tentativas de sobreviver e prosperar no caos da Líbia. Os migrantes viajam em barcos de pesca, cuja destruição sistemática retirará meios de vida dos desesperados moradores do litoral.
Sobretudo, tais ações ampliam a revolta de árabes e africanos contra a Europa e tudo o que o Ocidente pretende significar. Ao contrário dos europeus, esses povos estão muito conscientes de como o colonialismo e as intervenções ocidentais em busca de matérias-primas, petróleo e posições estratégicas contribuíram para suas misérias e para as guerras que os dividem. É tênue demais o verniz da hipocrisia que justificou a destruição do país de mais alto desenvolvimento humano na África em nome da democracia, para depois apoiar em prol da estabilidade a consolidação de uma ditadura violenta no vizinho Egito.
O Estado Islâmico e a Al-Qaeda, atuantes com força na Líbia e outros países africanos, serão os principais beneficiários e encontrarão recrutas tanto nesses países quanto entre as indignadas minorias afro-árabes marginalizadas nos países ricos, solidárias com os parentes e correligionários deixados para trás. A Europa se porta como um imprudente que, incomodado pelo chiado da válvula de pressão de uma caldeira, trata de entupi-la para cochilar em paz.
A miopia é tão mais preocupante quando se acumulam as evidências de que o jihadismo, e em particular o Estado Islâmico, está em plena ascensão, ao contrário do que previam militares e analistas ocidentais. Em 19 de fevereiro, um representante do comando central dos EUA no Oriente Médio anunciou em conferência telefônica, como "mostra de confiança nas forças locais", uma estratégia para a reconquista ao Estado Islâmico da grande cidade de Mossul, tomada em junho de 2014. A operação aconteceria em abril e maio, mobilizaria de 20 mil a 25 mil combatentes iraquianos contra mil a 2 mil jihadistas e seria levada a termo antes de junho, quando o calor e o Ramadã dificultariam as operações.
O "califado" havia falhado em janeiro ao tentar tomar aos guerrilheiros curdos a cidade síria de Kobane (arrasada no processo), perdeu Tikrit para as milícias xiitas em março, e a se acreditar em Bagdá, teve seu "califa", Al-Baghdadi, morto ou incapacitado por um bombardeio estadunidense no mesmo mês e seu vice-líder, Abu Alaa Afri, eliminado em outro ataque, em maio, assim como 18 das 43 principais lideranças. No começo de maio, o Pentágono garantia que o Estado Islâmico perdera 25% do "território" desde o início do ano. Ainda assim, a ofensiva alardeada com tanta antecedência não aconteceu. Ao contrário.
Ainda na sexta-feira 15, o general Thomas Weidley garantia no Iraque que os jihadistas estavam "na defensiva" em Ramadi, cidade a 110 quilômetros de Bagdá que chegou a ter 600 mil habitantes, disputada desde outubro de 2014 e alvo de 165 bombardeios no último mês. Dois dias depois, 150 jihadistas acabavam de expulsar 6 mil soldados, executavam 500 iraquianos e libertavam os presos sunitas. Apesar de outros tantos bombardeios, também avançavam na refinaria de Baiji, mais ao norte. O Pentágono e a mídia ocidental tentam minimizar a derrota, mas é muito séria. A esperança de recuperar Ramadi depende agora das milícias xiitas (uma das quais se chama Hezbollah, como a similar libanesa que luta ao lado de Bashar Al-Assad), cuja participação nos combates fora vetada pelos Estados Unidos por causa do risco de fortalecer a influência do Irã em Bagdá e ampliar o apoio sunita a Al-Baghdadi.
Ao mesmo tempo, o Estado Islâmico avançou no centro da Síria. Na quarta-feira 20, completou a expulsão das tropas de Assad das ruínas de Palmira, mais um tesouro arqueológico ameaçado de aniquilação, além de se apoderar das reservas de gás e petróleo pelo caminho.
Aparentemente, as notícias sobre a morte do "califa" foram grandemente exageradas, como diria Mark Twain. Duas mensagens suas em áudio foram divulgadas pela internet nos últimos dias. Mesmo se não fossem, uma organização de dezenas de milhares de militantes será capaz de recrutar novas lideranças enquanto sua mensagem fizer sentido para seu público. A obsessão dos agentes dos EUA por identificar e eliminar supostas lideranças como se isso fosse decisivo tem-se mostrado um fetiche contraproducente. Ninguém sabe se os ataques com drones no Iêmen, Paquistão e Afeganistão eliminaram tantos "comandantes" fundamentalistas quanto a CIA alega, mas a morte de milhares de civis como "danos colaterais" certamente ampliou o apoio popular e o recrutamento de militantes nessas regiões.
Na sexta-feira 15, os EUA anunciaram com muita pompa a eliminação de um certo Abu Sayyaf, descrito como importante liderança do Estado Islâmico, e a captura de sua esposa em uma incursão de forças especiais em território sírio. Jornalistas mais atentos notaram que esse nome nunca esteve nas listas de líderes da organização nem foram oferecidos prêmios por sua captura. Serviu para disfarçar o fracasso em encontrar um alvo mais importante. A própria execução de Osama bin Laden parece cada vez mais ter sido mero gesto de propaganda e queima de arquivo, mesmo que não se queira aceitar inteiramente a versão do jornalista Seymour Hersh, segundo o qual o ex-líder vivia há anos como refém do Paquistão.
A verdade sempre foi a primeira vítima das guerras. A gravidade desse caso é que os comandantes do Ocidente parecem sistematicamente iludir a si mesmos. Ao apoiar a insurgência contra Assad, deram de ombros ao fato de grande parte dos "rebeldes sírios" serem fundamentalistas furiosos. Quando estes criaram o ISIS e lançaram sua primeira grande ofensiva no Iraque, Barack Obama pensou tratar-se apenas de uma boa lição para o então primeiro-ministro Nouri al-Maliki, que exigira a saída das tropas dos EUA de seu país e recusava atender às recomendações de Washington para dividir o poder com os sunitas. Quando o Estado Islâmico se consolidou e se proclamou um "califado", analistas se apressaram a classificá-lo como um "problema local" em declínio e sem poder para ameaçar o Ocidente, enquanto seu apelo seduzia milhares de jovens criados na Europa e EUA e forças que proclamavam lealdade a Al-Baghdadi surgiram repentinamente no Iêmen, Paquistão, Líbia e vários outros países da Ásia muçulmana e da África do Norte.
Acima da relutância da Casa Branca em reconhecer seus erros estratégicos e diplomáticos, paira a resistência de setores empresariais, militares e políticos que apostaram seus negócios e carreiras no isolamento do Irã e do Hezbollah e nos compromissos com Israel e Arábia Saudita. Tel-Aviv e Riad continuam obcecados por aniquilar os movimentos xiitas, assim como a Irmandade Muçulmana e o Hamas (sunitas, mas de uma vertente rival do wahabismo ou salafismo dos sauditas, Al-Qaeda e Estado Islâmico) e tratam os jihadistas como aliados conjunturais, no mínimo. Tanto os bombardeios israelenses na Síria quanto os sauditas no Iêmen miram as forças de Assad e dos houthi, sem se importar se com isso facilitam o avanço dos fanáticos de Al-Baghdadi e Al-Zawahiri. Os próprios EUA treinam e armam os "rebeldes moderados" do "Exército Livre da Síria" e fecham os olhos à evidência de que seus comandantes vendem suas armas e munições para o Estado Islâmico.
Parece persistir a noção de que Washington e Bruxelas, sede da União Europeia e da Otan, podem continuar a se distrair com disputas internas e jogos de lobbies sem precisar compreender a fundo os acontecimentos nem formular uma estratégia coerente e apresentável à comunidade internacional porque sempre poderão impor sua vontade no Oriente Médio (ou em qualquer outra parte do mundo), moldar os acontecimentos ao seu gosto e prevenir reações desagradáveis se liquidarem ou subornarem as pessoas certas. É uma visão defasada da realidade em décadas, tanto pela redistribuição do poder econômico e industrial quanto pelos resultados não calculados das próprias políticas ocidentais.
*Reportagem publicada originalmente na edição 851 de CartaCapital, com o título "Sempre pode piorar"