Para quem está acostumado a se atualizar no debate histórico da filosofia e dos grandes campos de conhecimento criados pelo homem (da psicanálise à história da arte), os últimos acontecimentos são indícios do que os grandes pensadores já apontavam. E quando o grande saco de merda estourar, vai espantar muita gente, menos aqueles que estudam a coisa à sério.
Marcelo Henrique Marques de Souza
O pensador alemão Karl Marx ficou muito conhecido no século XX. Não tanto por suas ideias, que poucos leram de fato. Na verdade mais porque foi adotado, no Brasil, por certo pensamento que sempre se disse "de esquerda", e que avaliou errado a conjuntura de sua teoria no debate histórico.
Há uma coisa que foi apontada pelo Marx e que está acontecendo agora, exatamente da maneira que ele previu, no mundo capitalista. Trata-se de uma tendência brutal à concentração de renda, que não acha justificativa coerente no discurso. Essa falta de justificativa (dado que o dinheiro excedente é obviamente supérfluo) está gerando novas reclamações de uma parcela ainda pequena, mas crescente, das pessoas, nas sociedades ocidentais. Estamos vendo passeatas em toda a Europa e já teve gente inclusive fazendo manifestação em frente ao trono da bandidagem de hoje, que é Wall Strett, em Nova York. A mídia, obviamente, tenta filtrar de todas as maneiras porque, na medida em que não passa de mais um bando de corporações parasitas, quer mais é que a desigualdade resista. Um exemplo claro disso aparece quando a gente vê que as manifestações no mundo árabe são comemoradas por essa mídia, enquanto que as outras, contra os banqueiros, corporações e políticos corruptos daqui são rapidamente afogadas e tratadas como baderna.
Segundo o Marx, essa concentração de renda geraria, de imediato, nos chamados "operários" (ou "proletariado"), a conscientização de seu caráter de oprimidos, o que traria, junto, a "revolução". Fazia até um certo sentido. Ele pensava que, de tanto se fuderem, os babacas iriam aprender e se tocar de que estavam sendo escravizados, para então reagirem. E é aí que ele não contava com o surgimento da chamada "mídia de massa".
A noção de massa surge com os filósofos, que perceberam que a palavra "povo" não explicava mais a relação das pessoas comuns com o mundo, na medida em que as manifestações políticas foram dando lugar a uma passividade crescente, centrada na crença, pela maioria das pessoas, de que o 'lazer' seria de fato um escape do excesso de exigências do trabalho. Então, enquanto o "povo" reivindicava direitos, a "massa" liga a TV e deixa rolar.
Essa noção de "massa" aponta para um erro na tese do Marx (e mostra que se você não acompanha o desenrolar do debate, fica parado no século XIX, sem entender o que está acontecendo). Ele achava que a revolução seria o fim da luta de classes, para a chegada do comunismo, que seria um mundo sem diferenças. Errou duas vezes. Primeiro, porque não há como dar fim às diferenças no ser humano (e ainda bem, diga-se de passagem). Nisso, o Freud foi bem mais longe que ele e leu o Hegel de uma forma mais madura. E segundo porque já estamos na época do fim das classes, e ela não gerou a conscientização da alienação por parte dos trabalhadores. A se conscientizar, eles preferiram sentar a bunda na frente da TV e delegar seu pensamento aos midiáticos de plantão (o que um dos melhores leitores do Marx, Guy Debord, aponta em seu principal livro, do final da da década de 60, chamado "Sociedade do Espetáculo". O que o Debord diz nesse livro nada mais é do que o que a gente hoje vê todo dia: que a mídia viraria uma religião na cabeça das massas alienadas. Acertou na mosca).
Trata-se de uma nova estratégia ideológica do capital, que vai engolindo suas contradições e regurgitando-as na forma de produto (o que leva a crer que o Marx se enganou justamente porque não leu bem a si mesmo, ao menos nesse ponto). Já repararam que quase não se ouve mais a palavra "burguês"? E por quê? Exatamente porque ela não faz mais sentido. Burguês era uma palavra que designava o dono de produção, em oposição moral ao operário. Hoje, a ideologia convenceu as pessoas de que todo mundo pode ser patrão (e rico) um dia. E aí pronto: todo mundo percebe as contradições brutais da concentração de renda, mas pouca gente fica realmente irritada, porque a maioria quer mesmo é enriquecer um dia, pra ligar o foda-se e curtir a vida adoidado, enquanto os outros se matam de trabalhar. Ser rico deixou de ser uma falta moral na cabeça das massas alienadas. E é apenas por isso que o capitalismo ainda se mantém.
Portanto, as contradições vão continuar aumentando. Só que hoje o poder dos ricos é inacreditavelmente grande. Nunca os armamentos foram tão fortes e poderosos e nunca antes a alienação foi tão grande. A mídia continua funcionando como anestesia. Até quando não se sabe. O fato é que um dia esses caras vão chegar aqui. Já detonaram o Iraque, estão agora apontando as armas pro Irã, e um dia vão descer aqui pra pegar o pré-sal e a biomassa.
E enquanto isso, falando em massa, a maioria continua sem perder as últimas da programação midiática. Com essa você não contava hein Marx...
*Marcelo Henrique Marques de Souza é do Rio de Janeiro. Ele mesmo declara: "Sou escritor e professor de um monte de coisa ligado às ciências que chamam de "humanas", como se houvesse alguma ciência de cachorro. Ensino (e aprendo) filosofia, redação, literatura, ética e cidadania e preparação de monografia, no ensino fundamental 2, ensino médio, graduação de pedagogia e pós-graduação em 'educação e comunicação' e 'psicopedagogia'. Meus textos são ensaios e artigos críticos da lógica ocidental, que se baseia na tríade patética que mistura a sacanagem do mercado (a propaganda incluída), a hipocrisia do cristianismo e a falácia dos racionalismos. É contra isso que busco a impostura da crítica".