Ignacio Valencia, último de um mundo que já não existe mais
Em obituário, antropólogo Stephen Hugh-Jones relata sua convivência com importante kumu dos Makuna, último representante de sua geração
Ignacio Valencia, falecido no dia 01/06, era um velho Makuna muito respeitado e um dos mais importantes kumua, intelectuais-xamãs da região do Rio Pirá-Paraná, que atravessa o Equador bem próximo da fronteira da Colômbia com o Brasil.
Ignacio era especialmente reconhecido entre o pessoal do Pirá como um homem de grande sabedoria, muitas esposas e muitos descendentes, último representante vivo do que o pessoal do Pirá conhece por masa goro ou gente verdadeira - uma geração que ainda se vestia no estilo ancestral, caçava com zarabatana e dardos envenenados e vivia coletivamente em malocas, as imponentes casas comunitárias decoradas que encapsulam sua cosmologia. Era também uma personalidade bem conhecida em Bogotá e mesmo além, especialmente entre aqueles envolvidos na defesa dos direitos dos povos da Amazônia colombiana e de sua sobrevivência, da garantia das culturas tradicionais e das florestas que ocupam.
A vida de Ignacio atravessou o período em que os Makuna e grupos vizinhos da isolada região do Pirá fizeram uma transição. Passaram de uma situação na qual evitavam virtualmente qualquer contato com pessoas de fora à situação contemporânea, em que conseguem manter importantes elementos de seu modo de vida tradicional, ainda que combinando-os com computadores e internet, gerindo suas próprias questões através de uma organização política, com escritórios e representantes legais na capital do Departamento, conduzindo seu próprio programa educativo, e manejando seu território tradicional como uma Reserva, cuidando da floresta e dos rios, protegendo-os da mineração ilegal e de outras ameaças.
Com seu modo sábio e sintonizado senso de humor, precisas opiniões e habilidades diplomáticas, além da sua precoce percepção de que o caminho a seguir passava pela aliança com pessoas bem-intencionadas para com os povos indígenas do mundo como um todo, Ignacio teve um papel central nessa transição bem-sucedida.
Ignacio nasceu em algum momento nos anos 1940, período de guerra em que a demanda por borracha levou seu povo ao contato esporádico com coletores de borracha colombianos. Minha esposa Cristina e eu o encontramos pela primeira vez em 1968, quando chegamos de surpresa durante uma cerimônia que celebrava a abundância de lagartas comestíveis.
Ignacio, então um homem jovem com seus cerca de 20 anos, estava vestido com adornos plumários de dança, já embarcando numa carreira de xamã e especialista de dança sob orientação de seu pai Gühe Bükü - breu velho - um renomado kumu e especialista ritual. Nós éramos dois jovens e inexperientes antropólogos iniciando uma estadia de dois anos para aprender a língua e levantar informação para nossas teses de doutorado. A esposa de Ignacio havia acabado de dar à luz e ele imediatamente chamou seu filho recém-nascido de Esteban (como meu nome, Stephen), iniciando uma amizade que atravessaria toda a nossa vida adulta.
Dez anos mais tarde encontramos Ignacio novamente, desta vez durante um grande ritual na maloca de nossos anfitriões Barasana, onde Ignacio viera trocar bastões de ritmo de bambu por um conjunto de adornos plumários (cocares). Na época, missionários católicos e protestantes estavam firmemente estabelecidos na região e os seringueiros haviam passado a produzir cocaína das folhas de coca dos índios.
Reconhecendo a importância da escrita e dos novos conhecimentos oferecidos pelos missionários, Ignácio estava preocupado com as ameaças que aquela versão de escolarização impunha sobre os conhecimentos e modo de vida próprios de seu povo, e teve clareza ainda maior a respeito dos forasteiros transformando a coca sagrada em dinheiro, e dos efeitos quase-alucinógenos da enchente de mercadorias que os cocaineros traziam com eles.
O boom da cocaína foi seguido pela corrida pelo ouro que levou ao estabelecimento de uma pista de pouso e uma cidade em um lugar sagrado próximo ao território Makuna. Ignacio condenou a extração do 'sangue amarelo', vital para a terra, e vislumbrou o que poderia acontecer se os povos do Pirá permitissem a mineração no interior de seu recém-criado Resguardo (Terra Indígena).
Para administrar seu Resguardo e proteger seus interesses, os diferentes grupos étnicos do Pirá precisavam se unir em uma única organização e alcançar representação política. Em aliança com a Fundação Gaia Amazonas, Ignacio teve um papel central na criação da ACAIPI, a Asociación de Capitanes y Autoridades Tradicionales Indígenas del río Pirá Paraná. Seu filho José Esteban foi mais tarde eleito Deputado da Assembleia Departamental do Vaupés, e hoje seu sobrinho Fabio atua como representante legal da ACAIPI na capital departamental, Mitú.
Se o Resguardo e a ACAIPI deram ao povo do Pirá direitos territoriais e uma relativa autonomia política, a nova Constituição da Colômbia, de 1991, possibilitou-lhes substituir as escolas missionárias por seu próprio sistema educativo culturalmente adequado, com Ignacio e outros velhos xamãs guiando e treinando os jovens professores indígenas letrados, garantindo que seus conhecimentos tradicionais fossem passados adiante às futuras gerações, junto com as novas informações e habilidades que eles iriam precisar para se defender no mundo moderno.
Em 2011, a qualidade cultural única dos povos do Pirá e seu sucesso em mantê-la viva, ganhou reconhecimento internacional quando o Traditional Knowledge Jaguar Shamans of Yuruparí foi incluído na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade da Unesco.
Um de nossos últimos encontros com Ignacio aconteceu em 2016 quando acompanhamos Brian Moser em uma visita a diversas comunidades do Pirá para entregar cópias de quatro filmes documentários, centenas de fotos e horas de gravações sonoras que ele havia feito na região ao longo de sua carreira de cineasta. No filme de Titus-Fossgard, O Legado de Ignacio (Ignacio's Legacy), um registro da jornada de seu pai, Brian, e os enormes e bem sucedidos esforços do índios de combinar o antigo ao novo, um Ignacio satisfeito, mas melancólico, pode ser visto assistindo os filmes iniciais de Moser dos anos 1960, que retratam o mundo tradicional em que ele cresceu. Ignacio era o último representante vivo desse mundo. Nunca mais encontraremos pessoas como ele.
Stephen Hugh-Jones
ISA
Edição:
Traduzido por Flora Dias Cabalzar
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/ignacio-valencia-ultimo-de-um-mundo-que-ja-nao-existe-mais
Foto: Brian Moser