Dia 19 de setembro, abriu o debate parlamentar sobre a muito esperada nova lei de identidade de género. Há muito tempo que as pessoas trans se expressam a favor de uma nova lei: uma pela despatologização das identidades trans.
A lei 7 de 2011, na altura a mais avançada do mundo nesta matéria, foi desde então ultrapassada com exemplos legislativos, um deles sendo na Argentina em 2012. Foi nesse mesmo ano que começou a Campanha STP (Stop Trans Pathologization), uma campanha internacional que teve desde o início expressão em Portugal. Agora, em 2017, continua urgente fazer passar finalmente uma nova lei que ponha fim ao gatekeeping, ao poder que o corpo médico tem na realização das nossas vidas.
Para abrir o plenário, o Ministro-adjunto Eduardo Cabrita falou, e bem, a favor de uma lei que proteja os "direitos humanos fundamentais" de todas as pessoas, inclusive trans e intersexo. Sem surpresa, os representantes do BE, do PAN e do PS apoiaram as suas três propostas de lei. O PEV também garantiu que ia votar a favor. O PCP, apesar de um discurso positivo, não deixou bem claras as suas intenções.
Mas a ignorância e o preconceito que demostraram o PSD e o CDS-PP, usando a falácia da incapacidade de menores de decidirem por si mesmo (quem acredita que alguém não conhece a sua identidade de género aos 16 anos?), prova que a luta só está a começar para atingir a igualdade. Não deixemos o processo legislativo decorrer sem que sejam ouvidas as próprias pessoas visadas: nós reiteramos este princípio democrático - nada sobre nós sem nós.
É assim o nosso prazer anunciar a criação de uma nova associação trans, TransMissão: Associação Trans e Não-Binária, com o objetivo de defender os nossos direitos. Fruto de um processo de vários meses, esta associação junta pessoas trans que suportam a despatologização e a autodeterminação das nossas identidades e dos nossos corpos, e que assinaram a Declaração Trans pela Auto-Determinação, que foi entregue em maio ao Parlamento, ao Ministro-adjunto Eduardo Cabrita e à Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade Catarina Marcelino.
Esta declaração expressa as reivindicações para uma nova lei e recebeu um forte apoio individual e associativo. Com essas reivindicações, vamos pedir uma audição para nos expressarmos sobre o texto nas especialidades. Retomamos a palavra na primeira pessoa para apoiar uma lei pela autodeterminação! Não deixamos de saudar a iniciativa do governo de incluir na sua proposta de lei a proteção das características sexuais a fim de defender as pessoas intersexo, que também são vítimas da violência médica que visa manter artificialmente nos seus corpos o binarismo do cis-heteropatriarcado. Seguindo o princípio de incluir as pessoas visadas no processo legislativo, recomendamos o Parlamento a ouvir as reivindicações das pessoas intersexo (quer aqui em Portugal, quer internacionalmente com a OII e a Declaração de Malta de 2013.) Para todas as pessoas trans e intersexo: auto-determinação já!
Declaração
Declaração Trans pela nossa Auto-determinação Como membros da comunidade de pessoas trans que não se revêem num diagnóstico de saúde mental, considerámos pertinente dar o nosso testemunho em prol do direito à autodeterminação de género e autonomia sobre os nossos corpos.
Queremos também lançar um alerta sobre a negligência demonstrada pelo SNS ao não estar a garantir atempadamente e com qualidade os serviços de saúde a que temos direito. Afirmamos que esta declaração é da nossa inteira responsabilidade, sem qualquer participação, ameaça ou pressão médica ou psicológica na sua elaboração. Consideramos que é da maior importância a aprovação de uma lei que finalmente nos garanta o direito à autodeterminação de género e do corpo, seguindo exemplos legislativos de sucesso na matéria como são os casos de Malta, da Argentina e da Irlanda.
Somos um grupo de pessoas trans - trans segundo a definição da Transgender Europe (TGEU) e da maioria dxs ativistas, académicxs e artistas trans do mundo: não somos do género que nos foi designado à nascença. Acreditamos que nós, as próprias pessoas trans, devemos ser quem fala por e sobre nós. As definições de quem somos têm que deixar de ser aquelas impostas pelas autoridades médicas, políticas e institucionais cis ("cis" designa pessoas que não são trans).
Estas ocupam o nosso lugar de fala, falando ilegitimamente em nosso nome e não nos deixam ser ouvidxs. Estas autoridades condicionam, inclusive, as nossas vivências e identidades em consequência do seu entendimento parcial e limitado das realidades trans. Basta olhar para a história dos movimentos LGBT para perceber que estas autoridades e instituições sempre constituíram barreiras para a emancipação das pessoas pertencentes a estes grupos marginalizados.
Em inícios do séc. XX debatia-se a descriminalização de pessoas LGBT, mais tarde foi oficializada a despatologização das pessoas LGB. Exigimos que as identidades Trans deixem também de ser debatidas e definidas segundo a autoridade médica. Entendemos que nos deve ser garantido o acesso a tratamentos e cirurgias que desejemos sem necessidade de diagnósticos (que são aplicados com base em noções psiquiátricas ultrapassadas).
Estes são aplicados, inclusive, por parte de profissionais de saúde que tendem a projectar na prática clínica os seus próprios preconceitos e estereótipos sobre o que é ser homem ou mulher, reforçando o binarismo e o sexismo da nossa sociedade. Em consequência, não há espaço para a diversidade das nossas identidades, que podem ser não-binárias, nem para a diversidade das nossas expressões de género, que podem ser não normativas. Os nossos tratamentos e cirurgias são estratégias de sobrevivência numa sociedade que se rege por esse mesmo binarismo e sexismo.
A nossa sobrevivência material (tal como emocional e social) é desproporcionalmente precária face ao resto da população, pois ao não apresentarmos características socialmente associadas ao género com que nos identificamos, sofremos violências acrescidas - basta ver os números elevados de mortes anuais de pessoas trans, quer assassinadas quer levadas ao suicídio. Essa sobrevivência é dificultada pelo difícil acesso a emprego e por formas de violência explícita. O estigma social e cultural em torno das pessoas trans causa em nós traumas, ansiedade, isolamento, depressão. Isto torna-nos uma parte da população que é particularmente fragilizada, social e economicamente. O problema é a nossa diferença ser patologizada, ao invés de ser reconhecida e atendida nas suas necessidades específicas. Ser trans, pelo estigma e discriminação associados, é um factor acrescido de depressão, ansiedade, disfunção sexual, entre outros. Dadas essas condicionantes, deve ser garantido o acesso a tratamentos hormonais e cirurgias, se assim a pessoa o desejar. Existe extensa investigação que comprova que tais tratamentos, quase sem exceção, têm resultados positivos na saúde mental das pessoas trans.
O Estado tem a responsabilidade de nos garantir o direito à vida, e a uma vida digna. Adoptar as medidas acima expostas, terá resultados positivos no acesso a estes cuidados de saúde por parte de pessoas trans. A experiência trans é diversa e variável de pessoa para pessoa, e é importante reconhecer que nem sempre se quer simultaneamente terapia hormonal, cirurgia mamária e cirurgia genital. Urge atender a esta diversidade, e garantir estes serviços de saúde nos moldes que são os ideais a cada pessoa. As boas práticas aqui mencionadas não são compatíveis com os processos de diagnóstico que, actualmente, chegam até a desrespeitar as indicações da World Professional Organization for Transgender Health (WPATH), embora afirmem seguir as boas práticas ditadas por esta instituição. Lembramos também o caso das pessoas intersexo, que ainda são muitas vezes mutiladas à nascença e/ou durante a puberdade, sem ser tido em conta o seu consentimento e a sua integridade física. Estas mutilações são realizadas em menores de idade, sem sequer se saber qual a identidade de género que essa pessoa virá a ter no futuro, com os consequentes problemas físicos, mentais e sociais futuros que este atentado à integridade física das pessoas intersexo acarreta.
Exigimos, por isso, o fim das mutilações a pessoas intersexo. Aquelxs de entre nós que querem a alteração do nome e género legais e acesso a processos de transição hormonais e/ou cirúrgicos, não querem perder meses e anos de vidas para o atingir. Não queremos perder o nosso dinheiro e saúde mental a submeter-nos a exames abusivos e intrusivos que visam definir quem já sabemos que somos, e se temos, ou não, o direito de fazer o que precisamos com o nosso próprio corpo. Pelo exposto, reiteramos a necessidade de uma alteração da lei que consagre o direito à autodeterminação de género e à agência sobre os nossos corpos, com o consequente usufruto dos cuidados médicos, garantidos pelos SNS, que cada pessoa considerar necessários para o seu bem estar, providenciando-se assim uma cidadania plena às pessoas trans.
Aproveitamos também para realçar a necessidade urgente de soluções para o problema apresentado pela URGUS como, até recentemente, única entidade no SNS dedicada às cirurgias de confirmação sexual (há informações sobre terem sido iniciadas estas cirurgias também no Hospital de São João, no Porto, mas as informações sobre cumprimentos de prazos, quais as técnicas em uso e os níveis de satisfação face aos resultados são ainda escassas). Os utentes, que tendo já feito as avaliações ainda necessárias para as cirurgias, estão a ser forçados a realizarem novas consultas psiquiátricas já feitas anteriormente, exames endocrinológicos já feitos anteriormente, atrasando inaceitavelmente os processos. Apesar de já ter havido uma denúncia à Ordem dos Médicos, nada foi resolvido, e estes problemas persistem.
A informação prestada não é explícita no que toca às técnicas que são utilizadas (que tendem a ser ultrapassadas). Os prazos de marcações raramente são cumpridos, e são frequentemente adiados. Também não é explícita a informação prestada sobre os resultados das cirurgias (havendo inclusive relatos de casos com resultados muito insatisfatórios, resultando mesmo em deformações), o que provoca uma desconfiança nesta equipa cirúrgica. Posto isto, consideramos urgente que o SNS trate da formação de cirurgiões para a realização de cirurgias de confirmação sexual, que deverão ser gratuitas, atempadas e de qualidade. Estas cirurgias devem seguir as técnicas mais atualizadas a nível internacional, como as presentemente a serem executadas no Hospital de Jesus em Lisboa, garantindo resultados satisfatórios.
O SNS tem a responsabilidade também de tornar estas cirurgias acessíveis em diversos hospitais do país, descentralizando-as de Coimbra. Durante um processo de adaptação do SNS que o torne apto a cumprir as suas responsabilidades para com as pessoas trans que requerem estas cirurgias, o estado português deve garantir alternativas fora do SNS. Por exemplo, no citado Hospital de Jesus em Lisboa, ou mesmo no estrangeiro, desde que a qualidade das mesmas se mantenha ou seja superior. Imperiosa é também a descentralização de cirurgias mais usuais, como as mamoplastias e mastectomias, que não requerem uma equipa especializada em cuidados de saúde trans específicos e que podem ser realizadas em qualquer hospital principal do país. Esperamos assim chegar a uma diminuição efectiva e rápida das listas de espera.
Na sequência de todas as posições supramencionadas, exigimos a eliminação imediata do capítulo VII, artº 77 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos que proíbe as cirurgias para quem não está diagnosticado, bem como a alteração do nº1 do artº 80º do mesmo código, que pela sua formulação legaliza o uso de técnicas já ultrapassadas (almejamos com isto garantir a maior satisfação sexual possível no resultado das cirurgias de confirmação sexual, contribuindo para garantir o bem estar psico-social dos utentes). Seguem-se os dados dxs signatárixs individuais (foram utilizados os nomes verdadeiros e de uso social de cada signatárix, que nem em todos os casos correspondem aos nomes legais dxs mesmxs). Segue-se também a lista de coletivos e associações que apoiam o presente documento.