Cinema Novo de Eryk Rocha se colocou a difícil tarefa de trazer às telas de cinema contemporâneas a potência expressiva das imagens do que se convencionou chamar de Cinema Novo. E a primeira justiça que temos de lhe fazer é que conseguiu ter êxito nessa tarefa. E, no entanto, dizer isso não basta para a sua justiça. Só podemos ser fiéis a esse filme se formos capazes de compreender de onde vem essa potência estética.
Por Guilherme Preger
Ensaio poético e trabalho de arqueologia visual, segundo seu diretor, o filme é sobretudo uma seleção luminosa de imagens do movimento cinematográfico. Não há didatismo algum nas referências e quase nenhuma explicação narrativa que dê coesão a seu roteiro. Apenas "explodem" na tela as cenas exemplares de muitos filmes e entrevistas com alguns diretores, gravadas na mesma época em que realizavam suas produções. E essa foi, com certeza, uma boa decisão estética, pois acompanhamos a energia vibrante de diretores como Cacá Diegues, Glauber, Leon Hirzmann e Joaquim Pedro de Andrade trabalhando conceitualmente suas próprias imagens, mostrando que Cinema Novo foi muito mais do que produção de rolos de película. Foi também movimento de ideias, exatamente aquilo que o filósofo Gilles Deleuze denominou de imagem-pensamento.
No único trecho explicativo do filme, durante a cartela de abertura, o Cinema Novo é tratado como um movimento de diretores que com ideias na cabeça queriam trazer novas imagens do Brasil. Mas essas novas imagens não deveriam ser apenas a representação de um país que existiria na cabeça desses cineastas. A potência de suas imagens estava diretamente ligada a uma recusa da ideia de representação. Não era simplesmente uma ideia de trazer à superfície o "Brasil profundo", postura fatalmente idealista. Era mostrar que já na superfície havia profundidade.
As câmeras captavam as imagens reais do Brasil em sua constituição fragmentária e não sua tradução como um mapa integral da nação. Não era o Brasil em sua totalidade, mas o Brasil em sua diversidade que só podia ser captado através do "transe", lembrando o filme emblemático de Glauber. Como um movimento de imagens vibrantes. As câmeras não traziam assim uma representação de segunda mão, mas imagens que eram ainda mais verdadeiras do que as cenas que aconteciam fora do enquadramento, como conformadas ideologicamente. Assim, nas primeiras imagens de Cinema Novo, vemos uma série de cenas de personagens em corridas desabaladas e ofegantes. O que querem insinuar essas imagens? Que o país corria contra o atraso do subdesenvolvimentismo? Era exatamente contra essa ideia de atraso que se voltavam os diretores-intelectuais. As imagens de personagens correndo, na verdade, atestam a urgência do movimento. Não é como se a câmera corresse atrás de um suposto Brasil que lhe fugia, mas, ao contrário, são os próprios personagens, brasileiros, correndo em direção à câmera para alcançar afinal a sua verdadeira figura, como se fossem os portadores de um desejo por imagens intensamente prenhes de historicidade.
Uma insistente afirmação dos cineastas é que o Cinema Novo foi também uma revolução tecnológica, com a introdução de equipamentos mais leves e o uso direto do som e da luz. Assim, se produziu uma indeterminação de fronteiras, entre documentário e ficção. Da câmera passava-se diretamente para o tecido da realidade, como se o foco cinematográfico guiasse a visão para o olhar renovado. Ver o Brasil sem as falsas lentes colonizadas do subdesenvolvimento só se tornava possível após uma reeducação do olhar pelas lentes do Cinema Novo.
Como disse seu autor, Eryk, numa entrevista, sua intenção foi evitar realizar um retrato nostálgico do movimento, mas arrancar sua urgência e a mensagem que os filmes trazem ao Brasil contemporâneo. A coexistência do Cinema Novo com o golpe de 64 e com a ditadura militar se encontra subitamente em correlação com a posição do espectador contemporâneo e sua vivência confusa do Golpe de 2016. Como diz o diretor Glauber Rocha, numa das cenas em off, o golpe de 1964 de início visava, segundo as elites, construir um regime "liberal-fascista", mas depois descambou para o militarismo. Não há nessa fala a sugestão de uma sutil ligação entre os cenários de 1964 e 2016, como se situação atual fosse a realização tanto tempo reprimida pelas elites de perpetrarem um regime fascista sem os militares? Assim, da mesma forma como durante a ditadura militar era necessário mudar a relação do olhar com o país, atualmente também é necessário um olhar mais "arqueológico" para enxergar o que muitas vezes está dado na própria superfície, mas permanece obscuro à visão desatenta. O contraste entre a figuralidade profusa, diversa e vertiginosa do povo e o retrato audiovisual mistificador das grandes mídias esclerosadas não pode ser mais radical. O Cinema é Novo.
O único registro melancólico desse filme poético e intenso transparece com a avaliação dos cineastas de que o povo se mantinha alheio, entretanto, àquela revolução estética, pois os filmes não chegavam afinal às salas de cinema. Talvez o que faltou ao filme de Eryk foi fazer a relação díspar entre revolução estética cinenovista e a hegemonia do modo audiovisual televisivo que iria impor padrões sobre a percepção visual popular nesses últimos 50 anos. Como muitas revoluções de nossos tempos, também o Cinema Novo foi uma revolução não televisionada.
Foto: Cena de Cinema Novo / Foto: divulgação
Guilherme Preger, carioca, é engenheiro e escritor. É autor de Capoeiragem (7Letras/2003) e Extrema Lírica (Ed. Oito e Meio/2014), e um dos organizadores do coletivo literário Clube da Leitura no Rio de Janeiro, tendo participado como autor e editor das três coletâneas lançadas pelo grupo. Atualmente, é doutorando em Teoria Literária da UERJ, onde realiza pesquisa sobre a aproximação entre Literatura e Ciência. Escreve sobre cinema desde 1995, quando recebeu um prêmio de crítica literária do Grupo Estação e do Jornal do Brasil num ensaio sobre o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha.