A contrapressão iraniana sobre os EUA, por conta de um programa nuclear, afinal obrigou o governo Obama a iniciar negociações.
Agora que o acordo nuclear iraniano está completado, a atenção da mídia ocidental e dos comentaristas políticos está previsivelmente focada principalmente na oposição ao acordo dentro do Congresso dos EUA e em Israel e pela coalizão árabe sunita liderada pela Arábia Saudita.
Essas lentes 'midiáticas' estão passando sem ver pela real significação do Plano de Ação Ampla Conjunta [orig. Joint Comprehensive Plan of Action, JCPA] - que o Irã afinal conseguiu negociar, um acordo com os EUA que mantém seu direito nacional dos iranianos ao seu programa nuclear, no que pese a disparidade enorme entre os dois países, em matéria de poder militar. Essa disparidade de poder entre o hegemon global e uma "potência média" regional, militarmente fraca, mas politicamente influente, modelou não só as estratégias de negociação dos dois lados, durante os contatos de discussão, mas, e muito mais importante, o modo como aquelas estratégias foram concebidas, desde o início.
A imprensa-empresa adotou o discurso do governo Obama, segundo o qual as negociações foram resultado de o Irã ter de responder às sanções internacionais. Nada disso. O problema com esse discurso convencional está não só na evidência de que o Irã nunca negociou diretamente o fim das sanções, mas, também, que começou as negociações muito antes de que os EUA mostrassem qualquer interesse em negociar.
Na verdade, o Irã sempre concebeu seu programa nuclear, não só em termos de energia e avanço científico, mas também como meio para induzir os EUA a negociarem o fim de um sistema de sanções absolutamente sem precedentes, para o qual o Irã fora 'exilado' há muito tempo. Já durante o governo de Bill Clinton, estrategistas iranianos tentavam levar os EUA a moverem-se na direção de relações mais normais, mas Clinton estava decidido a ser o mais pró-Israel dos governos dos EUA em toda a história, e em vez de andar na direção de normalizar as relações, impôs um total embargo comercial contra o Irã.
Clinton até que chegou a oferecer um "diálogo" com o Irã, mas deixou claro que não tinha nenhuma intenção de levantar as sanções contra o país. A lição que os estrategistas iranianos, inclusive o então secretário do Supremo Conselho Nacional de Segurança e hoje presidente Hassan Rouhani, aprenderam dos anos Clintons foi que os EUA só negociariam o fim das sanções contra o Irã, se estivessem convencidos de que o custo e o risco de recusar-se a negociar seriam altos demais.
Foi durante o segundo governo Clinton que estrategistas iranianos começaram a discutir a ideia de que o programa nuclear do Irã era a principal esperança de conseguir pressionar a potência hegemônica.
O cientista político iraniano Jalil Roshandel, que trabalhou num projeto de pesquisa para o think-tank do Ministério de Relações Exteriores do Irã em 1997-1998, lembrou, em entrevista que me concedeu, que figuras influentes (inclusive um conselheiro do veterano ministro de Relações Exteriores do Irã, Ali Akbar Velayati) disseram-lhe naquele período que acreditavam que um programa de enriquecimento de urânio serviria como a alavanca que faltava, para pressionar na direção de se removerem as sanções.
O Irã usou o que o país assumiu que seria a preocupação de EUA e europeus sobre seu programa de enriquecimento de urânio - quando o país ainda não havia começado a enriquecer urânio - para alavancar-se nas negociações com governos britânicos, franceses e alemães desde novembro de 2003 à primavera de 2005. Mas aquelas negociações deram em nada, principalmente porque o governo Bush estava interessado em mudança de regime no Irã e, portanto, não deu importância a ideias de negociações reais sobre o programa nuclear local. O governo Bush ordenou aos aliados europeus que não respondessem a uma proposta dos iranianos, de março de 2005, que oferecia limitar a um mínimo o programa iraniano.
O problema foi que o governo Bush ainda não levava a sério o programa nuclear iraniano, o que implicava que a disparidade de poder entre Washington e Teerã era ainda grande demais.
E não foi só o governo Bush influenciado por neoconservadores que se achava tão poderoso a ponto de nem precisar negociar algum compromisso com o Irã. Sabe-se hoje que o presidente Barack Obama investiu em esforços para coagir o Irã, em vez de negociar, durante seus primeiros quatro anos de governo. Obama aprovou um plano para ciberataque sem precedentes contra as instalações iranianas de enriquecimento de Urânio em Natanz, em 2009, como primeiro movimento de uma estratégia para pressionar o Irã, com vistas a obrigar a República Islâmica a desistir de seu programa de enriquecimento.
Para o governo Obama, sanções financeiras intrusivas não foram concebidas originalmente como meio para chegar a acordo negociado com o Irã. De fato, Clinton apresentou publicamente a "via diplomática" com o Irã como um meio para "ganhar credibilidade e influência com certo número de nações que terão de participar para tornar o regime de sanções tão duro e incapacitante quanto nós queremos que ele seja. Em outras palavras, para Hillary Clinton, a diplomacia não passaria de ardil, para alcançar o real objetivo do governo, de coerção.
Em 2012, quando pela primeira vez ofereceu conversações ao Irã, sobre o programa nuclear, Obama continuava obcecado com a mesma estratégia de coerção. O esforço para levar o Irã à mesa de negociações foi 'acompanhado' por outro ciberataque pelos EUA contra o Irã - daquela vez contra a indústria de petróleo e gás do Irã.
Só em 2013, durante o segundo mandato, o governo Obama desistiu de tentar obrigar o Irã a pôr fim ao programa de enriquecimento de urânio e realmente aceitou negociar a questão nuclear. Mas essa decisão só aconteceu depois de o Irã ter aumentado o número de centrífugas para enriquecimento de urânio, para mais de 9 mil, com outra 9 mil centrífugas instaladas, mas jamais conectadas; de ter acumulado grande estoque de urânio baixo enriquecido e - muito mais alarmante para os EUA -, ter começado a enriquecer urânio a 20%.
Por tudo isso, vê-se afinal que a história por trás do acordo nuclear ensina que foi a contrapressão iraniana sobre os EUA - da qual o programa nuclear foi instrumento -, que afinal obrigou o governo Obama a mudar de estratégia: a deixar de investir na pura coerção bruta e a abrir negociações, que o Irã buscava há mais de 20 anos.
A história mais importante do próprio acordo, sobretudo, é como o governo Obama, apoiado pelos aliados europeus, fez tudo o que pôde para manter as sanções pelo maior tempo possível no processo de implementação. Mas no final, os negociadores dos EUA cederam, embora, como diplomatas iranianos disseram-me em Viena, eles entendessem em que "a ligação emocional" existente entre os norte-americanos e as sanções ainda se manifestasse nos últimos dias de negociação, no tipo de linguagem da Resolução para o Conselho de Segurança da ONU.
A básica desigualdade de poder entre os dois maiores protagonistas, que normalmente teria feito os EUA prevalecerem na decisão final das negociações, foi dramaticamente reduzida, por dois fatores: o fim das sanções era tão central para os interesses do Irã, que os negociadores com certeza teriam deixado as conversações, se os EUA não tivessem cedido; e o governo Obama foi forçado a completar a negociação até o acordo final, simplesmente porque o acordo com o Irã fora convertido em iniciativa central da política externa do presidente.
O acordo nuclear que o Irã obteve ilustra portanto a importância elementar da distribuição de poder, sim; mas também ilustra a possibilidade de um estado mais fraco militarmente fazer avançar seus interesses vitais em negociações com o poder hegemônico, contra o qual possa parecer não ter grandes chances, se se armar de paciência e coragem máximas, e mobilizar todo seu talento nacional e o mais detalhado e cuidadoso cálculo estratégico. *****
15/7/2015, Gareth Porter. Middle East Eye