Um passarinho pousou em minha sorte
Só queria entender como pode um ser amar tanto outro ser sem nunca o ter visto, ouvido, tocado, o sentido perto...
Já era noite. A casa vazia. A mesa ainda posta e uma saudade surda das coisas mal vividas que invadem a gente nessa hora de sombras e solidão. Passeava pela casa como que se buscasse todos que foram levados pelo tempo. Dentro de mim, mil sentimentos e o eterno desejo de quebrar as horas e sorver delas os momentos vividos na eternidade do pensamento.
Na janela, fitando o infinito, pensando na finitude de nossa vida tão besta, tão presa a essas coisas que ficam aqui por não terem herdado a eternidade. Longe, a noite se achegava devagarzinho, invadindo as ruas, as casas, as praças desse imenso país.
Enquanto buscava algo para comer, aplacar nossa insaciável fome de vida, pude ver, no meio de tantas bananas, uma parcialmente comida. Não pude compreender, pois as havia comprado no dia anterior, estavam todas ali, novas e intactas, sem que outro pudesse tocá-las. E o mistério só aumentava. A peguei e olhei atentamente de um lado, de outro, até que pude ver que ela na verdade trazia as marcas de bico de passarinho, como foram marcadas as frutas da minha infância e que me fizeram ver que o mundo é um imenso quintal. Até hoje fico por aí, brincando de pular de árvore em árvore, acreditando serem minhas naves espaciais. Assim, fico mais leve e ainda posso ser levado pelo pensamento para muito além daqui.
Ah, fui tocado por um sentimento que até hoje não sei ao certo o que é. Encabulado, fiquei a meditar como aquele passarinho chegou até ali, entrando e saindo por uma janela entreaberta e encontrando, nas prateleiras de um armário, aquela improvável banana. Viajei longe, longe, feliz com a visita que não vi, o anjo que não recebi. O dia terminava diferente. Coloquei a banana de volta no lugar e fui pensar nas coisas boas da vida. No outro dia à noite, a mesma surpresa para a banana bicada além da metade. Meu Deus, como eu quis ver aquele passarinho, saber onde ele morava, ouvir seu canto, ver sua beleza, saber se tinha filhos, onde era seu ninho...
Como queria ter visto aquele passarinho que de tanta liberdade já era meu. Coloquei a mesma banana, na janela, acreditando facilitar-lhe o trabalho. De volta, puder constatar a banana diminuída por novas bicadas. Ah, nem sei o que senti, deixando aquele menino, pequenino, de pés descalços se agigantar em mim e buscar, em apenas um, todos os passarinhos da longa história, todos os cantos do mundo. E dele nada, seu canto nenhum. O procurei debaixo das lembranças, nos cantos da casa, nas esquinas do mundo e nada de ver meu passarinho, que já era sonho, depois de realidade.
E novamente na janela a pequena banana que sobrara e outra, para sua visita mais longa. Noite em casa, mal abrindo a porta, e nada das bananas mexidas. Estavam lá, intactas, com a tristeza cinza que as coisas preservadas cultivam pela vida afora. Meu passarinho se perdeu de mim. Novo dia, outra banana. Nada. Por onde andava meu passarinho? Se esqueceu de mim? Não gostava mais de meu carinho? Será que foi vítima de um alçapão? Perdeu-se no caminho?
E o dia terminou triste, como nossas tardes sem primavera, tão pobres de cantos de passarinhos. Sei que até hoje, quando chego em casa, procuro por um sinal de sua presença, um pedaço de sua liberdade, um sopro de suas asas, tudo aquilo que dele não vi, não ouvi, não vivi.
Hoje, como o príncipe que repousou seu riso nas estrelas, toda vez que ouço canto de passarinho ecoando no ar, lembro-me do meu passarinho, que voou pelo céu do pensamento e veio fazer seu ninho em meu peito, no mais fundo...
Petrônio Souza Gonçalves é jornalista e escritor