A Amazônia e o patriotismo

A Amazônia e o patriotismo

Rodolfo Salm

26/11/2019


Acon­teceu na Uni­ver­si­dade Fe­deral do Pará em Al­ta­mira, de 17 a 19 de no­vembro, o en­contro "Amazônia Centro do Mundo", que reuniu ín­dios, ri­bei­ri­nhos, ci­en­tistas, es­tu­dantes e ati­vistas bra­si­leiros e in­ter­na­ci­o­nais, numa pre­pa­ração para a Con­fe­rência da ONU sobre as Mu­danças Cli­má­ticas (COP-25), que se re­a­li­zará em de­zembro, na Es­panha. Falou-se prin­ci­pal­mente em jus­tiça so­cial e meio am­bi­ente, mas as grandes ques­tões sub­ja­centes na ver­dade foram o na­ci­o­na­lismo e a so­be­rania na­ci­onal. Afinal, a questão cli­má­tica é, por de­fi­nição, um pro­blema global, em que a flo­resta amazô­nica de­sem­penha um papel fun­da­mental, seja quei­mando e emi­tindo car­bono ou mi­ti­gando o efeito es­tufa e re­gu­lando re­gimes de chuva. Por outro lado, sua pre­ser­vação con­traria in­te­resses de grupos econô­micos lo­cais que vivem de ati­vi­dades que pro­vocam a de­gra­dação da flo­resta.

Desde logo anun­ciava-se um grande evento, com a pre­sença con­fir­mada do ca­cique Raoni, in­di­cado para o Nobel da Paz por sua luta pela pre­ser­vação da Amazônia e pro­teção dos povos in­dí­genas, acom­pa­nhado por um grande nú­mero de ín­dios Kayapó; do ci­en­tista cli­má­tico Antônio Nobre, que de­fende a im­por­tância da flo­resta para a ma­nu­tenção do re­gime de chuvas na Amé­rica do Sul através dos cha­mados "rios vo­a­dores"; de Ma­noela Car­neiro da Cunha, pos­si­vel­mente a maior au­to­ri­dade em povos in­dí­genas no país; e da jor­na­lista Eliane Brum, quem me­lhor tem es­crito sobre o de­sastre de Belo Monte para a re­gião de Al­ta­mira e sobre ou­tras ques­tões im­por­tantes para a Amazônia, entre vá­rios ou­tros ex­po­entes da con­ser­vação.

O clima de tensão que do­minou o evento já se anun­ciou cerca de uma se­mana antes, através de ma­ni­fes­ta­ções do an­tro­pó­logo Edward Luz, que di­vulgou um áudio aos mo­ra­dores da re­gião de Al­ta­mira de­nun­ci­ando o en­contro como um "ataque contra o Brasil" pro­mo­vido por "ONGs in­ter­na­ci­o­nais, eco-xi­itas e ecos­so­ci­a­listas, co­man­dadas pelo Ins­ti­tuto So­ci­o­am­bi­ental, pagas e fi­nan­ci­adas pela Fun­dação Ford, Gre­en­peace, WWF, e ou­tras or­ga­ni­za­ções es­quer­distas".

Se­gundo ele, o ob­je­tivo do en­contro seria "impor de forma sor­ra­teira e po­li­ti­ca­mente cor­reta as su­postas so­lu­ções so­ci­o­am­bi­en­tais" que se­riam me­didas da "agenda eco-xiita e ecos­so­ci­a­lista contra o Brasil, contra o de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal". Clas­si­ficou essa agenda como a "pró­xima ba­talha pela so­be­rania da Amazônia": "Nós, pa­tri­otas bra­si­leiros..., po­demos im­pedir esse ataque que as ONGs pre­tendem pro­ferir contra o Brasil, se ti­vermos pre­sentes em força nu­mé­rica..., po­demos de­fender nossas pro­postas de de­sen­vol­vi­mento, e acabar assim aze­dando o caldo deles, co­lo­cando areia na fa­rinha de ta­pioca deles", pros­se­guiu, con­vo­cando a po­pu­la­ções para que somem forças no que chamou de "campo de ba­talha de­mo­crá­tico" pela de­fensa do "de­sen­vol­vi­mento, o pro­gresso e a so­be­rania na­ci­onal na Amazônia bra­si­leira". Con­cluindo, pediu a di­vul­gação de seu áudio, que clas­si­ficou como uma "con­vo­cação de guerra, de ba­talha".



O evento foi aberto em clima de tran­qui­li­dade na noite do do­mingo dia 17, com dis­cursos de Don Erwin, bispo emé­rito do Xingu, e do ca­cique Raoni, de­fen­dendo a pre­ser­vação da flo­resta, além de apre­sen­ta­ções de dança, po­esia, feira de ar­te­sa­nato e co­midas tí­picas. Mas logo na manhã do dia se­guinte ficou claro que a con­cla­mação de Edward Luz para o en­fren­ta­mento sur­tira efeito. A fila do cre­den­ci­a­mento es­tava do­mi­nada por pes­soas com o vi­sual country, de boné, ca­misa xa­drez, bota e calça com­prida, dentre eles al­guns ve­lhos co­nhe­cidos, an­tigos de­fen­sores da hi­dre­lé­trica de Belo Monte.

Edward ia ori­en­tando-os en­quanto se di­ri­giam à quadra po­li­es­por­tiva da UFPA: "sen­tamos à di­reita, como nos convém". As vá­rias ca­deiras foram sendo ocu­padas em clima de certa tensão, mas tran­qui­li­dade. E o evento não co­me­çava, apesar do ho­rário avan­çado. Logo per­cebi que fal­tavam os grandes pro­ta­go­nistas da festa, os ín­dios Kayapó, que são as es­trelas mai­ores de qual­quer evento em que par­ti­cipam, e, tal qual uma noiva em um ca­sa­mento, sempre chegam atra­sados, quando todos já estão pre­sentes, es­pe­rando. En­traram lin­da­mente, como é de cos­tume, em fila, or­na­men­tados com co­cares e pin­tados, can­tando suas mú­sicas tra­di­ci­o­nais, des­per­tando aplausos e vivas da pla­teia de es­tu­dantes, ri­bei­ri­nhos e am­bi­en­ta­listas, e abrindo de fato o en­contro.

Poucos ins­tantes de­pois a con­fusão que se temia co­meçou. Mal ter­mi­nado o canto in­dí­gena, mem­bros do grupo à di­reita co­me­çaram a exigir que se can­tasse o hino na­ci­onal. Edward Luz apro­ximou-se da mesa, já com­posta pelos pa­les­trantes, com o ca­cique Raoni ao centro e uma fila de ín­dios à sua frente, para exigir dos or­ga­ni­za­dores a en­to­ação do hino. Foi afas­tado por al­guns ín­dios da mesa, dando início a um em­purra-em­purra, com muita gri­taria, que lhe rendeu um puxão de ca­belo. Ali, pa­receu que ne­nhum diá­logo mi­ni­ma­mente ci­vi­li­zado seria pos­sível. Mas, acal­mados os ânimos, o hino acabou sendo can­tado por todos juntos, em re­la­tiva har­monia.

Quase todos dis­cursos inau­gu­rais foram in­ter­rom­pidos por gritos de vivas e por "Amazônia centro do mundo!" de um lado e "Amazônia centro do Brasil!" do outro. O grupo da di­reita acu­sava os or­ga­ni­za­dores de compor a mesa apenas com a "pa­ne­linha" de am­bi­en­ta­listas, sem re­pre­sen­tantes dos grandes pro­du­tores ru­rais, ma­dei­reiros e mi­ne­ra­dores (o que eu acho ab­so­lu­ta­mente ra­zoável pois não se tra­tava de um fórum de todos os se­tores so­ciais, mas de um en­contro para a dis­cussão de atores so­ci­o­am­bi­en­tais para dis­cutir so­lu­ções cli­má­ticas para a Amazônia). Acu­saram as ONGs de ma­ni­pu­la­doras a ser­viço de in­te­resses es­cusos in­ter­na­ci­o­nais. O nome de Em­ma­nuel Ma­cron, o pre­si­dente francês, foi es­pe­ci­al­mente ci­tado, pelas suas re­centes de­sa­venças com Bol­so­naro re­la­tivas à de­vas­tação da flo­resta.

De toda forma, no final das contas, fora um ou outro em­purrão, muita cara feia de ambos os lados e en­con­tros de peito es­tu­fado, tudo o mais correu com certa tran­qui­li­dade, sempre sob o olhar dis­tante de po­li­ciais que mo­ni­to­ravam o evento a fim de manter os ânimos con­tro­lados. Ainda assim, o blog Diário do Centro do Mundo anun­ciou que "Bol­so­na­ristas in­vadem en­contro e tentam agredir ca­cique Raoni no Pará", assim como o jornal Diário Causa Ope­rária: "Bol­so­na­ristas tentam agredir ca­cique Raoni; é pre­ciso re­agir". Para ser justo, não é ver­dade.

Não ten­taram agredir Raoni (ou não te­riam saído ilesos). Nem in­va­diram coisa ne­nhuma. Os ru­ra­listas en­traram pa­ci­en­te­mente na fila e se ca­das­traram como todo mundo. O que eles re­al­mente ten­taram, e de fato con­se­guiram, foi atingir os ob­je­tivos ini­ciais de Edward Luz: "azedar o caldo" ou "jogar areia na ta­pioca". Fi­zeram com que a elite econô­mica da re­gião, que são de­fi­ni­ti­va­mente os "vi­lões da de­gra­dação am­bi­ental" pas­sasse, pelo menos di­ante de boa parte da im­prensa local e con­se­quen­te­mente de boa parte da po­pu­lação de modo geral, por ví­tima (pa­trió­tica) de um su­posto au­to­ri­ta­rismo das ONGs ma­ni­pu­la­doras de in­gê­nuos a ser­viço de in­te­resses in­ter­na­ci­o­nais.



Em um se­gundo mo­mento, ainda no dia 18, di­vi­dimo-nos em seis grupos de tra­balho (GTs) para dis­cutir as­suntos es­pe­cí­ficos: (1) "Falsas So­lu­ções que Ame­açam a Flo­resta"; (2) "En­vol­vi­mento Para Amazônia do Fu­turo"; (3) "Re­sis­tência das Mu­lheres na Amazônia"; (4) "Ju­ven­tudes e Novos Mo­vi­mentos Glo­bais"; (5) "Edu­cação Para En­frentar o De­sen­vol­vi­mento Pre­da­tório"; e (6) "Povos das Flo­restas e das Águas". Esse úl­timo teve Ma­nuela Car­neiro da Cunha como fa­ci­li­ta­dora e tive a fe­li­ci­dade de par­ti­cipar dele.

De­pois de ouvir o de­poi­mento de vá­rios in­dí­genas e ri­bei­ri­nhos sobre seus pro­blemas e afli­ções, Ma­nuela buscou trazer uma visão his­tó­rica do que está acon­te­cendo hoje no Brasil. Do so­fri­mento his­tó­rico de povos in­dí­genas, qui­lom­bolas, ri­bei­ri­nhos e de como o go­verno atual ex­pli­ci­ta­mente se co­locou contra os povos in­dí­genas quando o atual pre­si­dente, ainda can­di­dato, de­clarou que não de­mar­caria mais um cen­tí­metro de terras in­dí­genas. Edward Luz também par­ti­cipou deste grupo, e disse que os grandes pro­pri­e­tá­rios de terra também con­tri­bui­riam muito para a pre­ser­vação da flo­resta, tanto quanto os in­dí­genas e os ri­bei­ri­nhos, pois nossa le­gis­lação am­bi­ental é uma das mais rí­gidas do mundo, exi­gindo 80% de áreas pro­te­gidas nas fa­zendas.

A afir­mação é to­tal­mente fa­la­ciosa, como ime­di­a­ta­mente ob­servou outro par­ti­ci­pante do GT. Não é porque a lei de­ter­mina a pre­ser­vação pelos grandes pro­pri­e­tá­rios ru­rais que ela é cum­prida. De uma ponta a outra da Tran­sa­mazô­nica o que se vê é um ce­nário de de­vas­tação quase que com­pleta e a lei é sis­te­ma­ti­ca­mente ig­no­rada. Edward Luz ainda atacou no­va­mente as ONGs e a cri­ação do "Ter­ri­tório Ri­bei­rinho", área des­ti­nada à pre­ser­vação de seu modo de vida tra­di­ci­onal, à beira do re­ser­va­tório de Belo Monte, no Xingu, re­cen­te­mente apro­vado pelo IBAMA. Se­gundo ele, este pro­jeto teria ca­ráter "so­ci­a­lista" e con­de­naria seus ocu­pantes ao atraso.

É na­tural que as ONGs te­nham fi­nan­ci­a­mento in­ter­na­ci­onal. Quem fi­nan­ci­aria um evento como esse, que tem custos de in­fra­es­tru­tura, trans­porte, se­gu­rança, ali­men­tação? O go­verno bra­si­leiro? Já tra­ba­lhei em con­tato com muitas delas. Ne­nhuma opera sob pres­su­postos so­ci­a­listas ou coisa pa­re­cida. São todas ab­so­lu­ta­mente ca­pi­ta­listas, na busca de al­ter­na­tivas econô­micas, mas que não es­gotem ime­di­a­ta­mente os re­cursos na­tu­rais do pla­neta, que se re­vela cres­cen­te­mente vul­ne­rável. Quanto ao Ter­ri­tório Ri­bei­rinho, a pre­ser­vação da ve­ge­tação na­tiva na beira dos rios, como de­ter­mina a le­gis­lação, também não con­dena nin­guém ao atraso.

Muito pelo con­trário. Es­pé­cies na­tivas com o cacau e o açaí podem ser am­pla­mente cul­ti­vadas nessas áreas e atingem os me­lhores preços nos mer­cados local e in­ter­na­ci­onal. Aliás, o es­ta­be­le­ci­mento de áreas de uso comum em um ter­ri­tório de forma al­guma cons­titui uma ex­pe­ri­ência so­ci­a­lista sim­ples­mente por pres­supor um mí­nimo de co­o­pe­ração e so­li­da­ri­e­dade, ca­rac­te­rís­ticas tí­picas das co­mu­ni­dades tra­di­ci­o­nais.

De­fi­ni­ti­va­mente, não havia nada de es­sen­ci­al­mente es­quer­dista ou an­ti­ca­pi­ta­lista no en­contro, como es­bra­ve­javam seus crí­ticos. Um de seus pontos altos, por exemplo, foi quando o ci­en­tista Antônio Nobre des­tacou como a pre­sença da flo­resta pre­ser­vada em uma terra in­dí­gena nas pro­xi­mi­dades de um mu­ni­cípio no Mato Grosso au­men­tava sua taxa plu­vi­o­mé­trica. Essa chuva extra per­mite uma se­gunda co­lheita de soja, o que rende ao mu­ni­cípio tantos mi­lhões de dó­lares de re­ceita extra anual. As dis­cus­sões, de modo geral, tra­taram sim­ples­mente da busca de ca­mi­nhos para um ca­pi­ta­lismo menos pre­da­tório, menos in­va­sivo, menos des­tru­tivo e as­sas­sino, como o que se vê atu­al­mente por toda a Amazônia.

Fran­ca­mente, que na­ci­o­na­lismo é esse que se veste de verde ama­relo, canta o hino na­ci­onal, mas de­fende um pro­jeto como o da mi­ne­ração de ouro pela em­presa ca­na­dense Belo Sun? Mi­ne­ra­dora que pre­tende mandar to­ne­ladas do metal nobre para ex­te­rior e aban­donar no Xingu uma gi­gan­tesca mon­tanha eterna de re­jeito ex­tre­ma­mente tó­xico que cedo ou tarde vai vazar, des­truindo que resta do nosso rio? Que na­ci­o­na­lismo é esse que de­fende in­vasão da Amazônia pela cul­tura ca­na­vi­eira, como re­cen­te­mente apro­vado pelo go­verno de Bol­so­naro? A li­be­ração de cen­tenas de agro­tó­xicos pe­ri­go­sís­simos proi­bidos em vá­rios lu­gares do mundo ci­vi­li­zado? Que busca a apro­vação da pro­dução de soja e ou­tras cul­turas de grande es­cala em terras in­dí­genas, des­truindo ele­mentos fun­da­men­tais da rede de áreas de pro­teção am­bi­ental do país? Quando o pre­si­dente da Re­pú­blica lava as mãos para o pro­blema das quei­madas, re­du­zindo-as a uma questão sem so­lução ("Bol­so­naro diz que des­ma­ta­mento é cul­tural no Brasil e não aca­bará"), como cantar o hino junto da­queles que de­fendem a des­truição de tudo aquilo de mais pre­cioso que as­so­ci­amos à nossa pá­tria amada? É muito di­fícil. Assim como é di­fícil voltar a usar a ca­misa da se­leção de­pois de seu uso po­lí­tico pelos "co­xi­nhas".

Mas de al­guma forma pre­ci­samos re­cu­perar esses sím­bolos na­ci­o­nais cap­tu­rados pela di­reita. Para mim está claro que os ver­da­deiros pa­tri­otas são jus­ta­mente os que menos se en­volvem em ban­deiras ou es­tufam o peito para falar em cantar o hino, mas se emo­ci­onam com os cantos e co­cares dos Kayapó e se sentem re­pre­sen­tados pela fi­gura im­po­nente do ca­cique Raoni.

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Pravda.Ru Jornal