No Oriente Médio, saem os EUA e entra a Rússia
por Antonio Luiz M. C. Costa - publicado 25/12/2017 00h13, última modificação 20/12/2017 16h52
O abandono pelos EUA do papel de mediador abre espaço para a Rússia - e talvez para a UE
Não há mistério por trás das razões da Casa Branca. Foi uma promessa de campanha para agradar a dois setores importantes para a eleição: o lobby sionista, com poucos votos diretos, mas financeiramente importante, e o evangélico, decisivo em termos eleitorais. Para os fundamentalistas evangélicos, reconhecer Jerusalém como capital de Israel é um passo para realizar as profecias bíblicas.
O Terceiro Templo será erguido sobre as ruínas do Domo da Rocha e da mesquita de Al-Aqsa, o Messias se revelará aos judeus como Jesus, Israel se converterá ao cristianismo e os justos serão arrebatados para um céu onde poderão se divertir assistindo à chuva de horrores que cairá sobre os descrentes. A expectativa dos fundamentalistas judeus é similar, exceto por acreditarem que o Messias revelará Jesus como uma fraude e fará o mundo aceitar Israel como o povo escolhido e adorar ao seu Deus.
Essa ligeira divergência não impede a aliança objetiva das duas forças para respaldar tanto Benjamin Netanyahu, que talvez acredite na versão judaica da profecia, quanto Donald Trump, que com certeza não crê em nenhuma delas, mas não é capaz de resistir à tentação de ser adulado como o Salvador ou seu precursor por uns e outros.
Trump ter anunciado a decisão sobre Jerusalém ante uma exagerada decoração de Natal na Casa Branca foi uma piscada de olho ao fiel eleitorado evangélico, para o qual até a tendência dos discursos institucionais a trocar o Merry Christmas (Feliz Natal) por Happy Holidays (Boas Festas), para evitar excluir os não cristãos, é uma rendição ao liberalismo e à ameaça islâmica na guerra cultural.
O caso também não caiu mal aos neofascistas. Hoje veem no nacionalismo étnico, excludente e segregacionista do atual Israel um modelo para os EUA e, na medida em que retêm o ranço antissemita, seus interesses convergem com os do governo Netanyahu, para o qual seria ótimo se os judeus estadunidenses se sentissem ameaçados a ponto de migrar para a Terra Santa.
A lógica da equipe de Trump é manter a fidelidade dos setores que o elegeram em 2016 e ignorar o resto do país e do mundo, pois isso seria suficiente para sua reeleição. O ponto fraco dessa estratégia foi demonstrado na eleição da terça-feira 12 no Alabama. Roy Moore, candidato republicano ao Senado - ultraconservador, racista e machista, além de acusado de assédio sexual a meninas de 14 a 16 anos - recebeu apoio total do presidente Trump e de seu guru Steve Bannon, pois sua eleição era crítica para a maioria no Senado. Teve o voto de 72% dos eleitores brancos e 63% das brancas - e mesmo assim perdeu, contrariando as pesquisas.
A razão é que os negros foram às urnas numa proporção muito maior do que a esperada e viraram o jogo. Nada menos de 93% dos homens negros e 98% das mulheres negras votaram no democrata Doug Jones, ex-procurador conhecido por processar terroristas do Ku Klux Klan que mataram quatro meninas negras e feriram 22 ao atacar uma igreja negra em 1963 e um fanático evangélico cujo atentado a uma clínica de aborto deixou dois mortos e 111 feridos em 1996.
O exagero no reacionarismo mobilizou as minorias a ponto de derrotar os republicanos até em um dos estados mais conservadores da União, onde nenhum democrata era eleito para o Senado desde 1990. Se Trump e seu partido não mudarem o discurso, a eleição de novembro de 2018 poderá virar o Congresso do avesso. Entretanto, a decisão sobre Jerusalém pouco contribuirá para tal reviravolta, pois poucos estadunidenses além dos fundamentalistas se importam com isso.
O espaço dado na mídia dos EUA aos protestos árabes e críticas europeias foi insignificante se comparado com a eleição do Alabama, as acusações de assédio sexual ao presidente ou às investigações sobre os entendimentos da equipe de Trump com o Kremlin antes da posse. Mesmo se os famosos contatos do ex-assessor de Segurança Nacional, Michael Flynn com o embaixador russo, sobre os quais confessou ter mentido ao FBI, visaram evitar uma condenação de Israel na ONU.
Netanyahu desafiara Barack Obama ao autorizar a expansão de colônias judaicas na Cisjordânia ocupada. O ainda presidente reagiu ordenando a abstenção dos EUA na resolução do Conselho de Segurança que condenaria a ação, contrariando décadas de apoio incondicional a Tel-Aviv. Foi para tentar adiar esse voto para após a posse de Trump que o primeiro-genro Jared Kushner, apoiador notório dos colonos judeus, quis persuadir a Rússia. Deveria bastar para recordar à mídia dos EUA que a política externa não é um detalhe.
Ao demonstrar parcialidade de forma tão explícita, Washington perdeu a confiança dos povos muçulmanos - o que mais cedo ou mais tarde terá consequências para a sua hegemonia estratégica e financeira e para sua própria economia - e o mesmo acontecerá aos governos da Arábia Saudita, Emirados, Jordânia e Egito se explicitarem a reaproximação com Tel-Aviv.
Netanyahu pode ganhar prestígio interno, mas as chances de paz foram enterradas e o futuro de Israel tornou-se duvidoso. Não é preciso recear sua destruição em uma guerra de grandes proporções: basta a evolução demográfica da população palestina dentro do Estado judeu, se este não lhe conceder a independência real com um território viável.
Os EUA abandonaram o papel de suposto mediador neutro e será difícil recuperá-lo, mesmo se a eleição de 2018 surpreender a ponto de viabilizar um impeachment. O vice, Mike Pence, eventual substituto de Trump, posou a seu lado no anúncio da decisão e a resposta árabe foi clara. Ele teve de adiar a visita a Israel e ao Egito programada para domingo 17. Não só o governo de Mahmoud Abbas cancelou todos os encontros, como também as autoridades cristãs da Palestina e do Egito, inclusive o papa da Igreja Copta, Tawadros II.
Como a China tem pouca influência no Oriente Médio, restam duas forças em tese capazes de aspirar ao lugar vago: a Rússia e a União Europeia. Mas só a primeira parece ter poder militar, visão estratégica e coesão política suficientes para bancar essa função e Putin não perdeu tempo. Na segunda-feira 11, cinco dias após a decisão da Casa Branca, aproveitou a coincidência com o colapso do Estado Islâmico, obtido graças ao seu apoio militar a Bashar al-Assad, para uma triunfal viagem relâmpago à Síria, Egito e Turquia.
Reafirmou o patrocínio ao ditador sírio, formalizou com o Cairo um acordo para construir a primeira usina nuclear do país e usar suas bases aéreas (a partir das quais quer intervir também na Líbia e recuperar a influência perdida quando a Otan derrubou Muammar Kaddafi) e não se esqueceu de passar pela cúpula de emergência em Istambul da Organização da Cooperação Islâmica, convocada pelo ex-inimigo e hoje quase aliado Recep Tayyip Erdogan para discutir Jerusalém.
Com a presença de 45 países muçulmanos, 22 dos quais representados por seus chefes de Estado - inclusive os presidentes da Palestina, Irã e Bangladesh e o rei da Jordânia -, a cúpula condenou o ato de Trump e o retaliou reconhecendo Jerusalém Oriental como capital da Palestina. Até mesmo a Arábia Saudita e o Egito tiveram de apoiar formalmente a resolução encaminhada pelo rival Erdogan e o rei Salman precisou confirmar publicamente a promessa a Abbas de não aceitar um acordo de paz sem uma Palestina independente com capital em Jerusalém Oriental.
Enquanto isso, o ministro da Inteligência israelense, Yisrael Katz, declaradamente contrário à existência de um Estado Palestino, mostrava-se tão obtuso quanto Trump: saudou o príncipe herdeiro Bin Salman como "líder do mundo árabe" e convidou-o a visitar Israel e "patrocinar o processo de paz", como se não soubesse que aceitar o convite equivaleria a assumir o papel de traidor ante os próprios súditos, para não falar do restante do mundo muçulmano.
Netanyahu não foi muito mais sagaz. Garantiu a seu povo que muitos outros países seguiriam os passos dos EUA e foi à sede da União Europeia em Bruxelas, pela primeira vez para um primeiro-ministro israelense. Com uma empáfia rara em eventos diplomáticos em público, acusou os europeus de hipocrisia. Para ele, "é hora de os palestinos reconhecerem o Estado judeu e que tem uma capital: ela se chama Jerusalém. Reconhecer a realidade é a fundação da paz. Há uma nova proposta dos EUA e acho que devemos dar à paz uma chance".
A chanceler europeia Federica Mogherini respondeu à altura: garantiu que continuará a defender a solução de dois Estados e a partilha de Jerusalém e receberá o presidente da Palestina - expressão literal, para enfatizar o reconhecimento implícito do Estado rival - em janeiro. Netanyahu que tente em outra freguesia, porque "do lado dos membros da União Europeia, esse reconhecimento não virá". De fato, a UE conseguiu demonstrar unidade: apesar de um esperneio do presidente tcheco Milos Zeman, nem sequer os governos mais simpáticos a Trump, como Tchéquia, Hungria, Polônia e Lituânia, ousaram imitá-lo.
O problema é que Mogherini apenas repete que não arredará pé da letra dos acordos de Oslo de 1993, mas estes - paralisados na prática desde o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995 - acabam de ser reduzidos a pó pelos mesmos EUA que os patrocinaram. Consenso sobre não mudar de posição é mais fácil do que sobre ousar uma nova iniciativa e patrociná-la com o peso econômico e militar necessários. Sem isso, os europeus podem até ganhar a simpatia de alguns governos árabes e contratos antes abocanhados por Washington, mas as decisões sobre o futuro do Oriente Médio não passarão por Bruxelas e sim por Moscou, Ancara e Teerã.
Foto: By Muhammad Mahdi Karim; edited by jjron - Own work, GFDL 1.2, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=3563328
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