"De tanto que mantiveram Putin à distância, em favor da aliança turco-saudita, os ocidentais o obrigaram a intervir; assim repuseram a Rússia - bem ao contrário dos desejos deles - novamente, no coração do Oriente Médio."
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Os 'mal-entendidos' aéreos e os discursos diplomáticos de intimidação fizeram subir as tensões entre a Turquia e a Rússia nos últimos dias. O que escalou deveria desescalar rapidamente, mas há interesse em fixar uma certa relação de forças. No século 19, o império russo intervinha para proteger as minorias orientais perseguidas pelos otomanos. Essa nobre missão lhe dava uma boa razão para prolongar seu clima de influência. 150 anos adiante, a história parece repetir-se.
Tanto Israel tenta chegar a um acordo com o Kremlin, para que seus aviões continuem a intervir no céu do sul da Síria, quanto a Turquia recusa qualquer coordenação com a Rússia no norte. A diplomacia turca gesticula e invoca a violação de seu espaço aéreo, mas o problema está noutro campo. Precisamente do outro lado da fronteira. Esse verão, o regime turco anunciou sua intenção de criar uma zona aérea de exclusão. Uma grande zona tampão ao norte da Síria, com dois objetivos principais: fixar os refugiados sírios, mas, sobretudo, atacar os curdos. O objetivo final sempre foi derrubar o presidente Bachar el-Assad seguindo o modelo usado na Líbia, para ali implantar um regime irmão, islamista.
Infelizmente para ela, a Turquia está obrigada a constatar que, em face da aviação russa, esses objetivos absolutamente não são alcançáveis. Passados quatro anos de tentativas, o repentino recuo forçado de sua política para a vizinhança sul imediata enlouquece de fúria o megalomaníaco Recep Tayyip Erdogan. Assim também, a guerra civil que Erdogan contribuiu para alimentar na Síria reacendeu o irredentismo curdo e quebrou a própria coalizão eleitoral de Erdogan e seu sonho, de restauração otomana, virou poeira.
Os ataques russos são despertar muito desagradável para os turcos, por várias razões. Vista de Damasco e de Moscou, a Turquia tem razão de defender a soberania de seu espaço aéreo; mas, ao mesmo tempo, não pode violar o espaço dos vizinhos. E é revelador que a Turquia tenha hoje de defender o próprio espaço aéreo. Ontem na ofensiva na Síria, hoje já está na defensiva, e a aviação russa morde até dentro do território sírio. Estão definitivamente enterradas as ambições turcas de estabelecer um protetorado turco na Síria; Ancara terá de voltar às suas torpezas internas.
Além do mais, os caças russos não combatem pelas mesmas regras de engajamento que a coalizão ocidental - teoricamente, pelo menos, dedicada a não atingir civis, apesar do escandaloso contraexemplo do hospital dos Médicos Sem Fronteiras em Kunduz. Se se exclui o exército curdo sírio, é a primeira vez que ataques aéreos tão numerosos e tão potentes acontecem coordenados com soldados em solo capazes de ocupar o terreno na trilha dos bombardeios. E a opinião russa não pedirá contas aos seus pilotos e soldados, logo ao primeiro erro, não importam quais e quantos sejam os danos colaterais.
De tanto que mantiveram Putin à distância, em favor da aliança turco-saudita, os ocidentais o obrigaram a intervir e repuseram a Rússia - bem ao contrário dos próprios desejos - novamente, no coração do Oriente Médio.
Significa que "o exército da conquista", a aliança jihadista mantida pela Turquia que novamente agrupa a al-Qaeda e os tais "rebeldes moderados" que o ministro Laurent Fabius tanto aprecia, recebeu duro golpe, suficiente para detê-la, sob o dilúvio de bombas russas. A tal aliança jihadista terá de enfrentar na sequência uma ofensiva terrestre do exército sírio. Os amigos da Turquia não podem limitar-se a baixar a cabeça à espera de que os aviões se distanciem: se quiserem ainda defender suas posições, terão de aparecer em campo aberto.
Consequência, o exército sírio que dava graves sinais de fraqueza está recomposto. A ofensiva aérea dos russos pode permitir que Bachar el-Assad e seus aliados (Iraque e Irã) reestabeleçam progressivamente o corredor até Alepo, blindem Damasco e o eixo que vai na direção de Homs e Hama e depois, sem dúvida, retomem Palmira.
Em resumo, com a entrada em cena da Rússia, toda a estratégia turca, mas também toda a estratégia ocidental desabam: que Bachar al-Assad permanecerá no governo deixou de ser uma improbabilidade e passa a ser fato que todos terão de levar em conta ainda por muitos anos. De tanto que mantiveram Putin à distância, em favor da aliança turco-saudita, os ocidentais o obrigaram a intervir; assim repuseram a Rússia - bem ao contrário dos desejos deles - novamente, no coração do Oriente Médio. *****
6/10/2015, Hadrien Desuin,[1] Le Figaro
[1] Hadrien Desuin, graduado na Escola Militar Especial de St-Cyr, depois na Escola dos Oficiais da Guarda Nacional; pós-graduado em relações internacionais e estratégia, com especialização em estudos sobre os Cristãos Orientais, suas diásporas e a geopolítica do Egito, título obtido no Centre d'Études et de Documentation Économique Juridique et Social (CNRS/MAE), no Cairo, em 2005. Dirigiu a página "Les Conversations françaises" de 2010 a 2012. Atualmente, é colaborador de "Causeur et Conflits", onde acompanha a atualidade da diplomacia francesa no mundo.