Cinco cubanos são recebidos por Fidel Castro em Cuba.
Adital
Por Carlos Aznárez
(De Havana)
Resumen Latinoamericano
Condecorados oficialmente como Heróis da República de Cuba, amados até o indescritível por seu povo, que brigou por sua libertação dia a dia, Gerardo Hernández, Ramón Labañino, Antonio Guerrero, René González e Fernando González, se converteram em um pilar da ética revolucionária. São como Fidel, como Raúl e como Che, desses difíceis tempos que correm.
Poucas horas antes de que o comandante chefe Fidel Castro se reunisse com eles, o Resumen Latinoamericano [Resumo Latino-Americano] teve a honra de compartilhar com os cinco várias trocas fraternais, aprender sobre sua sabedoria e sua sobriedade. Isso é o que agora oferecemos aos nossos leitores, para que vocês também tenham uma dimensão do que falamos quando dizemos: Fidel não voltou a se equivocar ao considerá-los desde o primeiro dia como heróis de Cuba e do continente.
Antonio Guerrero: A poesia é uma arma carregada de futuro
A primeira coisa que me deu força foi a minha inocência. No dia em que me prenderam eu estava em um dos arquipélagos da Flórida. Montaram uma operação, arrombaram a porta às 6h da manhã, eu estava com a minha companheira e, quando me prenderam, nem sequer fiquei nervoso, já que estava convencido de que não havia feito nada mau. Quando me colocaram em um carro, um deles começou a me pressionar, mas eu respondi com muita tranquilidade e, finalmente, me levaram ao quartel general do FBI. No segundo dia, colocaram nós cinco em uma área na qual o objetivo era nos acalmar e que reconhecêssemos algo que era falso, mas não afrouxamos e, sinceramente, eu seguia me conservando tranquilo. Tanto que, nesse momento, que de fora poderia parecer muito duro, veio à minha mente um poema que, certamente, não podia escrevê-lo, ainda que sim, pude fazer isso dias depois. A partir de então, a poesia se constituiu em outra arma de resistência.
Recordemos que eu estava 24 horas preso em uma cela sem nenhum contato com o exterior, e a poesia era minha companheira. Ajudava a me comunicar com os que recebiam meus poemas, contando-lhes a minha vida e o que era eu nesse momento.
Isso serviu também para vocês se comunicarem?
Sim, nos ajudou muito. Foi uma arma vital para os cinco no "vazio”. Trocamos poemas para ler o que escreviam meus outros irmãos. Por isso me motivei a escrever um poema a cada dia desses 17 meses, coisa que não era fácil, já que não tinha o conhecimento da poesia, mas assim é o ser humano, que, às vezes, no isolamento mais rígido, sai a reluzir essas qualidades.
Houve outros recursos para aguentar esses momentos?
Claro, o primeiro deles era pensar em que o que havíamos feito era não apenas por Cuba, mas por qualquer cidadão do mundo. Uma bomba em um avião ou em um centro turístico era um flagelo do terrorismo que já havíamos vivido em Cuba.
Outro recurso era moral, e significava pensar na história de Cuba: a imagem de José Martí, de Che e de Mandela, eram fonte de constante inspiração, não só pela poesia, mas por suas vidas de lutadores. Quando me prenderam, eu tinha 39 anos e, nesse momento me dei conta do importante que era ter dignidade, conservar o otimismo, e nos referenciar em outros homens e mulheres que haviam feito coisas muito transcendentes, de muito mais valor do que o que nós estávamos atravessando. Essa era uma arma que nos possibilitava que ninguém pudesse nos derrotar, já o que nos restava era transpirar otimismo, ter confiança em que nunca iríamos estar abandonados e que muita gente estava do nosso lado.
O interessante é que todos vocês pensavam em igual sintonia sem poder ter nenhum tipo de contato.
Essa foi outra ferramenta vital: a unidade de princípios dos 5, a irmandade, saber que o outro companheiro iria estar firme contigo, passasse o que passasse. Por outro lado, é preciso reconhecer que no grupo dos capturados, houve algumas deserções, mas nem nesse momento nos puderam causar dano, porque a moral para nos defender era tão grande que não puderam nos dobrar nem com falsas declarações. Nós ganhamos esse julgamento farsa que nos fizeram, e os próprios fiscais sofreram com as piadas de seus colegas, por causa do papel que estavam fazendo. Eles evitaram tirar o julgamento de Miami, porque sabiam que só ali podiam controlar o show que montaram.
Três de nós, os que pegaram prisão perpétua, fomos parar nas piores prisões dos EUA. E, então, apesar de que conservasse o otimismo, também me dei conta de que podia morrer nessas prisões, mas não deixei de escrever, sobretudo quando estava sem poder sair da cela. E, quando esta se abria, tratando de fugir das cenas típicas do pátio, e dos conflitos e discussões que se vivem em lugares como esses, me refugiei, milagrosamente, em um local onde havia gente que desenhava e pintava. Então, um afroamericano, que se converteu em meu amigo, me ofereceu para fazer um retrato. Ali começou a atuar outra arma, que foi a criação plástica. E fiz retratos, logo trabalhos em pastel e fui crescendo autodidatamente. Tudo o que fizemos era para resistir e não imaginávamos que depois os companheiros da solidariedade iriam transformá-lo em livros, em música ou em exposições.
Como te dizia, todas essas eram as nossas armas dessa etapa, enfrentamos o combate com tremendo otimismo e também com esse conceito de felicidade, de que vai pelo caminho certo e se sentindo em harmonia consigo mesmo.
Tudo isso que conto já faz parte de um passado, agora estamos aqui, vivendo a realidade de Cuba.
Como se dá esta nova vida, como você encontrou Cuba?
Estamos dispostos, com esses mesmos exemplos, com essas mesmas armas à tarefa que venha daqui por diante. Encontrei Cuba com as mudanças lógicas, mas em sua essência muito parecida com a que deixei. Vejo coisas positivas e outras não tanto, mas é o mesmo povo, com suas alegrias e sua maneira de ser, disposto a defender a Revolução ao preço que seja necessário. Em definitivo, nós 5 somos isso, filhos da Revolução, que tiveram viver uma experiência determinada, e o povo assim nos vê, como um revolucionário a mais.
Por outro lado, continua o bloqueio, continua a intenção de que Cuba não se desenvolva, a mesma política aquela, velha, continua de outras maneiras, para destruir a Revolução. Isso é o que quiseram fazer conosco, para nos castigar. No entanto, a Revolução está aí, vitória após vitória, com Fidel e com o comando de Raúl.
René González: "A vitória é sair melhor do que quando entramos”
Resumen Latinoamericano com quatro dos Cinco.
A prisão é um processo de aprendizagem. Provavelmente, tudo começou por estabelecer-se uma meta, e ali os 5 coincidimos: o objetivo era sair melhor do que quando entramos na prisão. Você percebe em seguida que eles querem te destruir, que tua integridade física, moral, mental, são o alvo dos carcereiros. Aprendes no primeiro dia que tem que defender isso e que à medida da vitória estará em sair em melhor forma do que quando te colocaram na prisão. A partir daí, cada qual, segundo suas características, adota sua própria estratégia.
Recordo que, para mim, o más difícil a princípio, foi perceber que eu não podia reagir como eles desejavam. Não me tomou muito tempo, e lembro de um ponto de inflexão, que foram os 15 anos da minha filha, em que eu havia guardado para esse momento a ligação semanal que nos concediam quando estávamos no isolamento, e eles tramaram para me negar. Nessa noite, sofri, mas no outro dia, quando acordei, já era outro homem. Disse para mim mesmo que eu não poderia sofrer com as atitudes deles. E isso disse à minha esposa quando pude me comunicar, que a partir desse momento se podia ligar para ela, bem, e se não, também. Inclusive disse que "aqui mando eu”, que os processos que se produzem na minha cabeça tenho que controlar eu, e que eles podiam fazer daqui para fora. Isso se baseou em saber que você tem a moral muito forte, e que eles jamais a alcançarão. No meu caso, me dediquei a muito exercício físico e muita leitura para carregar minha mochila intelectual.
Como e por que os mandavam para o isolamento. Com que desculpa?
Eles não necessitam de desculpas nem para invadir um país. Se podem cometer um genocídio frente ao mundo inteiro, imagine o que pode significar encerrar cinco pessoas em condições desumanas. No início, nos mandavam para o isolamento argumentando que era pela nossa segurança, e nisso se basearam hasta que por nossos protestos e as reclamações que vinham do exterior, se viram obrigados a nos tirar do isolamento. O isolamento tem vários objetivos: o primeiro é te colocar em um estado de indefesa tal para que se ponha a considerar se te vais enfrentar oi não esse sistema carcerário. Usam esse esquema para casos de alto perfil, mas no nosso caso estava o diferencial de que representávamos Cuba. Esse ódio visceral que tinham de nós como cubanos e comunistas, e fizeram tudo o possível para nos causar danos nessas condições durante o maior tempo possível. Manter-nos no isolamento dava a eles uma vantagem fenomenal sobre nós porque nós não tínhamos a capacidade de revisar as evidencias e outros dados do nosso julgamento estando ali. Eles criaram um esquema perverso, que consistia em nos colocar em isolamento e pôr as evidências em outro isolamento, pelo qual, para que pudéssemos revisar 10 ou 20 páginas das 40 mil páginas de evidências de um processo brutal, no qual tínhamos que levantar às 4h da manhã, fazer todo o percurso até o tribunal, para que te levassem a esse isolamento onde estavam as evidências, para trabalhar lá durante uma hora. Depois, regressar para uma cela, que era praticamente uma casa de cachorro, estar ali várias horas e logo voltar para sua cela no isolamento. Assim, o objetivo que perseguiam era nos quebrar para que "confessássemos” e também impedir nossa própria defesa. Fracassaram em ambos os casos: estamos em Cuba, não fizemos nenhuma confissão.
O que queriam que confessassem?
O conceito deles de "colaboração” é muito elementar. Queriam que disséssemos o que eles desejavam, que entregássemos nossa dignidade e deixar de ser quem você é. Deixam claro que se fazes o que eles te dizem ou não receberá a benevolência dos juízes. Creio que eles ficaram até 17 de dezembro de 2014 esperando que Gerardo os chamasse um dia por esse telefone que tem para comunicar-se com o FBI e lhes dissesse: "o que você quer?”. Sonhavam em colocar Gerardo a falar mal de Fidel, de Raúl e construir um caso contra Cuba, com Gerardo como testemunha. Para eles, a verdade e a mentira não têm importância.
Como vocês se relacionavam com os outros presos?
Quando fui enviado para a primeira prisão, esta ficava em um lugar gélido da Pensilvânia. Comigo estava um grupo, que era a família Gotti, da máfia italiana. Estavam muito organizados, com uma disciplina tremenda e eram muito respeitados na prisão. Quando eles se inteiraram de que eu era um cubano que defendia Cuba me mostraram um grande respeito. E me diziam: "tu, rapaz, és de Fidel, este sim, que briga com o governo norte-americano, e resiste”. Viam Fidel como quem enfrenta esse sistema que os havia condenado.
Por outro lado, os presos afroamericanos, majoritariamente, tinham um tratamento cordial conosco.
Na prisão são estabelecidas relações de interesse. Lá, ninguém dá nada por nada. Mas nós temos outra educação. Por exemplo, vinha um preso e te dizia que queria que revisasse um documento legal, você, se o revisa e se o traduz, e, quando vão te pagar, e diz que não, isso evidentemente choca. E, a partir disso, outros têm a mesma atitude contigo. Recordo de um afroamericano que para ganhar um dinheiro, passava a roupa dos presos. E, a mim, não me cobrava, como grande deferência. Era uma forma de dizer: você tem sido consequente, não se dobra e ademais é solidário. Também esse grau de confiabilidade fazia que quando tinha um problema na prisão nos avisavam para que não nos envolvêssemos e nos complicássemos.
A volta a Cuba
Não tenho dúvidas que o apoio do povo e do Governo de Cuba foi um fator fundamental para que eles fossem um pouco mais comedidos no tratamento conosco. Nunca nos sentimos sozinhos.
Esta Cuba que encontramos teve que adaptar-se a um mundo capitalista, do que, de certo modo, havíamos nos isolado, graças a que existia um campo socialista. Logo, o país se viu como uma ilha pequena à deriva em meio a essa tempestade e, obviamente, teve que dar alguns golpes de timão para poder seguir navegando sem perder o rumo final, que é a construção do socialismo.
Esta é uma Cuba que tem mudado para bem, adotaremos coisas que em nossa formação não nos agradam tanto, mas creio que a História é assim, como bem dizia Lênin, de que a História dá uns passos adiante e outro para trás. Temos resistido bastante bem ao que significou o desmembramento da URSS. Creio que as mudanças que estão sendo feitas são corretas, e depende de nós o resultado. O próprio 17 de dezembro abre uma porta, é um desafio sério, forte. Se conseguimos vencer estes desafios, vamos avançar mais rápido rumo ao socialismo.
Ramón Labañino: "Não confiamos nem um pouco nos EUA”
Nós acordamos, ao entrar na prisão, que devíamos fazer tudo o possível para sair, quando chegasse a hora, muito melhor. E não só no aspecto físico, mas também intelectualmente, que não nos afetasse o clima do sistema penitenciário. No meu caso, me dediquei muito a ler e a escrever alguns artigos ou poesia. Li muitos livros interessantes da esquerda norte-americana, que nos enviavam solidariamente.
Quanto tempo podiam estar fora do calabouço?
Geralmente, o sistema penitenciário te controla muito o tempo, sobretudo, se estás em prisões de segurança máxima. Eles insistem na contagem permanentemente, às 4h da tarde, depois, às 21h30, te levantavas às 6h e às 8h contavam e repetiam ao meio dia. Era uma forma recortar o tempo. Na realidade, só te deixavam "livres” quatro ou cinco horas. Contudo, eu me ajeitava para fazer exercícios físicos na própria cela, caminhava ou fazia abdominais.
No último lugar em que estive, havia neve e chuva durante quase oito meses, mas à margem disso não parava com a ginástica, para que não paralisasse o corpo. Ademais jogava muito xadrez.
Como foi a relação com os outros detidos?
A principio, em cada prisão, começa um período de reconhecimento. Depois que nos deram a sentença, ao sair de Miami, me mandaram para uma prisão bastante difícil e, quando cheguei, me encontrei com quase 80 cubanos que eram bastante complicados, vários deles radicais anticomunistas. Desde o principio, me olhavam com curiosidade, perguntando se seria verdade que eu era "o espião de Fidel”, mas, quando já te conhecem e veem que somos gente normal como qualquer cubano, começa o afeto e o respeito. Eu tenho muito bons amigos nas prisões que ficaram para trás, já que muitos deles se convertem quase em tua família real, com os quais compartilha todos os dias, são teus irmãos, que estão contigo todo o tempo, nas boas e nas más de verdade. Há outra cosa destacada no nosso caso, é que fomos a julgamento. Só por isso, já te dão entre os presos um tratamento distinto, de grande respeito, e o outro detalhe é sermos seguidores de Fidel, algo que provoca grande admiracão pelo obstinado enfrentamento com os EUA.
Tenho uma anedota curiosa que quero contar: quando cheguei a uma prisão, me recebeu o capitão com um séquito de gente bastante agressiva, e me perguntou: "Assim que tu és um espião de Castro? Você não gosta do meu presidente Bush?” Todas as coisas para me provocar. Então, me disse que iria me mandar para o isolamento e que quando saísse de lá, "vou te mandar para uma unidade onde está o cubano mais mau que já conheceu, para ver como te arrumas com ele”. Efetivamente, me mandou para o isolamento por uma semana, com dois morenos afroamericanos, com os quais finalmente terminamos amigos, e me indicaram como eram as regras ali, o que no jargão era "correr a prisão”, seus códigos, seus perigos. Ou quando vês uma mesa vazia no refeitório, deves saber que não podes sentar porque são das máfias, mexicana, italiana ou outras.
Ao final dessa semana, me tiraram e me mandaram para a "população”, onde estavam os outros presos, e eu já ia pensando que iria enfrentar esse famoso cubano. Cheguei à unidade, com duas coisinhas na mão e apenas entrei vi o cubano, um tipo alto, fraco e com um porte galante desses que tu sabes. Ao seu lado, duas espécies de guarda costas. Apenas eu entrei, me viu, e me chamou aos gritos. Eu disse para mim, aqui se arma, soltei as coisas e fui para onde ele estava sentado, disposto ao que fosse. Então, ele me perguntou: "rapaz, tu és um desses cinco, que são espiões de Castro?. E eu no mesmo tom, respondi no mesmo tom: "Sim, rapaz, sou um desses, qual é o problema?”. Então, ele brincou e gritou: "meu irmão, venha cá – e me abraçou – vocês sim são bonitos de verdade”. Ele se converteu em meu irmão, se chama Alejandro, no tempo saiu depois de cumprir 20 anos, e continuou me escrevendo de fora.
Conte sobre o último dia, o da libertação de vocês três.
Foi o mais belo da minha vida. Não pude dormir. Foram 16 anos esperando esse momento, mas, ao final, quando o instante chegou, não estás preparado, é como se te embarga a emoção. Então, me deu de fazer exercícios, e dizer para mim que era a última vez que veria essa prisão.
Tudo começou quando transferiram Gerardo, em torno do dia 09 de dezembro, para Oklahoma, e isso já nos deu uma pauta de que algo importante estava acontecendo, posto que o estavam aproximando da costa leste. De todas as maneiras, não queríamos nos iludir demasiado. Entretanto, na segunda-feira, 15 de dezembro, me puseram as algemas e me mandam direto para o aeroporto e de lá para Bowne, e ouço conversações entre os guardas, que me indicaram que estavam reunindo nós três lá. Alojaram-se em uma cela e me disseram que eu ficasse tranquilo, e, no outro dia, pagaram as esposas e me levaram para a área de visitas e, quando cheguei lá, vi Antonio e Gerardo, e nos abraçamos com uma alegria indescritível, já que fazia muito que não nos víamos. No dia 16, nos sentaram em um salão e foi feita uma teleconferência com Cuba, na qual um companheiro nos disse: "Tenho a honra de dizer-lhes que a partir de amanhã vocês serão homens livres”. Imagine a nossa emoção.
No dia 17, às 3h da madrugada, nos avisaram que já voltaríamos. Levaram-nos algemados nos pés e mãos, em um furgão, nos subiram em um avião, e saímos rumo a Baracoa. E outro detalhe: as algemas recém nos tiraram quando o avião tocou a terra em Cuba, na primeira hora da manhã.
Nossa chegada foi secreta, assim nos esclareceu o presidente Raúl, quando o vimos, já que até o meio dia não se podia dizer nada, porque nesse momento seria realizada uma entrevista coletiva.
O que sentiram nesse encontro com Raúl?
Foi como ver um pai. Entre nós não existem hierarquias, somos irmãos. O tratamento foi como se nunca tivéssemos saído de Cuba.
Cuba está capacitada para enfrentar o desafio dessa nova tática dos EUA, que se denomina "flexibilização das relações”?
Seguramente que sim, nós estamos cumprindo com o nosso socialismo, como parte das nossas definições ideológicas de sempre. Esta é uma mensagem que devemos enviar aos companheiros de toda a esquerda internacional. Noutro dia vi um jornal da esquerda alemã que dizia: "Cuba, não confie nos Estados Unidos”. Este é um lema que vem de Che Guevara. Nós não confiamos nem um pouquinho, o que passa é que estamos vivendo momentos históricos, no que diz respeito às transformações sociais do nosso país, que temos que fazê-las para nossa própria sobrevivência. Mas que não restem dúvidas de que temos um povo digno, que sabe defender sua soberania, contamos com dirigentes preparados para enfrentar as adversidades. Vem uma briga difícil. Tratarão de nos seduzir, de comprar nossos quadros, de nos induzir a criar partidos, vão querer transformar a economia em capitalista. Temos que manter nossa vigilância revolucionária ao máximo, ser tão cuidadosos como nos ensinou Che. Sabemos que essa é uma nova tática do imperialismo para usurpar nossa terra.
Fernando González: Uma economia eficiente e mais socialismo
O fundamental para resistir são os princípios, o que levamos no sangue. Este é um país que desde o seu início se formou na luta pela independência. Sempre enfrentamos poderes tremendos e assim se foi forjando a nacionalidade cubana. Levamos tudo isso por dentro, é totalmente emocional. Eu tomei consciência que isso que acontecia comigo na prisão não era pessoal contra mim, mas contra Cuba. É que uma agressão a mais que se soma a outras tantas que sofreu nosso povo.
Eu me propus na prisão, depois de observar meu entorno, a usar o tempo em meu benefício, para sair dali estável, com saúde física. Se isso não ocorresse, eles ganhariam a briga.
E nisso saí vitorioso, já que não puderam me quebrar.
Também li muitíssimo e isso me dava outro uma vantagem necessária nesse âmbito. Eu dizia para mim todo o tempo que apesar de passar pela prisão não tinha que converter-me em um presidiário.
Você esteve um longo tempo com o preso político portorriquenho Oscar López Rivera.
Foi um autêntico privilégio. Convivemos quatro anos com esse lutador (que já levava 30 anos encarcerado). Com ele falamos da resistência boricua, da esquerda revolucionária do seu país e também da realidade dessa luta nos EUA, onde ele viveu e combateu.
Oscar é uma pessoa séria, muito formada, de quem todos gostam e admiram, mesmo nesse entorno difícil em que nos movíamos. Para mim, foi fundamental falar com ele, compartilhar nossas experiências, e sentir que ele era um exemplo de resistência, com características humanas inacreditáveis. Com ele voltei a treinar como desenhista, me deu os primeiros conselhos, me corrigia no que eu fazia.
Como você vê esta Cuba de hoje e a "aproximação” com os EUA?
Começo pelo último. As intenções dos EUA não são boas, quando se lê as declarações de Obama sobre a dura política que têm aplicado sobre nós durante esses 56 anos, ele mesmo diz que "mesmo com as boas intenções que temos não tem dado resultado” e, então, decidem colocar em andamento outra tática. Continuam pensando em nos asfixiar, e nós estamos prontos para continuar enfrentando-os. Obviamente que desejamos poder seguir adiante, ter uma vida mais folgada. Não se trata de que seja a panaceia já, mas se conquistamos uma relação com os EUA de vizinhança respeitosa muito melhor. Mas não nos esquecemos que a intenção deles é arrancar nossa cabeça, com um sorriso no rosto, com a participação nas Cúpulas ou nos coquetéis nas embaixadas, mas não mudaram sua intencionalidade. Sabemos que se abre un tempo de batalha ideológica e vamos lutar.O bloco está aí, intocável, e é preciso seguir lutando para que seja extinto.
Também continuará a subversão contra Cuba, que ninguém pense o contrário.
As mudanças em Cuba apontam para restaurar o capitalismo?
Sou consciente de que existem critérios de certa esquerda que temem isso. Em outro dia, Abel Prieto dizia uma coisa bem certa: Marx nunca disse que os postos de gasolina têm que ser propriedade estatal, como o restante dos meios de produção, os que decidem de quem é realmente o poder. Nós estamos imersos em um processo para fazer essa economia mais eficiente, para que a sociedade disponha de mais recursos, para lutar por um socialismo sustentável, mas que não restem dúvidas, que para mais socialismo. Certamente que isso tem seus perigos. Sempre que se introduzem as leis do mercado, pode criar-se uma mentalidade que não é afim ao socialismo. Mas aqui estamos de pé para fazer a batalha.O planejamento será a ferramenta fundamental, claro que usaremos o mercado na medida em que faça falta para estimular a produção e comercialização de um produto.
Aqui, por outro lado, não se permitirá a concentração da riqueza, mas sim há uma diversidade maior no que faz a economia.
Gerardo Hernández: "Jamais vamos voltar para a Cuba anterior a 1959”
Quais e quem são, na sua opinião, os forjadores desse regresso triunfante a Cuba?
Eu vejo como um grande mecanismo, como essas máquinas que estão compostas por muitas peças pequenas, que se uma falha as outras não se movem por maiores que sejam. Se bem que o desenlace final se deveu a fatos muito concretos, vinculados à negociação que se conhece, penso que esta última não teria sido possível se durante muitos anos não se houvesse feito um trabalho de formiguinhas para que o nosso caso fosse conhecido. Perguntemo-nos: o que importaria para os Estados Unidos libertarem os 5 se ninguém nos conhecesse, se não estivessem reclamando dia a dia ou ninguém houvesse manifestado? É por isso que não se pode menosprezar nenhum dos esforços que foram feitos durante anos. Ao final, o resultado colhido foi graças a todos esses esforços unidos e solidários.
Nesse aspecto, que valor é dado à solidariedade internacional?
Foi fundamental. Não só o valor para alcançar um resultado, mas que foi essencial para o dia a dia da resistência de cada um de nós, os 5. Quero recordar, por exemplo, um dos momentos difíceis que vivi em uma das prisões pelas quais passei. Esta era um antigo cárcere que estava em muito más condições. Me colocaram em um lugar que chamavam de "a Caixa” e que estava debaixo do isolamento (aonde geralmente nos isolavam por completo). Ali, quando davam descarga na cela de cima, vazava água suja pelas paredes do meu calabouço. Ademais passavam 24 horas com a luz acesa, quase sem roupa e sem nada para ler. Nesse momento, quando me chegaram notícias do que estava ocorrendo fora, com os companheiros que estavam se manifestando em frente ao Bureau de Prisões e ao Departamento de Justiça, com cartazes reclamando nossa liberdade, isso me deu uma força tremenda. Quando ocorriam esse tipo de coisas, eu dizia para mim: estou aqui, mas meu papel neste pequeno espaço em que me encontro é resistir, que não me dê um ataque de pânico e não ceda. Essa era a minha missão para acompanhar também o esforço de tantos companheiros lá fora. Se eles estavam fazendo isso, debaixo de chuva ou com temperaturas muito altas, faltando a seus trabalhos, como não iria fazer eu da mesma maneira.
Muitas vezes, não se fala disso, mais além do valor da solidariedade em termos de resultados, destaco a importância do que foi para nós esse acompanhamento nos piores momentos.
Em algum momento, você duvidou que fosse voltar a Cuba?
Duvidar, quiçá não seja a palavra mais apropriada, mas nós temos uma frase em Cuba que diz que "é preciso ter duas ‘javitas’ (bolsas), uma para o bem e uma para o mal”. Em nosso caso, uma das ‘javitas’ era se algum dia regressaríamos à Pátria. Eu não vou mentir, dizendo que não pensamos na outra possibilidade, que no pior dos casos me preparasse para morrer na prisão. Não por abandono do nosso povo e do nosso governo, mas por situações que ocorriam na prisão. Vivemos com nossos próprios olhos: pessoas que foram assassinadas ou morreram em brigas a punhaladas. No entanto, sempre nos restou a confiança absoluta em que o governo e o povo cubano não iriam nos deixar sozinhos, e tampouco os companheiros da solidariedade mundial.
A Cuba do seu retorno: prós e contras.
Uma Cuba diferente, que não me surpreendeu porque estava bastante bem informado da nossa realidade. É verdade que encontramos uma Cuba com muitas coisas boas e alguns fenômenos negativos, que não existiam na nossa época. Vejo um povo disposto a seguir lutando e a vencer os desafios que impõem os nossos inimigos.
O que você responderia a quem, de fora de Cuba, sustenta que as atuais reformas econômicas e sociais são um passo rumo ao capitalismo?
Creio que há muitos que dizem isso porque desejariam que isso ocorresse. Penso que estamos em um cenário muito interessante, aplicando fórmulas novas e explorando opções. Nosso objetivo fundamental é alcançar um modelo cubano do qual existem algumas linhas, mas ainda estamos teorizando sobre a prática. Estamos enfrentando um mundo praticamente novo, mas do que sim, estou convencido – seremos muitos os cubanos que lutaríamos para que isso não ocorra – que jamais vamos voltar para a Cuba anterior a 1959, nem para a desigualdade abismal que existe em muitos países, onde os poderosos submetem os mais necessitados. Voltar a isso seria negar toda a nossa história e os sacrifícios realizados por tantos cubanos que caíram para que isso não ocorra.
Agora bem, em termos econômicos, que mecanismo aplicar, quais sim e quais não, penso que não podemos ser esquemáticos. Se nós temos sido capazes de resistir a um bloqueio por mais de 50 anos, seremos capazes de criar um modelo cubano, que, como diz Martí, seja para o bem de toda a população.
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