por Joseph Halevi [*]
Parte 1: O espaço alemão de acumulação
O atual estado de coisas na Eurozona e na UE reflecte a partição da União Europeia em três grupos.
O primeiro é um grupo de países neo-mercantilistas centrados na Alemanha e constituído pela Holanda, Bélgica, Áustria e Escandinávia. O seu neo-mercantilismo pode ser definido como forte devido ao seu persistente excedente de exportações - realizado principalmente dentro da Europa, dada a tendência de défices ascendentes com a Ásia não compensados pelo excedente flutuante com os Estados Unidos. Os desequilíbrios externos líquidos do grupo não dependem muito da desvalorização nominal da divisa. A posição líquida repousa sobre o efeito combinado de manter uma poderosa indústria de bens de capital, ligada através da Alemanha a corporações oligopolistas globais, enquanto macroeconomicamente apresenta uma taxa de crescimento a longo prazo muito baixa. A Alemanha não é a locomotiva da Europa. A partir da década de 1970 a Europa Ocidental apresentou sistematicamente uma taxa de crescimento muito mais alta estimulando com isso as exportações da Alemanha e dos seus satélites económicos. Portanto o grupo neo-mercantilista exemplifica uma situação clássica de monopólio do capital, convertida numa macroeconomia institucionalizada estabelecida pelo próprio processo da construction européenne desejado pela França.
No passado a Alemanha procurava taxas de câmbio estáveis para evitar desvalorizações competitivas. No contexto de uma moeda única um tal objectivo transmutou-se em deflação salarial competitiva. A estagnação interna assegura que os salários alemães crescem menos do que a produtividade. O sistema contratual do país, baseado numa entente neo-mercantilista com os sindicatos, permite ao fosso entre produtividade e salários ser mais favorável ao capital em comparação com o resto da Europa. Tudo isto leva ao baixo crescimento na Alemanha reforçando sua competitividade exportadora por meio de deflação salarial. O resultado final é que enquanto a Europa nada pode fazer sem maquinaria e inputs tecnológicos alemães, a Alemanha não é um importador em expansão rápida, portanto não contribui para a procura líquida europeia. Ela com isso acumula excedentes externos muito grandes que são utilizados para financiar Investimento Directo Estrangeiro e joint ventures na China e alhures, bem como para comprar papéis financeiros de pacotilha dos EUA como aconteceu no salvamento do Landesbanken.
O segundo grupo de países é a periferia interna europeia, encabeçado pela Itália. Firmas em Portugal, Espanha e Grécia gostariam de gerar exportações líquidas mas não podem porque, não obstante o seu crescimento exportador, elas têm um fraco sector interno de bens de capital. A dependência das importações sobre sectores tecnológicos e também sobre bens duradouros é tal que as passadas desvalorizações anteriores ao euro não ajudaram a melhorar a posição externa destes países. Tanto a Espanha como a Grécia, mas não Portugal, experimentaram taxas de crescimento médio mais altas do que a UE. O crescimento da Espanha deveu-se à inserção do país no mercado imobiliário internacional via Londres. No caso da Grécia o défice orçamental (fiscal deficit) permitiu-lhe sustentar um crescimento orientado para a importação. Em ambos os exemplos o crescimento da procura interna levou a actividade mais intensa implicando ainda mais importações per capita. Perceba-se que não fosse o seu sector financeiro mundial, a Grã-Bretanha pertenceria aos países com défice persistente da periferia europeia. A Itália, por outro lado, tem sido um exportador líquido. Mas os seus melhores desempenhos nas exportações líquidas verificaram-se quando a Lira desvalorizou-se relativamente ao Deutsche Mark. Com o Euro a posição externa líquida deteriorou-se drasticamente, tornando-se negativa em 2005. A Itália simboliza a forma fraca de neo-mercantilismo dependente da desvalorização da divisa. A Itália pertence portanto à periferia interna uma vez que a sua posição internacional estava ligada a um enfraquecimento da divisa. No cômputo geral, o Euro restringiu o espaço europeu do capitalismo italiano.
O terceiro grupo é constituído unicamente pela França; um caso muito especial. Ela tem uma acentuada postura neo-mercantilista mas raramente tem êxito. É o maior mercado de exportações líquidas para a Alemanha e cada vez mais também para a Itália. A partir de 1980 a França conseguiu uma posição externa líquida só no rastro do colapso do Sistema Monetário Europeu em 1992-93, perdendo-o quatro anos depois após a constituição do euro. Ao contrário da Itália, a França, devido ao peso do seu sector financeiro, tentou evitar o caminho da desvalorização competitiva. O plano para uma euro-divisa comum era essencialmente de Mitterrand-Delors, como um meio de contornar o neo-mercantilismo fracassado e exercer controle sobre políticas monetárias da Alemanha. A posição peculiar da França é relevante para a crise actual.
Parte 2: A Eurolândia num beco sem saída
Considere-se agora o facto de que desde a década de 1970 a Alemanha tem tido uma política deliberada e com êxito de manter a sua própria taxa de crescimento bem abaixo daquela do resto da Europa com o objectivo preciso de acumular excedentes financeiros. A França também não está muito interessada em crescimento sustentado porque sucessivos governos, incluindo o de Mitterand, temem reivindicações salariais. Finalmente, a Itália pode crescer se condições de taxa de câmbio favoráveis prevalecerem uma vez que os gastos do sector público deixaram de apoiar o crescimento do país já nos fins da década de 1970. Sob tais circunstâncias não é nada surpreendente que na Europa Ocidental as taxas de crescimento declinassem durante todo os anos nas últimas quatro décadas. A Europa tem estado a cair cada vez mais nas garras dos excedentes alemães, sendo o único ponto brilhante exportações líquidas para os Estados Unidos as quais, contudo, dificilmente compensam os défices crescentes com a Ásia. A constituição do Euro cristalizou completamente a situação e permitiu à Alemanha alcançar excedentes sem precedentes num contexto de aprofundamento da estagnação europeia. Quando a saída estado-unidense cessou de funcionar no rastro da crise subprime, a qual caiu em cascata sobre papéis derivativos possuídos pelo Landesbanken, a Alemanha endureceu a sua posição neo-mercantilista e decidiu unilateralmente reescrever as regras do jogo.
A crise grega é simplesmente o caminho escolhido por Berlim para modificar o código de conduta em detrimento da França. Em si mesmo não há um problema de défice grego excessivo. Ele pode facilmente ser manuseado ao nível europeu concebendo políticas comuns para relançar o crescimento europeu e especificamente o da Grécia, pois é a única cura que não mata o paciente. Cortes drásticos na despesa pública, enquanto desarticulam todo o sistema de serviços e infraestrutura sobre o qual repousa uma sociedade moderna, reduzem o rácio da dívida apenas marginalmente, se é que o fazem. Mas da perspectiva neo-mercantilista de Berlim, uma opção cooperativa não é contemplada sequer remotamente devido às seguintes razões:
A Alemanha encara a Eurozona como um sistema de taxa de câmbio fixo bom apenas para impedir desvalorizações competitivas (no passado as desvalorizações mais danosas e eficazes foram as da Itália). Para a Alemanha a cláusula da não transferência santificada nos Tratados de Maastricht-Dublim-Amesterdão devem manter-se em vigor uma vez que o papel essencial da Europa Ocidental é proporcionar procura efectiva líquida para exportações da Alemanha. Como informou Wolfgang Munchau no Financial Times de 21 de Março: "Rainer Brüderle, ministro da Economia, disse na semana passada que não havia nada que o governo pudesse fazer acerca da procura porque o consumo era uma decisão de indivíduos privado. O alto responsável do Bundesbank chegou a comparar a eurozona a um clube de futebol, no qual a Alemanha orgulhosamente matinha o primeiro lugar". A comparação é claramente falsa: para competir com a Alemanha, os países da Eurozona teriam de reduzir as suas próprias taxas de crescimento bem abaixo das da Alemanha, o que significa que elas terão de ser zero ou mesmo negativas. Foi esta "gestalt" que pressionou Sarkozy a confrontar Merkel, embora o tenha feito demasiado tarde, só depois de o governo alemão perder a maioria no Bundesrat a seguir às eleições no Norte-Reno Westphalia em 17 de Maio.
O endurecimento da posição alemã em relação à Grécia e aos países ibéricos deve-se também ao foco de Berlim sobre a sua própria periferia externa na Europa Oriental envolvendo os países Bálticos, os quais estão numa depressão total, e Eslováquia e Hungria em recessão profunda. É um segredo público que, embora recusando-se a confirmar, o BCE tem estado a comprar seus títulos como colaterais para empréstimos, absolvendo dessa forma bancos austríacos e suecos do seu comportamento imprudente na concessão de empréstimos. Isto é feito com o pleno apoio de Berlim. A oposição da Alemanha à ajuda à Grécia faz parte da sua política de distribuir moeda para áreas que são zonas satélites de Berlim e para as áreas de companhias alemãs que reestruturam estratégias, como é o caso com a Europa Oriental.
Após as eleições no Reno-Norte Westphalia, a França obrigou Berlim a aceitar um fundo euro de 750 mil milhões. Algumas figuras eminentes (Financial Times de 21 de Maio) anunciaram a decisão como um passo em frente rumo ao federalismo fiscal na Europa. Não é nada disso. Na melhor das hipóteses é uma fundo de emergência, um fundo muito opaco que, o qual é estruturado num veículo especial de investimento cujo conteúdo é desconhecido. A sua natureza de tipo instrumento tóxico destaca a gravidade da situação e portanto sublinham a sua inadequação. Isto explica porque o fundo fantasma não está a aplacar os mercados.
As expectativas estão a tornar-se piores pela corrida para a base gerada pelo desovar alemão da crise grega. Cada país está a tomar medidas de austeridade que farão da recuperação um evento acidental. Além disso, o conflito entre a Alemanha e a França está a ser estreitado para duas regras orçamentais competidoras, mas semelhantes, para a União Europeia. O plano alemão baseia-se na sua própria terrífica lei do orçamento equilibrado e a novíssima proposta francesa de uma trajectória rumo a um orçamento equilibrado. Ambas afundarão ao chocarem-se nas rochas das assimetrias intra-eurozona e do agravamento da crise social que leva a grandes perdas de receitas fiscais.
[*] Economista, professor no International University College de Turim. Co-autor, com Yanis Varoufakis e Nicholas Theocarakis, de Modern Political Economics: Making Sense of the Post-2008 World , Routledge, 2011.
NR: Este artigo de 2010 é publicado agora por se considerar que a classificação de países europeus feita pelo autor mantém-se válida, assim como grande parte da sua análise.
O original encontra-se em www.re-public.gr/en/?p=2408#more-2408
Este artigo encontra-se em http://resistir.info
http://www.iranews.com.br/noticia/10458/a-grande-crise-que-afunda-a-europa