Hamid Karzai, a realidade e o que lhe passa pela cabeça

O que pensam de um lado o presidente afegão Hamid Karzai e de outro, os norte-americanos, são realidades que nunca, de fato, acomodaram-se muito amistosamente durante os últimos três anos a partir de 2009, quando houve eleições presidenciais no Afeganistão. Os EUA queriam uma 'mudança de regime' em Kabul em 2009; Karzai não apenas não via com simpatia o projeto de deixar-se jogar sob o trem, como, também, estava decidido a permanecer na presidência por mais quatro anos - direito que a Constituição afegã lhe assegurava. Confiança traída e quebrada nesse nível - e relacionada a questão existencialmente importante - dificilmente se deixa reconquistar.

MK Bhadrakumar, Russia & Indian Report

http://indrus.in/blogs/2013/03/18/reading_hamid_karzais_mind_23013.html

Há um "déficit" de confiança entre Kabul e Washington. Essa é uma explicação caridosa que se pode dar à recente "avançada" [orig. surge] na rixa de Karzai com os EUA. Fator que em vários sentidos complica as coisas hoje é que o interlocutor chave que finalmente conseguiu apaziguar as sensibilidades de Karzai no inverno de 2008 e chegou a um acordo que resultou na sua subsequente "vitória" eleitoral foi John Kerry, hoje secretário de Estado dos EUA.

Não se conhecem os exatos termos daquele acordo, mas segundo o que Kerry revelou nas sabatinas no Senado dos EUA antes de confirmado no posto de secretário de Estado, Karzai teria prometido solenemente a Kerry que não tentaria um terceiro mandato como presidente. Mas Kerry, no seu depoimento, insistiu, em tom de promessa, que os EUA estão determinados a trabalhar pela substituição de Karzai em Kabul; e que não se cogita de aliviar, nesse esforço. O que não se entende é por que Kerry optaria por fazer essa declaração-promessa veemente sob a luz dos maiores holofotes do mundo, se fosse totalmente desnecessária (Karzai diz sempre, onde e quando perguntado, que não tem planos de concorrer às próximas eleições presidenciais, em 2014).

Assim também Kerry não incluiu Kabul no primeiro tour internacional como secretário de Estado, embora o Afeganistão seja, e como tal permanecerá, uma das principais questões de política externa do segundo mandato do presidente Barack Obama.

O vai e vem da maré das tensões entre Kabul e Washington já quase nem parecia novidade durante os três últimos anos, mas as tensões começaram a acumular-se. Está começando uma nova estação de observação-de-Karzai, entre observadores ocidentais, que tentam adivinhar e interpretar o modo como sua cabeça estaria operando e quais seriam suas intenções, quando deu alguns passos bem duros, recentemente, bem visivelmente orientados para fazer-ver a Washington onde plantar suas batatas, porque ele, Karzai, seria o manda-chuva no Hindu Kush.

Karzai não compareceu à cerimônia formal, em Kabul, mês passado, quando o novo comandante norte-americano, o general Gen. Joseph Dunford, foi empossado. E não ficou nisso. Seu primeiro "contato" oficial com Dunford foi convocá-lo, dias depois, ao palácio presidencial e aplicar ao general quatro-estrelas condecorado um, digamos, sabão, à vista de todos, sobre a sensível questão das mortes de civis afegãos provocadas por forças norte-americanas. Desde então, os militares dos EUA vêm agindo de modo estranho.

Soldados não gostam de ser mandados sair. Karzai mandou que as Forças Especiais dos EUA saíssem da província de Wardak até 10 de março. Mas Dunford (até agora) ainda não saiu - e já se passaram dez dias. Outra vez, Karzai anunciou a retomada formal da prisão da base aérea de Bagram e das centenas de prisioneiros políticos afegãos que permaneceram anos sob custódia dos EUA, enquanto Dunford inventa precondições de último minuto, insistindo que os militares norte-americanos mantenham o privilégio de decidir se os prisioneiros poderiam ser libertados.

Não há dúvida que, tenha sido essa a intenção de Dunford, ou não, Karzai fez triste figura no bazaar político afegão. Mas Karzai não se deixaria abater. Na véspera da chegada a Kabul do novo secretário da Defesa dos EUA Chuck Hagel para seu "tour de familiarização", recentemente, Karzai insinuou que os americanos ter-se-iam aliado aos Talibã para prolongar a presença militar estrangeira no Afeganistão. Hagel encaixou o míssil de Karzai, mas Dunford respondeu ao golpe: pôs as forças militares dos EUA em estado de prontidão, porque, como disse, os "comentários incendiários" de Karzai criavam riscos adicionais e ameaçavam a segurança dos soldados norte-americanos no Afeganistão.

A rixa respingou inevitavelmente para as ruas nesse fim de semana, com grande manifestação pública em Kabul que exigia o fim da ocupação ocidental e a retirada imediata, do Afeganistão, de todos os soldados norte-americanos. Mais significativamente, o Conselho Nacional Afegão Ulema, corpo de intelectuais religiosos (que aparecem na folha de pagamento do Estado) criado pelo governo e que representam todos os clérigos islâmicos do país, distribuiu declaração ácida, alertando que "os infiéis" norte-americanos seriam tratados como invasores, a menos que o governo Obama cumprisse as exigências de Karzai sobre a prisão em Bagram e as Forças Especiais em Wardak.

Que ninguém se engane: aqueles clérigos, que vivem sob patrocínio governamental, seguem a política de Karzai. Portanto, a única parte realmente surpreendente é o tom da declaração. Falaram de "infiéis" (kafirs) em referência aos EUA e aliados, o que é sinal claro que a relação entre Karzai e os norte-americanos atingiu o fundo do poço. Os clérigos disseram, com todas as letras, que "Alá jamais permitiu que muçulmanos se submetessem a governo e soberania de infiéis."

A declaração diz também que as exigências de Karzai (sobre a prisão em Bagran, a retirada da província de Wardak etc.) "são a voz da nação afegã muçulmana", falando pelos interesses da "soberania e da independência de nosso país". Alertava que a desconsideração, pelos EUA, das exigências de Karzai, seria vista como "ocupação do Afeganistão, e os norte-americanos serão responsabilizados pelas consequências."

Claro que as "consequências" ameaçadoras obrigarão Dunford a tentar adivinhar qual será o próximo movimento de Karzai. Não há meio pelo qual Karzai possa convocar o povo a pegar em armas contra os EUA e seus aliados. Mas uma alternativa, de fato mais danosa para os interesses dos EUA, pode ser algum tipo de "não cooperação" à maneira de Gandhi - que provocaria grave tropeço nos planos de retirada das tropas da OTAN.  Karzai também é mestre na arte de manobrar situação de perigo, até os limites mais extremos da tolerância ou da segurança, para garantir-se vantagens máximas.

A grande pergunta é o que acontece agora com a agenda norte-americana de estabelecer bases militares no Afeganistão. Os oficiais afegãos enviam sinais confusos aos norte-americanos, no sentido de que Karzai estaria apenas se vangloriando, na esperança de surfar uma onda de nacionalismo, a qual, de volta, lhe daria o peso necessário para atravessar a formalização do controverso Acordo SOFA [orig. Status Of Forces Agreement] para o estabelecimento das bases militares norte-americanas. Vai-se tornando contudo cada vez mais difícil acolher essas explicações muito elaboradas. Isso, quase exatamente, foi o que disse Nouri al-Maliki do Iraque, pouco antes de as forças dos EUA serem, afinal, expulsas do Iraque.

Considerada a experiência do Iraque, Washington, por seu lado, já começa a sugerir sutilmente que não há almoço de graça; e que, não havendo um pacto de segurança sobre as bases militares, os EUA podem rapidamente revisar o compromisso de apoiar o governo de Karzai. E há também um mal disfarçado ataque de "guerra psicológica", com comentaristas e 'especialistas' já 'concluindo' que governo de Karzai desmoronaria como castelo de cartas, caso os EUA lhe puxassem o tapete.

Curiosamente porém Karzai não dá qualquer sinal de perturbação ante as ameaças ocidentais. Não se vê sinal de vacilação em sua confiança de que os afegãos saberão gerir muito bem os próprios negócios sem a presença dos soldados ocidentais. Desenvolvimentos do fim de semana sugerem que Karzai pode, até, estar apertando ainda mais o parafuso.

Não há dúvidas de que os EUA não desistirão facilmente do Afeganistão. As bases planejadas para o Afeganistão são vitais para toda a estratégia regional dos EUA. Além do mais, se deve esperar que os EUA explorem a via dos detratores e opositores (não Talibãs) de Karzai, sobretudo os grupos da antiga Aliança do Norte, para assim isolar Karzai politicamente e quebrar a coalizão que, até aqui, lhe garantiu uma base político-militar afegã. Esse processo pode até já ter sido iniciado - como Kerry parece ter sugerido em seu depoimento no Senado dos EUA.

Karzai também sabe que Washington fará tudo que possa, não importa o custo, para garantir que o próximo governo em Kabul siga rigorosamente a agenda regional dos EUA; e que, no plano de jogo dos EUA, não há lugar para ele na liderança do Afeganistão. Mas o próprio Karzai, muito provavelmente, não vê o próprio futuro político exatamente como os EUA o veem, para o cenário pós-2014. A verdade é que há ainda pela frente, na política interna afegã, um período extremamente fluido e complexo, enquanto o país vai-se aproximando das eleições presidenciais marcadas para 5/4/2014.

Perscrutando um pouco adiante e com alguma bola de cristal, pode-se prever que venha aí, pela frente, algum tipo de impasse entre Washington e Kabul? A probabilidade mais alta é que seja ainda mais feio que isso. Mas, sim, o impasse pode diminuir, se os EUA respeitarem algumas regras de campo.

Em primeiro lugar, os EUA têm de parar de interferir na política afegã, agora que se aproximam as eleições de abril do ano que vem. É evidente que Karzai espera permanecer politicamente "ativo".

Em segundo lugar, Washington tem de deixar espaço para que Karzai pareça estar no comando. Isso envolve duas coisas - não o desqualificar nem ignorar suas ordens ou demandas relacionadas à condução das operações militares; e, além disso, dar mão livre a Karzai para que ele costure o próprio futuro político (o que Karzai é perfeitamente capacitado para fazer e tem pleno direito de fazer).

Em terceiro lugar e muito importante, Washington não pode nem deve - de um ponto de vista político, militar ou moral - conectar (a) seus futuros compromissos e futuros compromissos de seus aliados, de contribuírem para a segurança e a estabilidade do Afeganistão, com (b) a negociação de um Acordo SOFA sobre as bases militares pensado em termos exclusivamente de Washington. Os afegãos obviamente militarão contra qualquer pacto que garanta imunidade a soldados dos EUA em relação à lei local, o que seria o mesmo que 'liberá-los' para cometer crimes.

O paradoxo está, como se vê, em que, ao enfraquecer ou ofender Karzai e empurrá-lo para as cordas, Washington simultaneamente decreta a extinção do pacto de segurança. Ao mesmo tempo em que as manifestações do fim de semana e a declaração da Ulema já lançam dúvidas também sobre a eficácia de estabelecerem-se bases militares dos EUA em solo afegão.

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