É preciso reconstruir a esquerda, mas quem vai fazer isso?
Por Mariana Serafini
Créditos da foto: Ana Julia (Rodolfo Buhrer/Estada%u003o)
Assim que liga a câmera, Ana Julia pede desculpa porque está comendo uma bolacha, é o horário de almoço. Pergunto se ela quer deixar a entrevista pra depois, mas não dá. Na sequência ela começa o expediente. O almoço vai ser assim mesmo no improviso. Entre as aulas de Direito pela manhã na PUC-PR, o trabalho a tarde, e a faculdade de Filosofia à noite na UFPR, ela se desdobra como ativista pela Educação e militante política do PT, e o tempinho que sobra preenche com entrevistas, palestras e atos.
Foi em 2016, quando as escolas de Ensino Médio ferviam Brasil à fora com imensas ocupações estudantis que Ana Júlia despontou como uma jovem liderança. À época ela tinha apenas 16 anos e fez uma fala emocionante na Assembleia Legislativa do Paraná em defesa dos colegas que estavam ocupados e contra o projeto Escola sem partido, que então estava em discussão. "Não somos baderneiros, estamos discutindo nosso futuro, debatendo o que a gente quer". A firmeza e o comprometimento das palavras da estudante estamparam as capas dos jornais no dia seguinte e foi ali, no calor das assembleias estudantis, que ela descobriu que seria gauche na vida, e desde então se dedica às causas justas.
Agora, nas eleições municipais de 2020, a estudante se candidatou à vereança em Curitiba. Com uma campanha jovem e construída de forma coletiva, voltada à pauta da Educação, ela conquistou 4500 votos. Apesar da votação expressiva, não vai assumir uma cadeira, mas ficou na primeira suplência do PT. Antes dela, o partido elegeu outros 3 vereadores. Dos 38 da Casa, 18 fizeram menos votos que Ana Julia.
O resultado é visto como uma vitória. Porque o processo de construção da candidatura levou meses de trabalho de base, conversas, debates, uma busca incansável para dar respostas às necessidades reais dos estudantes. Para a candidata, o trabalho só começou. "É nossa primeira campanha, somos muito jovens e conquistamos um processo muito lindo, uma campanha muito grande. 4500 votos na cidade de Curitiba pro PT, com uma primeira candidatura, é muita coisa. A expectativa agora é que a gente dê início a um projeto político que pode ser muito grande e que tem base social, ideológica e eleitoral. Isso abre margem para construir um processo partidário de fortalecimento do PT", comemora.
Quando ela diz "somos muito jovens", é literalmente muito jovens mesmo. O mais velho do time tinha 31, e ala, a candidata, 20. O carro chefe da campanha era a defesa de ampliação das vagas em creches. "Pode parecer bobo, mas quando a gente fala em universalizar a educação, tem que ser na educação infantil, porque aí você cria um mecanismo para ampliar as vagas nos outros ciclos. Temos todo um projeto por trás que nos permite trabalhar com segurança alimentar, garantia de emprego e renda e debate sobre o ensino integral". Cada ponto do projeto foi debatido e elaborado em conjunto e Ana não titubeia: "tenho muito orgulho porque nossa plataforma é muito completinha. Ligar um direito no outro é relativamente simples, mas traçar um plano de ação capaz de linkar uma coisa na outra e quando você vê o resultado final é a dignidade da vida humana é muito difícil, e foi isso que nós fizemos".
Para ela, a educação é o motor de construção de uma sociedade emancipada e socialista. Aliás, não tem meio termo, a questão de classe é o ponto de partida de tudo que Ana faz e não vê sentido em defender a Educação se não for pública, gratuita, de qualidade e universalizada. "Nossos projetos são todos voltados à Educação Pública. Desde valorização do professor, mudança de metodologia, a própria mudança da visão da educação pública, começar a percebê-la como motor da democracia. Então tínhamos propostas para viabilizar isso".
Quando o assunto é educação pública, Ana fala com a autoridade de quem conhece de dentro a realidade da escola pública brasileira e sabe que a disputa é muito desigual entre esses e os que vêm da rede privada. Filha de trabalhadores militantes do PT, a consciência social veio de casa, mas a história dela se confunde com a de milhares de jovens brasileiros que se desdobram em 3, 4 turnos para dar conta do trabalho, da escola e do cursinho (quando há dinheiro) para disputar uma vaga em uma boa universidade pública. "A minha geração já pegou as cotas. Quando a gente entra, já metade de quem tá prestando vestibular é da educação pública. Ainda assim, hoje a universidade tem - a UFPR - 60% oriundos da escola pública. Os estudantes da escola pública conseguiram atingir um patamar tão alto, e tem batalhado tanto pra isso, que eu, mesmo podendo ser cotista, eu concorri na vaga de ampla concorrência. Sou estudante de escola pública, mas não entrei por cota. Falo, com o maior orgulho que "roubei" mesmo a vaga de um estudante de escola privada. Eles não merecem".
O orgulho de classe é uma coisa que se destaca todo o tempo enquanto Ana fala. Ela tem orgulho da tripla jornada de trabalho e estudo para segurar as pontas, e enche a boca para contar a trajetória dos pais. "Sou pobre, sou trabalhadora, mas eu não passei tanta necessidade assim na vida, não. Sou feliz assim, não queria que fosse o contrário. Mas isso não é uma realidade pra toda a minha família. Não é uma realidade inclusive pros meus pais, que trabalham desde muito novos. Já foram boia-fria, já foram de tudo um pouco. Hoje, meu pai é dono de uma autopeça e minha mãe é professora da rede municipal de Colombo. Acho que é muito importante quando a gente tem consciência de classe, de status social, de qual lugar você ocupa".
A consciência de classe é o motor que faz a jovem estudante não perder a sensibilidade na luta por uma educação emancipadora. "Para transformar a educação pública a gente precisa compreender as diferenças sociais e o impacto disso na vida de cada um. Quando a gente conseguir dar esse suporte, que é conseguir colocar em pé de equidade, não de igualdade, os estudantes da rede pública com a rede privada, a gente vai conseguir formar a escola pública, a educação pública que de fato será o pilar da democracia. Que trabalha a integralidade do ser humano. E a partir do momento que a educação pública assumir esse protagonismo, a gente não tem mais diferença entre a rede pública e a rede privada".
Esperança no futuro e pé no chão para construir no presente
Questionada sobre o resultado da esquerda no processo eleitoral de 2020, Ana nem pensa muito para responder que foi vitorioso. Para ela, a transição geracional começou, sente que as gerações mais velhas estão passando o bastão e cabe aos jovens - mesmo os muito jovens - assumir a tarefa de agora em diante. Ainda que fora da Câmara, ela vai dar continuidade ao processo que começou com a candidatura. "Hoje a minha principal luta é recuperar a concepção de Educação Pública enquanto pilar essencial e fundamental de um Estado de Direito".
Mesmo com toda essa consciência e experiência política, Ana Júlia é uma "jovem normal", se é que se pode qualificar assim. Além de trabalhar, estudar muito e se dedicar à construção de base do PT, ela tem uma vida de uma guria de 20 anos. Não gosta de balada, mas de barzinho. Viciada em filmes da Disney e devoradora de livros, ela sabe que esse tino para a política não é comum e torce o nariz quando dizem que "jovem não se interessa". "É importante entender que as pessoas trabalham, estudam, e não é todo mundo que tem tempo de se dedicar à política. Não é todo mundo que tem condições, não é todo mundo que gosta, não é todo mundo que quer. A juventude tem falado sobre e tem se interessado. Pode ser que não fiquem várias horas em palestra e formação ou construindo um partido, mas tem discutido. A juventude se interessa por política como qualquer outro setor da sociedade".
Ana sabe que a luta por um mundo menos desigual não começou hoje, tampouco terminará em breve. E tem consciência de que a construção da base é o mais importante e que esse trabalho é longo e feito aos pouquinhos, a partir da conversa com milhares e milhares de pessoas. "Outra coisa que a gente precisa entender é que todo e qualquer movimento social precisa de uma conjuntura, de um momento que favoreça ele despontar. Ninguém vai estar fervendo o tempo todo, 365 dias ao ano fazendo coisas e chamando ato. Vai ter que acontecer alguma coisa em algum momento, seja pro bem ou pro mal, que vai fazer todo mundo se revoltar. É esse o rolê, tem que ter um contexto social, uma conjuntura que favoreça. Se não tiver, sinceramente, as pessoas precisam colocar comida na mesa, precisam terminar sua faculdade, precisam terminar o Ensino Médio. Não dá pra ficar sonhando que vai estar todo mundo envolvido na política, porque não vai".
Quando Ana começou a militar, o Brasil já estava sofrendo um golpe, toda a trajetória dela foi forjada neste que é um dos momentos mais conturbados da nossa história. E se o desafio das esquerdas é se fortalecer para conseguir construir uma frente ampla em 2022, são jovens como ela que estão lá na base, trabalhando para mudar esse quadro.
Questionada sobre qual o próximo passo agora, ela nem respira para responder que o objetivo é reconstruir a Juventude do PT e fortalecer os movimentos sociais. "A gente tem que rodar o estado do Paraná, rodar Curitiba inteira, todos os bairros, vilas, conhecer todo mundo, conversar. A minha expectativa é muito de que abre uma porta imensa pra gente construir um movimento de juventude muito, muito lindo. E de uma juventude politizada, que participa, que pensa proposta, que coloca a política em prática", diz com empolgação.
Em seu livro "O que é uma revolução?", o ex-vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera destaca que "se há algo que caracteriza um processo revolucionário é a incorporação rápida e crescente de pessoas de diversas classes sociais na participação dos assuntos púbicos de uma sociedade". No que depender da disposição de Ana Julia, e dessa geração que nasceu da luta nas ruas, o processo revolucionário está garantido. A transição está acontecendo e, como dizem os amantes do futebol "a base vem forte".
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