Para sempre vivas
Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade
É muito significativo que o primeiro sistema agrícola tradicional brasileiro reconhecido pela FAO (agência das Nações Unidas que cuida da alimentação e da agricultura) tenha sido o das apanhadoras de sempre-vivas da Serra do Espinhaço, no norte de Minas Gerais. As sempre-vivas são plantas que, mesmo depois de coletadas, preservam suas cores e são usadas na decoração e confecção de artesanato. Mas as verdadeiras sempre-vivas são essas mulheres que, apesar de todas as dificuldades, garantem que esse sistema exista e persista.
No dia 11 de março, o reconhecimento do Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço como Sistema Agrícola Tradicional Globalmente Importante (GIAHS, na sigla em Inglês) foi formalizado pela FAO, numa cerimônia no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Na Serra do Espinhaço, no coração do semiárido mineiro, a coleta de sempre-vivas é feita primordialmente por mulheres. Elas fazem parte de seis comunidades, entre quilombolas e descendentes de povos indígenas, que realizam essa atividade há muito tempo, em conjunto com um sistema de quintais, roças e criação de gado em terras comuns. Cerca de 90 espécies são cultivadas nesse sistema, que inclui ainda a coleta, além das sempre-vivas, de frutas, sementes e plantas medicinas. A manutenção dessa agrobiodiversidade depende da transmissão intergeracional do material genético, constantemente cultivado, selecionado e manejado, bem como dos saberes ligados a essas plantas. Ou seja, é graças a essas mulheres, sempre-vivas e sempre dispostas a viver e a lutar, que o sistema agrícola tradicional das apanhadoras de sempre-vivas foi reconhecido pela FAO.
As apanhadoras de sempre-vivas estão agora ao lado dos outros 59 sistemas agrícolas tradicionais no mundo reconhecidos pela FAO como GHIAS. Há sistemas tradicionais de cultivo de arroz, na China; oásis do Magreb, no norte da África; sistemas pastorais dos Maasai, no Quênia e na Tanzânia; sistemas de produção de tâmaras, no Egito; sistemas de vinícolas e oliveiras na Itália, entre muitos outros (veja a lista completa). Na América Latina, o sistema agrícola das apanhadoras de sempre-vivas é o quarto a ser reconhecido, ao lado do sistema agrícola de Chiloé, no Chile; do sistema agrícola andino no Corredor Cuzco-Puno, no Peru; e do sistema agrícola de Chinampas, na cidade do México.
No Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) também reconhece sistemas agrícolas tradicionais como parte do patrimônio cultural do país. Dois sistemas já obtiveram esse registro: o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (AM), em 2010, e o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP), em 2018.
Para o ISA, o reconhecimento dos sistemas agrícolas tradicionais como patrimônios culturais tanto do Brasil como do mundo tem um componente extra. Foi a sócia fundadora da organização, Juliana Santilli, que nos deixou em 2015, que promoveu essa ideia no Brasil e plantou a semente desse reconhecimento junto a diversas comunidades, incluindo as do semiárido de Minas Gerais. O que vemos agora germinar e florescer são as sementes deixadas por ela. Juliana Santilli, sempre-viva.
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