Colômbia: Anistias para os paramilitares e mão dura para as Farc?: a dupla moral do uribismo

Colômbia: Anistias para os paramilitares e mão dura para as Farc?: a dupla moral do uribismo

Resumen Latinoamericano*, 20 de março 2019.

Por Santiago Valenzuela A

Fizemos um paralelo entre os pontos que Duque quer mudar na JEP e o que Uribe fez com o processo de Justiça e Paz, onde não se privilegiou a verdade.

"Queremos alcançar uma paz bem feita e que nos una. Queremos eliminar a ideia de amigos e inimigos da paz". Estas são as frases que o presidente Iván Duque usa para justificar as objeções que apresentou ante o Congresso para modificar alguns pontos da Jurisdição Especial para a Paz [JEP]. Que quer dizer Duque com uma paz bem feita e que nos una? A resposta, por enquanto, é que Duque quer uma paz na qual a verdade não esteja no primeiro plano, como sucedeu com a Lei de Justiça e Paz. Uma paz que seja dura com as Farc porém não com outros atores do conflito.

Quais são as mudanças que Duque propôs? Em resumo, os seguintes: primeiro, que a JEP defina de maneira clara a obrigação dos vitimários de reparar integralmente as vítimas; segundo, que se determine as competências do Alto Comissionado para a Paz para verificar as listas das pessoas que se submetam ao Acordo e evitar 'penetras'; terceiro, que não se suspendam as atuações da justiça ordinária para os comparecentes da JEP -isto é, que a Promotoria siga em de investigações relacionadas com o conflito-; quarto, que os crimes de lesa-humanidade -como o sequestro ou os massacres- sejam julgados e que existam sanções tangíveis; quinto, que o Tribunal de Paz da JEP não possa praticar provas, fazendo ênfase na extradição; e sexto, que se definam os termos para que se condicione uma extradição se o comparecente aceita contar a verdade.

Estes são os pontos, grosso modo. Se bem que é certo que, para que Duque saia vitorioso e a JEP seja modificada, tem que se levar a cabo um processo espinhoso no Congresso, o preocupante é a visão de paz que o presidente e seu partido, o Centro Democrático, estão tratando de posicionar. Uma paz que se enfoca em julgar as Farc e que poderia evitar a verdade de altos mandos militares. Algo assim como o que sucedeu com a Lei de Justiça e Paz, que acolheu a mais de 31.671 desmobilizados do paramilitarismo e que teve uma porcentagem de rearmamento de 30%, ademais de uma dívida gigante de reparação com as vítimas.

Em !Pacifista! analisamos os pontos que Duque quer mudar à luz do que diziam os Acordos de Justiça e Paz. O paradoxo é que desta vez o presidente e seu partido estão pedindo "sentenças exemplares" para as Farc em certos casos, como os delitos sexuais, quando o mesmo Álvaro Uribe aceitou um marco de justiça transicional com os "paras" que alguns membros receberam oito anos de prisão por este tipo de delitos sempre e quando se desmobilizassem. A seguir lhes apresentamos o comparativo.

1. Reparação às vítimas

O que diz Duque

O presidente Iván Duque objetou o artigo 7 da lei Estatutária da JEP porque, segundo ele, não se "estabelece de maneira clara a obrigação principal dos vitimários reparar integralmente às vítimas. Os colombianos devemos ter claro a importância de precisar que os vitimários devem promover uma reparação material com seus bens e ativos que satisfaça às vítimas". Disse isto apesar de que no Ato Legislativo 01 -que define o marco do Acordo de Paz- fica claro que o Estado deve garantir uma reparação integral e que se terão em conta medidas de "indenização, restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição".

Que passou com as vítimas em Justiça e Paz?

Primeiro, houve uma desordem institucional que entorpeceu a atenção às vítimas. De acordo com a investigação Participação das vítimas na Lei de Justiça e Paz e a Corte Penal Internacional, publicado pela Agência de Cooperação Internacional Alemanha -GIZ-, houve diferentes mandatos que ficaram no ar devido a desordem entre a Comissão Nacional de Reparação e Reconciliação [CNRR], a Defensoria do Povo e a Procuradoria Geral da Nação [PGN]. Toda esta desordem logística ficou em evidência quando chegou a hora em que as vítimas deviam participar.

"Este fato se vê confirmado com as estatísticas do mês de março de 2011 da Promotoria Geral da Nação, segundo as quais até então 25.601 vítimas realizaram 31.865 perguntas aos postulados nas versões livres. No entanto e considerando que existem mais de 320.000 vítimas registradas no Processo de Justiça e Paz, se pode ressaltar que somente uma parte marginal do número total de vítimas chega a exercer seu direito a assistir às versões livres e a participar ativamente nelas".

Por outro lado, diferentes acadêmicos questionaram a ausência de verdade no processo de Justiça e Paz. Um deles é, curiosamente, Francisco Barbosa Delgado, hoje alto conselheiro presidencial de direitos humanos de Iván Duque. Em 2017, Barbosa disse o seguinte: "a lei 975 [de Justiça e Paz] rompeu um equilíbrio apropriado em termos de flexibilidade dentro de um marco de justiça transicional e mais que um mecanismo de negociação foi um instrumento de submissão que não produziu resultados no âmbito da justiça transicional em termos de verdade, de garantias de não repetição, nem de reparação integral para as vítimas'.

Em Justiça e Paz não foi uma prioridade o restabelecimento de propriedades nem de terras usurpadas ou despojadas à população rural e urbana do país.

Recentemente, ademais, o Centro Internacional de Toledo para a Paz [CITpax], da Faculdade de Ciências Políticas e Relações Internacionais da Universidade Javeriana,

publicou um estudo em que assinala que a verdade que os vitimários aportaram em Justiça e Paz foi insuficiente. As versões, assinalam, negou às vítimas "a possibilidade de controverter o relato, privilegiando a versão do condenado". Por outro lado, a investigação concluiu que, de 6.928 fatos julgados, só em 849 se realizou uma identificação total dos autores materiais. Isto corresponde a 12% dos fatos investigados. Ademais, em 3.097 sentenças não ficaram claros os apelidos nem os nomes dos acusados.

Segundo o CITpax, em 3.032 fatos a qualidade dos achados judiciais foi "baixa", em 3.076 "média" e em 90 "alta". Tendo em conta que existiam alianças comprovadas entre grupos paramilitares e grêmios como o pecuarista, de transporte e o arrozeiro, é preocupante que as investigações se tenham ficado em achados judiciais menores, prejudicando inclusive os processos de restituição de terras e reparação a vítimas. De todo este processo se desprende uma cifra preocupante: de 576 acusações contra terceiros -empresários, civis, políticos- só se abriram 191 investigações.

O Centro Nacional de Memória Histórica, depois de avaliar os resultados do processo de paz com os "paras", concluiu que este "se fundamentou em pressupostos de conveniência política que terminaram viciando um esforço institucional que pôde ter sido muito efetivo [...] As vítimas nunca tiveram um papel preponderante no marco de Justiça e paz". Houve, na opinião do Centro, "negligência das instituições que deu lugar a um cenário muito desfavorável para os interesses das vítimas".

As cifras da própria Promotoria dão razão ao Centro Nacional de Memória Histórica. Segundo um informe publicado em junho de 2017, os fatos radicados ante os tribunais de Justiça e Paz ascendiam a 22.374 e o número de vítimas dos "paras" chegou a ser de 49.398 pessoa. Do total de vítimas registradas, 28.055 receberam medidas de reparação, segundo a Promotoria. Isto quer dizer que,

pelo menos 10 anos depois, mais de 20.000 vítimas seguem esperando uma reparação.

E os bens dos "paras"?

O presidente Iván Duque pediu reparação para as vítimas das Farc porém em nenhum momento se perguntou sobre a pobre reparação que veio depois do processo de Justiça e Paz. De acordo com a investigação 'E a terra onde está? Versões dos paramilitares sobre terra-território e entrega de bens para a reparação das vítimas no marco do processo de Justiça e Paz em Colômbia', de John Jairo García e publicado pela Universidade Nacional, em Antioquia 15.473 pessoas foram despojadas de suas terras pelo paramilitarismo entre 1997 e 2007. Até o momento não existe certeza sobre a restituição de terras dos "paras" nesse estado, pois, como explica García, em Justiça e Paz, "não foi uma prioridade o restabelecimento de propriedades nem de terras em particular usurpadas ou despojadas à população rural e urbana do país. Tampouco se promoveu a recomposição das relações sócio-territoriais numa perspectiva de reparação que envolve o território e a cultura".

Neste aspecto a ineficiência estatal foi evidente. De 24.000 solicitações de proteção de bens que tinha a Superintendência de Notariado e Registro em 2008, resolveu cerca de 1.000.

2. Evitar aos penetras

O que Duque quer

O governo quer evitar que outras pessoas alheias ao conflito armado ou que não se submeteram ao Acordo de Paz passem pela JEP. Por isso Duque objetou um inciso do Artigo 63 para deixar claro que somente o Alto Comissionado para a Paz pode verificar a lista de ex-combatentes que se submeteram à justiça transicional.

O que passou em Justiça e Paz

No processo de paz com os paramilitares, diferentes narcotraficantes compraram franquias das Autodefesas

Unidas de Colômbia [AUC] para serem incluídos como "paras" e receberem benefícios judiciais como anistias.

Está, por exemplo, o caso de Francisco Zuluaga Lindo, vulgo 'Gordolindo', narco que se infiltrou no processo de paz, se fazendo passar como 'comandante do bloco Pacífico'. Ainda que utilizava as autodefesas para traficar droga, não fazia parte de sua estrutura política ou financeira. 'Gordolindo' passou despercebido no governo de Álvaro Uribe e foi só em 2014 que a Corte Suprema de Justiça ratificou sua exclusão de Justiça e Paz. Ademais de 'Gordolindo', os narcotraficantes Víctor Manuel Mejía e Miguel Mejía também utilizaram o processo de Justiça e Paz para intentar evitar a extradição.

3. Dar o poder à Promotoria

O que Duque quer Duque

Ainda que o Acordo de Paz não contempla que cessem as investigações da Promotoria nos casos do conflito armado com as Farc, Iván Duque objetou um ponto da Lei Estatutária da JEP ao considerar que se deve determinar com precisão a tarefa da Promotoria para garantir o direito à verdade.

O que passou em Justiça e Paz

Antes, quando se levou a cabo o processo de paz com os paramilitares, não existia uma entidade como a JEP. As investigações ficaram a cargo da Unidade Nacional da Promotoria para a Justiça e a Paz e os julgamentos em mãos dos tribunais superiores de distrito judicial em primeira instância e à Corte Suprema em segunda instância. Neste contexto foi que se estabeleceu que os vitimários não tiveram que confessar senão que render "versões livres" sobre os fatos dos quais se lhes acusava. Nessa época Uribe foi duramente questionado, pois uma versão livre não tem a mesma hierarquia ética nem a mesma eficácia que a confissão, o que pôs em risco, e ao final vulnerou, o direito das vítimas a conhecerem a verdade.

Em Justiça e Paz, diferentes narcotraficantes compraram franquias para serem incluídos como paramilitares e receberem benefícios judiciais.

Com a Promotoria encarregada se apresentaram centenas de problemas. Na Lei de Justiça e Paz, por exemplo, se limitou a 60 dias o prazo que a Promotoria tinha para investigar os delitos que os desmobilizados aceitaram, colapsando o aparato judicial. O processo de seleção também foi criticado, pois houve todo um entrave burocrático que retardou os processos de julgamento. O governo nacional devia enviar umas relações à Promotoria, entidade que assumia as investigações e agendava as versões livres. O estudo de CITpax assinala justamente que de 210 integrantes do Exército que foram mencionados, só 54% foram identificados posteriormente.

4. A extradição

Lo que quiere Duque

O presidente objetou o Artigo 153 da Lei Estatutária pois, a seu ver, é inconveniente porque "condiciona a extradição de outras pessoas ao oferecimento da verdade sem estabelecer nenhum tipo de termo nem oportunidade para fazê-lo. Isto produz um incentivo perverso para o ingresso de terceiros na JEP sob a roupagem de supostos oferecimentos de verdade. Essa ambiguidade pode ser utilizada para evitar responsabilidades ante a Justiça de outros Estados".

O que passou em Justiça e Paz

Em 27 de setembro de 2004, o jornal El Tiempo revelou uma "agenda secreta" nas negociações com os paramilitares. Nas referidas gravações ficou em evidência que o governo estava disposto a utilizar certos poderes para evitar a extradição dos chefes máximos paramilitares e impedir que fossem julgados pela Corte Penal Internacional. Nessa época também veio à luz que Don Diego, chefe do Cartel do Norte del Valle, havia

comprado o Bloco Heróis de Rio Negro para poder participar nas negociações com o governo.

Mais adiante, quando já se estava implementando a Lei de Justiça e Paz, o governo de Álvaro Uribe utilizou a extradição como mecanismo de pressão contra os chefes paramilitares que não estavam colaborando com a justiça. No entanto, desde a oposição ficou a sensação de que a extradição dos chefes máximos das AUC ocultava a verdade que poderia ser alcançada e privaram tanto às vítimas como às autoridades judiciais de saberem a fundo o que se passou na etapa mais crua do paramilitarismo.

Duque parece esquecer que a Lei de Justiça e Paz permitiu que ex-paramilitares que cometeram delitos sexuais obtiveram penas alternativas

Em maio de 2008 se fez efetiva a extradição de 14 chefes paramilitares por narcotráfico, um ato questionado pelas associações de vítimas, pois ficava em evidência que se sacrificava a verdade como principal elemento de justiça.

5. Delitos por violência sexual

Uma das pretensões de Duque ao pedir a reforma do Ato Legislativo 01 é que os delitos sexuais no marco do conflito não possam ser anistiáveis. Duque parece se esquecer que a Lei de Justiça e Paz permitiu que ex-paramilitares que cometeram delitos sexuais obtiveram penas alternativas. Em 2011, a Sala de Justiça e Paz do Tribunal Superior de Cundinamarca condenou três desmobilizados do Bloco Vencedores de Arauca a oito anos de cárcere pelos delitos de abuso sexual, homicídio, desaparecimento e sequestro. Um deles foi José Rubén Peña Tobón, vulgo 'Lucho', quem violou a duas menores na corregedoria o Caracol, do município de Tame, Arauca. Dois paramilitares mais obrigaram as jovens a ter relações sexuais com eles.

Depois de analisar este problema, a organização Women's Link Worldwide assinalou que com a JEP se poderia ter mais celeridade na investigação desses casos -segundo a Coalizão contra a violação de meninos, meninas e jovens

ao conflito armado em Colômbia, existem 48.915 vítimas de violência sexual a menores de 18 anos no marco do conflito armado-, pois com o marco de Justiça e Paz as sentenças poderiam tardar 73 anos em serem emitidas.

Duque [e seu partido] falam de eliminar a ideia de amigos e inimigos da paz. Porém parece que suas objeções à Lei Estatutária da JEP nos acercam muito mais ao cenário que nos deixou Justiça e Paz, onde as mais prejudicadas foram as vítimas: um cenário bastante distante de qualquer "paz bem feita".

Tradução > Joaquim Lisboa Neto

Pacifista.tv

 


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