É hoje claro que a erosão da superpotência norte-americana permitiu a emergência de um mundo multipolar, o mundo multipolar pelo qual o general de Gaulle tanto clamava. É também claro que essa emergência absolutamente não implica que os EUA tenham perdido toda a capacidade para intervenção militar pelo mundo. O ataque contra a Síria, da noite de 6-7 de abril aí está como mostra. Essa emergência demonstra também os impasses do unilateralismo norte-americano.
7/4/2017, Jacques Sapir, Russeurope, Hypotheses
A emergência de um mundo multipolar não é fruto do acaso, mas de mudanças importantes que aconteceram na ordem das nações já agora há uns trinta anos; do encontro de projetos políticos convergentes, e em especial dos projetos de Rússia, China, Índia, mas também do Irã e de potências regionais; assim como também é fruto de erros cometidos na política norte-americana, seja do governo Clinton, ou de George W. Bush. Já mostrei, em livro de 2009.a lógica desse processo. Os acontecimentos das últimas horas exigem que se volte àqueles pontos.
A degenerescência da hiperpotência norte-americana
A forma que a emergência de mundo multipolar assumiu deve também muito à obsessão dos EUA, que se recusaram obcecadamente a que o mundo multipolar brotasse de modo consensual e coordenado. É a origem da ideologia que se conhece como "neoconservadorismo", e que tem origem na reunião de uma parte da 'esquerda' norte-americana com posições tradicionais da 'direita imperialista', mas que outras vestes a todos esses grupos. O "neoconservadorismo" ou "neocon" é na realidade um modo de justificar as piores posições do mais feroz imperialismo, como se fossem adotadas para defender "direitos humanos".
De fato, todas as condições para que emergisse um "século norte-americano", pelo molde do que se chamou o "século britânico", desde o fim das guerras napoleônicas até o início do século 20, pareciam estar reunidas na primeira metade dos anos 1990. As elites europeias haviam subido ao palco em sua grande maioria e punham-se deliberadamente no seio do quadro ideológico desenvolvido pela hiperpotência, termo criado por Hubert Védrine. A vitória rápida e fácil na Guerra do Golfo de 1991, em resposta à invasão do Kwait pelo Iraque, teve efeitos imediatos sobre as representações norte-americanas. O presidente à época, George H. Bush, compreendeu-o tão bem, que disse: "Por Júpiter! Dessa vez sacudimos mesmo a Síndrome do Vietnã, de uma vez por todas".
Contudo, em poucos anos esse "século norte-americano" que se anunciava já estava acabado. Uma das razões estava, é claro, em problemas internos dos EUA, e nas diferentes crises econômicas que aquele país conheceu, das Caixas de Poupança (que custou a reeleição ao pai de George Bush) à crise que marcou os dois mandatos do Bush filho (eclosão da 'bolha' internet e a crise das hipotecas podres). Temos assim diante dos olhos uma potência esgotada - na qual o problema da mortalidade da classe média "branca" de 50 anos impõe-se tragicamente. Essa potência, e acabamos de ver, com o ataque de mísseis cruzadores contra a Síria, conserva capacidades militares importantes, mas perdeu grande parte da capacidade para influenciar.
Uma das razões de ter perdido a capacidade para influenciar foi a instrumentalização da questão dos "direitos do homem", particularmente na Bósnia, instrumentalização que contribuiu largamente para criar uma nova ideologia, chamada "direitos-do-homista" [fr. "droit-de-l'hommiste"], que na realidade é o exato contrário da noção de "Direitos do Homem" como o conceito emergiu da 2ª Guerra Mundial e do Tribunal de Nuremberg.
A loucura: ação "humanitária" armada
Além de sempre haver tantas dúvidas sobre o emprego da força, e todos lembrarmos como os EUA se expuseram ao ridículo na ONU com o discurso de Colin Powell sobre as "armas de destruição em massa" que haveria no Iraque, também a efetividade do uso da força, no longo prazo, é muito duvidosa. O exemplo da Bósnia, mas sobretudo do Kosovo, tem de ser mencionado aqui como exemplo do que não se deve fazer. Note-se também que já em 2013, o centro de análise das armas de destruição em massa do MIT pôs em dúvida, sem que ninguém o tenha refutado, o discurso oficial que declarava o governo sírio responsável pelo ataque com armas químicas que aconteceu na periferia de Damasco.
A capacidade da "comunidade internacional" para "intervir por motivos humanitários", especialmente no caso do Kosovo, e de fazer o político ser absorvido e desaparecer sob o humanitário converteu-se, naquela ocasião em desastre. O objetivo afirmado inicialmente, que seria de impedir políticas ativas de segregação étnica (chamadas também "políticas de limpeza étnica"), contra a qual todos nos pomos naturalmente contra, jamais foi alcançado. Na realidade, a intervenção da OTAN, longe de pôr fim à limpeza étnica que se denunciava, apenas substituiu as forças sérvias por milícias falantes de albanês. Há incontáveis provas dessa verdade, tão pouco recomendável para a "propaganda" midiática que tudo foi cuidadosamente ocultado da opinião pública francesa.
Os massacres intercomunidades não cessaram com a partida das tropas sérvias, e continuaram depois do 12 de junho de 1999, prova de que os massacres não eram o único produto da presença militar sérvia. No período de um mês, mais de um milhão de sérvios e romenos [roms em fr.; rromi em romeno, também chamados "ciganos"] foram "desaparecidos" no território que estava (estaria) sob controle das forças da ONU, e ante os olhos horrorizados de militares do país que haviam constituído o contingente da ONU ("Kosovo Forces", KFOR). Sequestros, assassinatos e, de modo geral, atos de violência de bandos organizados cometidos pelos milicianos da UCK, a principal milícia falante do albanês, estenderam-se a outras populações durante o verão de 1999. Foram alvos os muçulmanos falantes de outros idiomas que não o albanês, as minorias croata e turca que viviam no Kosovo. Essas violências levaram mais de 150 mil pessoas a fugir para a Sérvia ou para a Macedônia, nas seis semanas que se seguiram aos deslocamentos de tropas da KFOR no Kosovo. Além desses deslocamentos, estima-se que cerca de 100 mil outras pessoas refugiaram-se nos enclaves sérvios do norte do Kosovo no mesmo período. Assim, assistimos a uma verdadeira "limpeza étnica" feita pelas milícias do UCK, quando se esperava que a KFOR controlasse o território para assegurar a "paz étnica".
Essas violências, desgraçadamente, não se limitaram às poucas semanas depois da partida das tropas sérvias e da chegada da KFOR internacional. Depois que os combatentes do Exército de Libertação do Kosovo [ing. KLA; albanês UCK] entraram massivamente no Kosovo Protection Corps que foi criado sob a égide da ONU, os ataques étnicos tomaram outra feição - estupros coletivos principalmente de mulheres da comunidade romena. A Organização Human Rights Watch, que recolheu depoimentos muito numerosos sobre esses casos, observa também que as violências atingiam também falantes de albanês cujas posições mais moderadas contrariavam as do UCK.
Longe de conduzir a uma situação de "paz étnica", objetivo declarado, a intervenção da OTAN só fez portanto ampliar e deslocar para outros alvos o movimento de 'depuração' étnica e os massacres de civis. O Kosovo continuou, sob administração da ONU, uma zona sem lei, área de 'não lei'. Pode-se assim, sob vários pontos de vista, falar de "contramodelo", no que tenha a ver com apoio militar dado a uma causa dita "humanitária". As condições de gestão pela ONU, do Kosovo, especialmente sob o mandato de Bernard Kouchner cuja responsabilidade nesses eventos foi direta, revelaram-se problemáticas. A acreditar-se nas testemunhas e em matéria publicada num grande diário britânico em março de 2000, o engajamento sabido de Kouchner a favor do UCK provavelmente facilitou as derivas - observadas e denunciadas em relatório da ONU - do comportamento da força policial, a KPC, criada pela autoridade da ONU no Kosovo.
Bases da posição russa
Desde 1997, até o discurso que fez na Conferência de Munique dia 10/2/2007 sobre segurança internacional, Vladimir Putin sempre afirmou muito claramente a ideia de que esse mundo multipolar nasceu do fracasso do mundo que deveria logicamente ter brotado do 1991 a que assistimos.
É preciso lembrar que a política de Vladimir Putin para os EUA no início de seu primeiro mandato presidencial (2000-2004) jamais foi política de confronto. Foi política de riscos calculados. A escolha do presidente da Rússia, quando a Rússia estava isolada na oposição à intervenção pela OTAN no Kosovo, não foi simples. De outro lado, os EUA, a partir de 2001, desmontaram unilateralmente vários acordos que haviam garantido a estabilidade durante a Guerra Fria, especialmente o tratado dos mísseis antibalísticos (MAB), cuja importância para a Rússia não se deve subestimar. Ao mesmo tempo, os EUA tinham política no mínimo condescendente em relação ao regime dos Talibã no Afeganistão, apesar das informações que permitiam provar que o país se convertera em uma das bases de suporte do terrorismo islamista e da desestabilização da Ásia Central. Essa complacência era ditada, em grande parte, pela vontade dos EUA de penetrarem nas regiões petroleiras da Ásia Central.
Vladimir Putin, por seu lado, compreendeu imediatamente que o choque simbólico, emocional do 111/9/2001 poderia levar os EUA a revisar sua política. O apoio instantâneo que deu à reação dos norte-americanos visava a convencê-los a se engajarem num movimento multinacional de luta contra o terrorismo e suas raízes, o que permitiria à Rússia sair de seu isolamento. Ao favorecer a implantação de forças militares norte-americanas na Ásia Central, decisão que colocava Putin em oposição aos seus próprios conselheiros militares, cuja resistência era pública, Vladimir Putin procurava criar condições para uma ação conjugada e coordenada para estabilizar aquela parte do mundo, sublinhando a comunidade de interesses entre os diferentes atores, incluídas China e Europa, nesse ponto.
A resposta dos EUA à mão que Putin lhes estendeu foi decepcionante. Longe de compreenderem a importância de uma ação multilateral coordenada, inserida na legitimidade de Resoluções da ONU, o presidente dos EUA preferiu via inquietante, do ponto de vista russo, de evidente aventureirismo militar. As ações norte-americanas abertamente hostis à Rússia, fosse na Ucrânia ou no Cáucaso, multiplicaram-se. À mão estendida de Putin, os EUA responderam, a partir de 2003, com práticas de guerra fria. Ao fazê-los confirmaram que os dirigentes russos não se enganavam em seus temores iniciais; e mostraram-se incapazes de adaptar-se ao novo mundo.
Fundamentos da oposição entre Rússia e EUA
A chegada de Primakov ao poder em 1998, depois a de Putin em 2000 haviam reiniciado nos EUA o debate sobre "a perda da Rússia". A volta a uma retórica e a ações dignas da guerra fria, como se vê hoje no projeto de instalar sistemas norte-americanos antimísseis em países como Polônia e na República Tcheca, marca o fim das tentativas de integração.
A criação da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) em 2001 e sobretudo sua ampliação, alcançando o status de observador da Mongólia em 2004, depois da Índia, do Irã e do Paquistão em 2005, também foram movimentos importantes. As manobras militares sino-russas de 2005, que viram unidades de um dos países operando a partir do território do outro, para testar o que se chama "interoperabilidade", manobras marcadas pela presença de observadores indianos e iranianos, foram manifestação muito significativa do crescimento, em influência e poder, da nova instituição.
A OCX afirmou-se como coluna vertebral dos BRICS, e viu seu papel crescer e incluir também cooperação política e econômica Hoje, é a expressão mais tangível da afirmação de um mundo multipolar.
Os princípios de gestão para mundo multipolar
Para começar, esse mundo multipolar poderia ser gerido em espírito de cooperação entre as diversas potências, se os EUA concordassem com abandonar suas pretensões de impor, em vez do Direito Internacional, o Direito dos EUA.
Convém reler com atenção o discurso de Vladimir Putin em 2007. É a mais precisa definição do que os russos veem como relações internacionais. Dois pontos importantes saltam aos olhos: a constatação do fracasso do mundo unipolar; e a condenação de qualquer tentativa para submeter o Direito Internacional ao Direito Anglo-norte-americano:
"Entendo que o modelo unipolar não é apenas inaceitável; é também impossível, no mundo de hoje (...). O próprio modelo é falhado, porque não há nem pode haver lugar nesse modelo para os fundamentos morais sobre os quais se pode erguer a civilização moderna (Vladimir Putin, 10/2/2007, 43ª. Conferência de Segurança de Munique).".
Essa passagem mostra que a posição russa articula dois elementos distintos, mas ligados. O primeiro é uma dúvida quanto às capacidades de um país (aqui, o alvo é claramente os EUA0) para reunir os meios necessários para exercer de modo eficaz a própria hegemonia. É argumento de realismo. Nem mesmo o país mais poderoso e mais rico pode, sozinho, assegurar a estabilidade do mundo. O projeto norte-americano ultrapassa as forças norte-americanas. É constatação na qual não há o que corrigir. Mas há um segundo argumento não menos importante e que se situa no plano dos princípios do Direito.
Vladimir Putin afirma que não há leis e normas sobre as quais firmar o unipolarismo. Em sua obra de 2002, Evgueni Primakov dizia, na verdade, exatamente isso.
O "discurso de Munique" de 2007 inscreve-se assim na continuidade do pensamento à russa, do mundo; no modo como os dirigentes russos pensam o mundo. Não implica que diferentes países não possam definir interesses comuns. Não implica dizer tampouco que não haja valores comuns. O discurso de Putin não é "relativista". Simplesmente constata que esses valores (que Putin chama de "base moral e ética") não pode absolutamente servir de base à unipolaridade, porque o exercício do poder, político ou econômico, não de ser definido só em valores: tem de ser definido também em interesses.
É recusar a tese de que relações internacionais devam ser 'despolitizadas', que se devam reduzir, no modo como as veem os defensores dessa 'despolitização', aos "direitos humanos" e às "leis" da economia. Se as relações internacionais não são questão de "técnica" (simplesmente pôr em ação normas comuns), mas de política (a gestão de interesses diferentes e potencialmente conflituais) inclusive nas relações econômicas, a única conclusão possível é que a hegemonia é imoral.
O segundo ponto já aparece expresso no parágrafo seguinte: "Vemos desdém crescente e crescente pelos princípios básicos da lei internacional. E normas legais independentes estão, de fato, chegando cada vez mais próximas de ser o sistema legal de um só estado e sempre, e cada vez mais, dos EUA, que já extravasaram para fora de suas fronteiras nacionais por todas as vias imagináveis. É visível nas políticas econômicas, políticas, culturais e educacionais que os EUA impõem a outras nações.(Vladimir Putin, 10/2/2007, 43ª. Conferência de Segurança de Munique).
O argumento aqui acompanha o que evocamos acima. Sem base moral e ética que permita deixar desaparecer a política das relações internacionais, elas não podem ser administradas senão pelo princípio do Direito Internacional, vale dizer, pela regra da unanimidade e do respeito das soberanias nacionais. Ora, constata o presidente russo, os EUA tendem a transformar seu direito nacional interno em direito internacional alternativo. Assim, o enfrentamento é tornado inevitável.
Aí está a razão que explica em grande parte que, por hora, o enfrentamento impõe-se sobre a cooperação. E deve-se observar que nesse enfrentamento a Rússia pode contara com o apoio da China, potência cujo PIB que há bem pouco tempo ultrapassou o dos EUA. Nesse enfrentamento, o "campo ocidental", expressão típica da guerra fria, aparece fraturado, mas também desnorteado, perdido diante da maré montante das novas potências. Mas se os EUA voltassem a uma filosofia mais "vestfaliana" das relações internacionais, nesse caso nada impediria que a cooperação conseguisse impor-se ao enfrentamento.