Para o arquiteto do euro, afastar os políticos eleitos para bem longe das questões macroeconômicas e forçar a desregulação eram parte do plano.
A ideia de que o euro tenha 'fracassado' é perigosamente ingênua. O euro está fazendo exatamente o que seu criador - e os 1% mais ricos que o adotaram - previu que ele faria e o planejou para fazer.
O 'pai' do euro é o economista Robert Mundell, que trabalhou na Universidade de Chicago. O arquiteto da "economia pelo lado da oferta", é hoje [esse artigo é de 2012 (NTs)] professor na Universidade Columbia, mas eu o conheci através do meu professor em Chicago, Milton Friedman, muito antes de as pesquisas de Mundell sobre moeda e taxas de câmbio terem gerado os esboços iniciais do que viria a ser uma união monetária europeia e uma moeda comum europeia.
Naquela época, Mundell estava mais preocupado com o banheiro de sua casa. O professor, que já tinha um prêmio Nobel e uma antiga villa na Toscana, disse-me, indignado:
"Não me deixam nem ter um banheiro. Eles têm leis, pela qual não posso pôr uma privada nesse quarto. Você pode imaginar?"
De fato, não, não posso imaginar. Mas não sou proprietário de villa italiana e, pois, não posso imaginar as frustrações geradas por regulações sobre instalações domésticas naquela parte do mundo.
Mas Mundell, canadense-norte-americano do tipo eu-quero-eu-faço, tinha planos para dar jeito naquilo e em toda as regras inventadas por governos e sindicatos (ele realmente odiava encanadores sindicalizados que cobravam fortunas para mover seu trono de um lado para outro).
"É muito difícil demitir empregados na Europa" - reclamava. A resposta de Mundell? O euro.
O euro só mostraria toda sua serventia em épocas de crise -Mundell explicou. Tirar dos governos a capacidade de controlar a moeda evitaria que medíocres funcionariozinhos eleitos usassem ideias monetárias e fiscais keynesianas para tirar uma nação da recessão.
"O euro põe a política monetária bem longe do alcance dos políticos" - dizia. - "[E] sem política fiscal, o único modo que resta às nações para manter os empregos é promover a redução competitiva das leis e regras sobre os negócios."
Falava de leis trabalhistas, ambientais e, claro, de impostos. Tudo desceria pela descarga do banheiro, posto fora por ação do euro. Nunca mais a democracia encontraria caminhos para intervir no mercado - ou em encanamentos de privadas.
Como observa outro ganhador de prêmio Nobel, Paul Krugman, a criação da Eurozona violou a regra básica da economia conhecida como "área monetária ótima" [ing. "optimum currency area" (OCA)].[2] O próprio Bob Mundell propusera a regra.
Nada disso perturbou Mundell. Para ele, o euro nada tinha a ver com fazer da Europa uma poderosa unidade econômica unificada. Só tinha a ver com Reagan e Thatcher.
"Ronald Reagan não teria sido eleito presidente sem a influência de Mundell",escreveu certa vez Jude Wanniski no Wall Street Journal. E a economia da oferta criada por Mundell tornou-se o modelão teórico da Reaganomics - ou, como Bush-Pai a chamava, "economia vudu": a crença mágica no feitiço dos mercados, que também inspirou as políticas da Sra. Thatcher.
Mundell explicou-me que o euro é, de fato, unha e carne com a Reaganomics:
"A disciplina monetária impõe a disciplina fiscal também sobre os políticos eleitos."
E quando surgem as crises, economias economicamente desarmadas têm pouco a fazer além de apagar leis e regulamentos de estado ou de governo em quantidades de atacado; privatizar indústrias estatais em massa, cortar impostos. E o estado de bem-estar europeu que desapareça pelo cano.
O que se vê hoje é que o primeiro-ministro (não eleito) Mario Monti está exigindo "reforma" das leis trabalhistas na Itália para que empregadores como Mundell possam demitir os tais encanadores italianos toscanos. Mario Draghi, presidente (não eleito) do European Central Bank, clama por "reformas estruturais" - eufemismo para "esquemas de arrocho para arrochar trabalhadores". Citam a nebulosa teoria segundo a qual essa "desvalorização interna" de cada nação tornará todas as nações mais competitivas.
Monti e Draghi não têm como explicar de forma que convença alguém, como, se todos os países no continente degradam a respectiva força de trabalho, alguém teria alguma vantagem competitiva.
Mas eles tampouco têm de explicar suas políticas; a única missão deles é deixar os mercados trabalharem sobre os títulos da dívida de cada nação. Quer dizer: união monetária é guerra de classes por outros meios.
A crise na Europa e as chamas da Grécia produziram o cálido brilho do que o filósofo-rei dos reaganitas & tatcheristas Joseph Schumpeter chamou de "destruição criativa". Thomas Friedman, acólito de Schumpeter e apologista do livre-mercadismo voou até Atenas para visitar o "santuário improvisado" do banco incendiado, onde três pessoas morreram depois de manifestantes anarquistas terem lançado coquetéis molotov. Ali, Friedman colheu a oportunidade para rezar sua homilia pró-globalização e de condenação eterna da "irresponsabilidade" grega.
As chamas, o desemprego em massa, a liquidação do patrimônio do estado grego, tudo isso se transubstanciaria no que Friedman chamou de "uma regeneração" da Grécia e, afinal, de toda a Eurozona. De modo que Mundell e todo aquele pessoal proprietário de villas na Toscana possam meter suas privadas e cagar onde bem entendam.
Muito diferente de ter fracassado, o euro, menina-dos-olhos de Mundell, é sucesso provavelmente ainda mais retumbante que nos sonhos mais enlouquecidos do inventor. *****
Orig. Suply-side economics - "Também conhecida como "Reaganomics" ou política econômica do 'gotejamento para baixo", defendida pelo pres. Ronald Reagan. Baseia-se na controversa ideia segundo a qual grandes cortes de impostos para investidores e empreendedores são incentivos para economizar e investir e geram benefícios econômicos que gotejariam dos mais ricos para os mais pobres e alcançariam toda a economia" [NTs, com informações de Investopedia].
"Optimum Currency Area (OCA) é uma região geográfica na qual a eficiência econômica de haver uma só moeda é maximizada" [NTs com informações de Wikipedia].
26/6/2012, Greg Palast, The Guardian (e em italiano)