O secretário de Estado anda pela região, cai em contradições e mostra a falta de uma política clara. A começar pelo Egito. Por Gianni Carta
por Gianni Carta/CartaCapital
O caos reina no tribunal onde na segunda-feira 4 haveria de começar o julgamento do ex-presidente deposto pelos militares em julho, Mohamed Morsi. A situação reflete um país à deriva. Para não dizer à beira de uma guerra civil bem parecida com aquela na Síria.
Em confrontos de rua com soldados, policiais e opositores, perderam a vida centenas de simpatizantes de Morsi e da Irmandade Muçulmana (islamitas favoráveis à Sharia, ou lei islâmica). Enquanto isso, a chamada comunidade internacional tenta tranquilizar os líderes da tumultuada região árabe. Não por acaso, um dia antes da primeira aparição pública de Morsi no banco dos réus desde o golpe, o secretário de Estado americano John Kerry fez uma visita relâmpago à capital egípcia para garantir o apoio dos EUA ao atual governo em conversa com o chanceler Nabil Fahmy.
Em seguida, Kerry partiu para a Arábia Saudita, onde Washington também tem decepcionado o rei sunita Abdullah, de 92 anos (ele diz ter 89). Entre outros motivos, Washington está a negociar com o Irã xiita e reluta em apoiar os opositores, entre eles jihadistas, de Bashar al-Assad, o déspota alauíta (seita xiita). Não faltam as contradições. Embora os apoie, os EUA reduziram a ajuda financeira aos militares egípcios que depuseram Morsi. O ex-presidente era detestado por Assad porque, se bem que sunita, sua Irmandade Muçulmana poderia competir com o fundamentalismo islâmico saudita. O malabarista Kerry garante, impávido, que os EUA protegerão aliados como a Arábia Saudita, a Jordânia e o Egito contra quaisquer ataques. Protegerão contra o Irã? Na verdade, neste atual quadro geopolítico os Estados Unidos não parecem ter uma estratégia clara e perdem terreno para os sauditas. Donde o tour de malabarismos.
No dia após a partida de Kerry para Riad, no tribunal do Cairo houve violentos embates entre advogados rivais. Incluindo ameaças de sapatadas. Jornalistas e policiais pediram em coro a pena de morte para o "traidor" Morsi. Em meio ao pandemônio, o próprio, de terno escuro sem gravata, exprimiu-se publicamente pela primeira vez desde julho, quando foi detido: "Sou o presidente legítimo deste país. Estou furioso que o Judiciário egípcio deva escamotear esse golpe de Estado". Aplausos dos demais réus, 14, ex-companheiros do ex-presidente. Deram-se novas escaramuças, e se repetiram os pedidos de pena capital. Perplexo, o juiz adiou a sessão para 8 de janeiro.
Morsi é o primeiro presidente civil e islamita eleito pelo sufrágio eleitoral na história do Egito. O presidente deposto e os 14 colegas são condenados por terem supostamente incitado simpatizantes da Irmandade Muçulmana a confrontar os manifestantes contra o regime diante do palácio presidencial em 5 de dezembro de 2012. Mais de dez pessoas morreram. Morsi também foi indiciado por ter fugido da prisão durante a insurreição para depor o então presidente Hosni Mubarak, o que não parece ser uma acusação fundamentada. Mais: ele teria, na fuga, conspirado com o movimento palestino Hamas, braço da Irmandade Muçulmana criado na Primeira Intifada dos palestinos contra Israel.
Namees Arnous, diretora-executiva da Bokra News, estação online de notícias no Cairo, disse em recente entrevista telefônica a CartaCapital que houve duas revoluções no Egito. A primeira foi para depor Mubarak e a segunda para derrubar Morsi. No entanto, o déspota Mubarak foi solto sob fiança, embora seu julgamento por corrupção continue. E, segundo relatos, muitos egípcios estão saudosos de Mubarak. Não era tão ruim assim, dizem.
Mubarak governou por 30 anos ao sabor de eleições manipuladas com o apoio dos EUA, especialmente depois que assinou o tratado de paz com Israelem 1979. Trata-se de um déspota que os líderes ocidentais hipocritamente aceitaram porque combatia a Irmandade Muçulmana e defendia Israel (algo que voltou a acontecer com o retorno dos militares). Sob Mubarak houve tortura, assassinatos e corrupção. Muita gente morreu para depô-lo no início de 2011. Quanto à segunda revolução, tratou-se de um golpe de Estado.
É kafkiana a noção de que sob o exército o Egito está em boas mãos. De saída, o governo interino militar. Por que o general Abdul Fattah el-Sisi, chefe das Forças Armadas e ministro da Defesa, formado por uma academia militar norte-americana, seria diferente de seus antecessores com os quais serviu? Entre fevereiro de 2011 e a eleição de Morsi em junho de 2012 passaram-se longos 16 meses, durante os quais os militares tratavam manifestantes com inaudita brutalidade. O exército permanece como a instituição mais poderosa do país.
Por sua vez, Morsi também foi um péssimo dirigente. Os protestos na Praça Tahrir e país afora tiveram início a partir de novembro de 2012, quando ele promulgou um decreto pelo qual conferia a si próprio direitos plenos. Alegava ter optado por uma ditadura para salvar a revolução de 2011. "E ditadores sempre se iniciam com a suposta necessidade de medidas de emergência", diz Egbert Harmsen, especialista de mundo árabe da Universidade de Leiden, na Holanda. Além disso, no campo econômico o governo revelou-se no mínimo incompetente. A taxa de desemprego hoje é de 46,4% entre jovens de 20 a 24 anos. A inflação deverá chegar a 13% neste ano.
Como se vê, tanto a Irmandade Muçulmana quanto o exército são pouco confiáveis. E é fidedigno o Judiciário que arrefece em relação a Mubarak e considera possível aplicar a pena de morte para Morsi? Se o ex-presidente for condenado, será bom para Washington, que até hoje se nega a reconhecer o golpe. Ao mesmo tempo, diante da carnificina nas ruas os EUA reduziram o 1,3 bilhão de dólares que dão anualmente ao exército egípcio desde 1979. Kerry minimizou: "Não foi uma punição, só queremos esperar por uma democratização do país". Mas os EUA já acreditaram em uma democratização do mundo árabe
http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=c1fcffd51eb7c38b7209a6106d66cc84&cod=12746