Por Fernando Soares Campos
Em 2005 escrevi artigo expondo as minhas impressões a respeito do caso "Cabo Anselmo" (Cabo Anselmo e os Neogolpistas). Revelei que não acreditava que o referido militar da Marinha de Guerra do Brasil "tornou-se" um "traidor" dos movimentos armados que se opunham ao golpe militar de 1964, somente após seu retorno do exílio, em 1970. Defendo a tese de que, desde o início de sua participação junto aos movimentos sindicais e estudantis, Cabo Anselmo era um elemento a serviço do CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Portanto, a meu ver, não houve a "virada", a "mudança de lado", conforme muitos defendem; mas, sim, a infiltração de um agente das forças repressoras.
Entre minhas observações, registrei:
"Há quem acredite que Cabo Anselmo mudou de lado quando voltou do exílio (Uruguai e Cuba) em 1970. Engano. Na verdade, ele era um agente infiltrado nos movimentos populares que precederam o golpe militar. Sua primeira prisão, em 64, no momento da investida dos militares contra um governo legal e democraticamente constituído, não passou de um jogo de cena dos serviços de informação. E sua fuga da cadeia não foi senão mais uma etapa desse jogo. Veja que eu cheguei a bordo do Submarino Bahia em janeiro de 1969, e, naquela ocasião, os mais antigos já o tratavam como traidor (à boca pequeníssima, claro). Também a sua prisão pela equipe do delegado Sérgio Fleury (não se sabe como ocorreu), pouco tempo depois de sua volta do "exílio", foi, sem dúvida, mais uma armação dos aparelhos repressores, a fim de legitimá-lo como membro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e viabilizar a continuação de seu papel como delator."
Assassinato do marinheiro inglês
Outra história que considero mal contada é a do assassinato do marinheiro inglês David A. Cuthberg, ocorrido em 5 de fevereiro de 1972. A autoria do atentado foi atribuída a grupos de esquerda que agiam na clandestinidade, movimentos de resistência ao regime militar: ALN, VAR-Palmares e PCBR.
Na época, em cima dos fatos, o jornal O Globo assim manifestou-se:
"Tinha dezenove anos o marinheiro inglês David A. Cuthberg que, na madrugada de sábado, tomou um táxi com um companheiro para conhecer o Rio, nos seus aspectos mais alegres. Ele aqui chegara como amigo, a bordo da flotilha que nos visita para comemorar os 150 anos de Independência do Brasil. Uma rajada de metralhadora tirou-lhe a vida, no táxi que se encontrava. Não teve tempo para perceber o que ocorria e, se percebesse, com certeza não poderia compreender. Um terrorista, de dentro de outro carro, apontara friamente a metralhadora antes de desenhar nas suas costas o fatal risco de balas, para, logo em seguida, completar a infâmia, despejando sobre o corpo, ainda palpitante, panfletos em que se mencionava a palavra liberdade. Com esse crime repulsivo, o terror quis apenas alcançar repercussão fora de nossas fronteiras para suas atividades, procurando dar-lhe significação de atentado político contra jovem inocente, em troca da publicação da notícia num jornal inglês. O terrorismo. cumpre, no Brasil, com crimes como esse, o destino inevitável dos movimentos a que faltam motivação real e consentimento de qualquer parcela da opinião pública: o de não ultrapassar os limites do simples banditismo, com que se exprime o alto grau de degeneração dessas reduzidas maltas de assassinos gratuitos."
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No site da ONG Grupo Terrorismo Nunca Mais (TERNUMA), o qual informa ter como patrono o ex-presidente general Emílio Garrastazu Médici, encontra-se a relação dos supostos autores do atentado que vitimou o marinheiro David A. Cuthberg:
"A ação criminosa, tachada como "justiçamento", foi praticada pelos seguintes terroristas, integrantes de uma frente formada por três organizações comunistas:
"Liberado da faina do navio H.M.S.Triumph, o marinheiro inglês David A. Cuthberg, de 19 anos, acompanhado de seu colega Paul Stoud, tomou, na Praça Mauá, o táxi dirigido por Antonio Melo, que os levaria para conhecer a mundialmente famosa praia de Copacabana. Eles não sabiam que, desde a chegada na praça, estavam sendo observados por oito terroristas, dissimulados dentro de dois carros.
"Na esquina da Avenida Rio Branco com Visconde de Inhaúma, à porta do Hotel São Francisco, um dos veículos emparelhou com o táxi e David foi atingido por uma rajada de metralhadora, disparada por Flávio Augusto Neves Leão de Salles. Imediatamente, Lígia Maria Salgado da Nóbrega jogou para dentro do táxi panfletos que falavam em vingança contra os ingleses por terem massacrado os irlandeses do norte. O "Comando da Frente" acabou com o sonho de David em conhecer Copacabana, 'justificando plenamente' seu ato pela solidariedade à luta do IRA contra os ingleses."
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Naquela época, eu era um frequentador das boates da Praça Mauá, zona portuária do Rio de Janeiro. Lembro-me do vaivém dos marinheiros ingleses nos bares e cabarés da área. Eram os mais arruaceiros marujos que conheci: brigavam entre si, subiam nas mesas, vomitavam, importunavam as mulheres, mijavam nos salões e gritavam muito. Geralmente eram vistos em grupos de cinco ou seis transitando entre a Cinelândia e a Praça Mauá. Cheguei a pensar que, a qualquer momento, um deles poderia tornar-se vítima dos cafetões que dão cobertura às suas protegidas. Creio que os gigolôs devem ter tido vontade de atacá-los, mas certamente não se atreveriam a tanto.
Também não acredito que oito "subversivos" procurados pela repressão fizessem plantão na Praça Mauá "dissimulados dentro de dois carros" e ainda realizassem um ato terrorista a uns 100 metros dali.
Quem conhece a Praça Mauá e a frequentou nos anos 70 sabe que aquele era o local menos apropriado para um grupo de "oito terroristas" efetuar um atentado desses. Além da mais temida delegacia de polícia do Rio de Janeiro, existem no local instalações da Marinha de Guerra. A área fervilhava de agentes do DOI/CODI, do CENIMAR, policiais civis e militares. Por que escolheriam um ambiente desses quando os marinheiros ingleses poderiam ser encontrados facilmente (andavam fardados) em várias regiões, da Zona Sul ao Centro da cidade? Por que teriam necessidade de ficar se expondo num lugar daqueles? (A área de estacionamento da Praça Mauá é relativamente pequena e geralmente era ocupada por viaturas da própria polícia.)
"Lígia Maria Salgado da Nóbrega jogou para dentro do táxi panfletos que falavam em vingança (...) 'justificando plenamente' seu ato pela solidariedade à luta do IRA contra os ingleses."
Deixar registrado uma justificativa para atos dessa natureza era, na época, uma prática dos esquadrões da morte. Os grupos de extermínio costumavam colocar ao lado de suas vítimas cartazes informando que estes foram executados por serem "ladrões", "estupradores", "assassinos" ou atuarem em qualquer outra atividade criminosa.
Parece que até hoje prevalece a versão oficial, que nunca me convenceu, por isso andei pesquisando a respeito do caso e encontrei essas matérias. Porém, sobre os acusados, só tive notícias de quatro deles: Antônio Carlos Nogueira Cabral, Getúlio de Oliveira Cabral, Aurora Maria Nascimento Furtado e Lígia Maria Salgado Nóbrega.
Militante da AÇÃO LIBERTADORA NACIONAL (ALN).
Morto aos 23 anos.
Estudante de Medicina na Universidade de São Paulo, era Presidente do Centro Acadêmico Osvaldo Cruz.
Segundo versão oficial, Antônio Carlos teria morrido, aos 25 anos, no Rio de Janeiro, em tiroteio ao resistir à prisão, na casa em que morava. Mas, segundo a vizinhança, não houve tiroteio algum. Associado a isto existe o fato de que seu caixão foi entregue à família lacrado e com ordens expressas de não abri-lo. O enterro de Antônio Carlos contou, ainda, com a presença ostensiva de policiais.
O corpo de Antônio Carlos entrou no IML pela guia n° 05 do DOPS, como desconhecido, morto ao reagir à prisão. Foi identificado por sua irmã, Maria Elizabeth Nanni, em 18 de abril de 1972 e entregue à família no dia 19.
A necrópsia foi assinada pelos Drs. Olympio Pereira da Silva e Jorge Nunes Amorim.
O óbito teve como declarante Álvaro Silva e também confirma a versão oficial de que foi morto em "aparelho subversivo" ao reagir à prisão. Entretanto, as fotos da perícia de local (n° 293/72), obtidas no Instituto Carlos Éboli/RJ, mostram escoriações nas mãos, no tórax e no rosto, faces e testa. Algumas são descritas na necrópsia, outras não.
Não se encontrou registro de ocorrência em delegacia policial.
Relatórios dos Ministérios da Marinha e Aeronáutica falam que teria morrido no dia 12 de abril de 1972, às 5:25 h na Rua Zizi, 115, Lins de Vasconcelos, após intenso tiroteio ao resistir à ordem de prisão.
(*1942 +1972) Militante do PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO REVOLUCIONÁRIO (PCBR).
Nasceu em 4 de abril de 1942, em Espera Feliz, Minas Gerais. Filho de Manoel D'Oliveira e Lindrosina Cabral de Souza.
Estudou o 1º grau na Escola Darcy Vargas, em Caxias (RJ), onde sua família passou a residir.
Casou-se com Maria de Lourdes, com quem teve dois filhos.
Ainda muito jovem iniciou sua militância na União da Juventude Comunista. Mais tarde incorporou-se ao Centro Pró-Melhoramentos de Caxias.
Filiou-se ao Sindicato dos Metalúrgicos onde participou das lutas de sua categoria profissional.
Foi dirigente regional do PCB e, posteriormente, dirigente nacional do PCBR.
Escriturário da Fábrica Nacional de Motores (FNM).
Morto sob torturas no dia 29 de dezembro de 1972, aos 31 anos, no DOI/CODI-RJ. Getúlio foi uma das vítimas do massacre que também vitimou Fernando Augusto da Fonseca, José Silton Pinheiro e José Bartolomeu Rodrigues de Souza.
Os Relatórios dos Ministérios da Marinha e da Aeronáutica dizem que "faleceu dia 29 de dezembro de 1972, no Rio de Janeiro em tiroteio com agentes de segurança..."
O relatório da Anistia Internacional diz que ele foi morto e colocado em um carro incendiado - sendo seu corpo parcialmente carbonizado, após ter sido torturado no DOI-CODI/RJ, juntamente com José Silton Pinheiro, José Bartolomeu Rodrigues de Souza e Fernando Augusto Valente da Fonseca.
No Arquivo do DOPS/PE encontrou-se em seu prontuário de n° 19.407 a informação de que "foi morto na Guanabara, em tiroteio com as Forças Armadas". Segundo informações contidas nesse documento, Getúlio foi servente do Ministério da Indústria e Comércio, tendo sido demitido por perseguição política no final do ano de 1964. Em 1971, estava com prisão preventiva decretada.
Aurora Maria Nascimento Furtado (*1946 + 1972)
Nasceu em 13 de junho de 1946 em São Paulo. Foi morta em 10 de novembro de 1972 no Rio de Janeiro. Era estudante de Psicologia da Universidade de S. Paulo). No dia 9 de novembro de 1972, durante uma batida policial executada pelo 2⁰ Setor de Vigilância Norte - Parada de Lucas-RJ - refugia-se num ônibus, onde foi aprisionada. Torturada na presença de populares, foi depois conduzida à Invernada de Olaria. Ali foi torturada com "pau-de-arara" e choques elétricos, e a "Coroa de Cristo" - torniquete que esmaga aos poucos o perímetro craniano. Esta ação foi executada em conjunto por policiais do DOI/CODI e do Esquadrão da Morte. Após as torturas, seu corpo, crivado de balas, foi abandonado na esquina das Ruas Adriano e Magalhães Couto, no bairro do Meier, no Rio de Janeiro. A necropsia, datada de 10 de novembro de 1972, foi assinada pelos médicos legistas Elias de Freitas e Salim Raphael Balassiano e atesta ferimentos penetrantes na cabeça com dilaceração cerebral. No dia 11 de novembro de 1972 foi reconhecida no IML/RJ por seu pai, que a traslada para São Paulo com ordens expressas para não abrir o caixão lacrado. Esta ordem não foi acatada pela família, que consegue realizar novo exame no IML, que demonstra inúmeros sinais de torturas, queimaduras, cortes profundos, hematomas, afundamento de crânio pelo uso da "coroa de Cristo", que foi a causa da morte. Não há referência à sua morte em relatórios dos três Ministérios militares. 1972
Lígia Maria Salgado Nóbrega (*1947 + 1972)
Nasceu em 30 de julho de 1947 em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi assassinada em 29 de março de 1972, durante tiroteio, juntamente com Maria Regina Lobo de Figueiredo e Antônio Marcos Oliveira, na casa em que se encontravam - Av. Suburbana, no 8988 - casa 72, Bairro Quintino, RJ - por meio de uma ação chefiada pelo DOI-CODI/RJ. No dia 30 de março de 1972 o corpo de Lígia chega ao IML/RJ sendo dada como desconhecida pela guia no 1 - DOPS/RJ. Foi reconhecida depois pelo irmão. As fotos e o laudo da perícia local no 1884/72 e a Ocorrência no 264/72 do Instituto de Criminalística Carlos Éboli /RJ afirma que o corpo estava baleado. A necropsia, assinada pelos médicos legistas Eduardo Bruno e Valdecir Tagliari confirmaram a versão oficial de tiroteio.
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Diante de tudo isso, não dá pra esquecer o caso Rio Centro. Também não esqueçamos o abortado caso Para-Sar, denunciado pelo comandante da tropa de elite da Aeronáutica, o capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, aos seus superiores. Segundo Sérgio Macaco (apelido do capitão), o brigadeiro João Paulo Burnier, chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica, havia tentado envolver a tropa num plano terrorista para explodir um gasômetro no Rio, matar cerca de 100 mil pessoas (esta ação criminosa seria atribuída aos grupos "terroristas") e lançar ao mar, de avião, os principais expoentes da oposição; entre eles, Juscelino e Lacerda, este que parecia ter-se arrependido de haver apoiado o golpe em 64. Sérgio e seu superior foram punidos pela denúncia. Burnier permaneceu na ativa.
Certamente isso não é tudo o que precisamos para esclarecer aquele obscuro acontecimento, entretanto nos fornece informações suficientes para continuar acreditando que aqueles jovens não foram os "justiceiros do IRA". O caso aponta mais para "a ira dos justiceiros".
Fontes de pesquisa
http://www.ternuma.com.br/terrorfev.htm
http://www.ternuma.com.br/marinheiro.htm
http://www.aldeiaplanetaria.com.br/Astro-Sintese/dossie.htm
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhe.asp?CodMortosDesaparecidos=105
http://www.torturanuncamais-rj.org.br/MDDetalhe.asp?CodMortosDesaparecidos=115
http://www.estadao.com.br/1964/ai1.htm