Beiradeiros e indígenas provam que a economia da floresta em pé é possível
VI Semana do Extrativismo da Terra do Meio reúne indígenas e ribeirinhos para dialogar sobre produção e gestão integrada de seu território, no Pará
"Não foi fácil chegar até aqui", disse Raimunda Rodrigues para a plateia de mais de 100 pessoas na sala do centro de formação Bethânia, em Altamira (PA).
Raimunda é beiradeira, como é conhecida a população que vivem nas beiras dos rios na Terra do Meio, e vive na localidade do Rio Novo, na Reserva Extrativista Rio Iriri. Ela, juntamente com indígenas e demais beiradeiros da região foram até a cidade para conversar cara a cara com empresas, representantes do governo e do terceiro setor sobre a economia da floresta.
Em sua sexta edição, realizada no início de junho, a Semana do Extrativismo (Semex) se consolidou como um momento chave para a construção de uma estratégia comum de produção e comercialização na região. Ali, os diferentes atores que compõem a cadeia dos produtos da sociobiodiversidade, fortalecem suas alianças e costuram contratos que valorizam a floresta, quem nela vive e produz: beiradeiros e indígenas.
Raimunda toma a palavra e reitera a importância do encontro. "Antes a gente não sabia nem para onde ia o nosso produto. É bom a empresa vir para cá, conhecer a nossa realidade e o que queremos para a nossa comunidade. Assim, leva a nossa história de vida, do nosso povo, para frente".
Francisco dos Santos, o Chicão, presidente da Associação dos Moradores da Reserva Extrativista do Rio Iriri (Amoreri) complementa: "As empresas valorizam não só os contratos e produtos, mas o território e as populações que estão ali".
Os beiradeiros e indígenas são protagonistas em uma articulação única que aproxima a produção das comunidades com mercados justos. Castanha, borracha, copaíba, cumaru, dentre outros, compõem uma cesta de 11 produtos florestais não madeireiros que são comercializados de forma transparente com a garantia de manter a floresta em pé.
Costurando a rede
As paredes da sala de reunião estão forradas de cartazes e mapas que mostram a imensidão da Terra do Meio. Um desses mapas salta aos olhos: mostra rostos espalhados ao longo do curso dos rios. São os coordenadores das cantinas, coletivos de beiradeiros, indígenas e pequenos agricultores organizados para a produção e comercialização de produtos dos povos da floresta.
Hoje são 27 cantinas, que fazem parte da Rede de Cantinas da Terra do Meio. Essa articulação conta com a participação de 15 associações indígenas e ribeirinhas, e cada cantina gerencia um capital de giro próprio que viabiliza a produção e comercialização de forma transparente e autônoma. A rede conta, ainda, com oito mini usinas de processamento de produtos florestais não madeireiros, que por meio de tecnologia e conhecimento tradicional, agregam mais valor aos produtos.
"Com o coletivo temos demanda, o que sozinho era muito difícil", atenta Kwazady Xipaya, cantineiro da aldeia Tukaya, Terra Indígena Xipaya. Desde 2013 seu povo passou a compor a rede, que começou com a participação dos beiradeiros e hoje conta com seis povos indígenas. "Conseguimos agregar produtos que produzimos nas nossas comunidades, de uma forma que a gente não perde o vínculo com nossa cultura", pontuou.
A marca "Vem do Xingu" agora representa todos os produtos da Rede de Cantinas. Com a garantia de contratos justos, e castanha, farinha de babaçu, óleo de copaíba, óleo de babaçu e sete outros produtos da floresta podem ser encontrados no Mercado de Pinheiros, em São Paulo, e nos mercados de Altamira.
Entre 2009 e 2018 foram comercializados R$ 3,75 milhões de reais, destes, R$ 2,08 milhões só em 2018. Em maio deste ano, capital de giro próprio da rede é de R$ 562.615,00. A rede de cantinas tem sete contratos firmados com empresas como a Mercur, Firmenich, Wickbold e prefeituras de municípios da região, além de mais nove parcerias comerciais em negociação.
"E no começo era só uma cantina, depois três, depois dez... Agora são 27! Para chegar aqui foi uma caminhada dura", lembra Rodrigo Junqueira, coordenador do programa Xingu do Instituto Socioambiental (ISA).
Ele resgata os números do início do processo da estruturação da cadeia dos produtos da floresta e o esforço que foi feito coletivamente para a construção de contratos seguros e transparentes. "A confiança não é emprestada, é construída no dia a dia. Precisamos que a sociedade entenda que valorizar e proteger a floresta não é um capricho, que a castanha que você vai consumir tem uma história", comentou.
Inovação
Prestes a completar 95 anos, a Mercur, empresa que produz produtos de borracha, é parceira da Rede de Cantinas desde o início e marca presença na Semex em todos os anos. Em 2018, comprou 6.476 quilos de borracha da Terra do Meio, entre borracha em bloco e já beneficiada, e garante continuar junto com a iniciativa nos próximos anos.
Além da aquisição de blocos e mantas de borracha, a empresa aposta na tecnologia para agregar mais valor aos produtos. Os coloridos sacos de chita pendurados na sala de reunião não são apenas decoração - ali o saber tradicional e a tecnologia da empresa se encontram.
Por meio da técnica do "encauchado", os beiradeiros selam o tecido com o leite da seringa tratado, tornando-o impermeável. Esse saber tradicional foi reconhecido pelo estado do Pará em 2016. Seu Edimilson Viana, beiradeiro da Resex Rio Xingu, foi um dos ganhadores do prêmio Manifestações Culturais pelo trabalho com os sacos encauchados. Mais do que homenagear o ofício, o prêmio reconhece o modo de vida beiradeiro e sua origem histórica, incentivando a continuidade da prática. [Saiba mais]
Agora a Mercur se junta aos beiradeiros no aprimoramento da técnica para desenvolvimento de novos produtos usando estruturas de beneficiamento dentro da floresta. "Não é só sangrar a borracha e mandar para a cidade. Queremos trazer possibilidades para que o seringueiro possa fazer produtos com maior valor agregado, que a pessoa que trabalha na floresta colhendo a borracha tenha uma vida mais digna", comenta Jorge Hoezel Neto, facilitador da Mercur.
Rede, substantivo feminino
Raimunda participa das Semanas do Extrativismo desde a primeira edição, mas neste ano se surpreendeu com uma novidade: o número de mulheres na sala aumentou. Lideranças femininas Arara, Xikrin, Parakanã, Xipaya e beiradeiras das Resex, juntamente com seus filhos, marcam presença na reunião - ouvindo atentamente e pegando o microfone para opinar.
"Eu sou mulher né", ri Francelma dos Santos, quando questionada sobre seu papel na Rede de Cantinas. Celma trabalha na oficina cabocla, na comunidade Boa Esperança, e conta que está aprendendo a administrar o capital de giro. "Eu tenho muita coisa para falar, só que na hora eu travo, mas para isso que eu estou andando mais, indo nas reuniões, uma hora eu chego lá".
Celma conta que ver Raimunda nas reuniões foi um grande incentivo, assim como o trabalho de Kokoté Xikrin, que coordena a mini usina de processamento de óleo de babaçu na Terra Indígena Trincheira Bacajá.
"Antes nosso trabalho não era reconhecido, mas agora as mulheres têm o direito de decidir, trabalhamos em conjunto. Isso é muito bom. Gosto muito de trabalhar assim, a gente se entende", conta. Em fevereiro deste ano as menire, como são conhecidas as mulheres do povo Xikrin, receberam menção honrosa na categoria Empreendimentos Rurais do prêmio "Saberes e Sabores 2018", oferecido pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) pelo trabalho feito com o babaçu. [Saiba mais]
Território ameaçado
Localizada entre os rios Xingu e Iriri, o mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio comporta uma sociobiodiversidade única: são 12 milhões de hectares, entre seis Terras Indígenas e oito Unidades de Conservação, moradas de centenas de famílias indígenas e beiradeiras.
A consolidação desse mosaico é recente, fruto da articulação dos povos que vivem no território e seus parceiros. O avanço do desmatamento, pressão de grandes empreendimentos como a hidrelétrica de Belo Monte, grilagem e roubo de madeira preocupa essas populações que dependem da floresta para sobreviver.
Em 2018 mais de 32 mil hectares, o equivalente a 40 milhões de árvores, foram desmatados na Terra do Meio e até maio deste ano, cerca de 10 mil hectares de florestas foram derrubados - número que tende a aumentar com a chegada da estação seca.
Um beiradeiro que não pode ser identificado por questões de segurança, relatou o aumento do roubo de madeira, entrada de garimpeiros e grileiros nas Resex da região. Segundo ele, a sensação é como se estivesse no início dos anos 2000, época em que a grilagem e a violência explodiram. "Sofremos muito para ter o nosso território. E hoje desse jeito aí, não pode deixar, ninguém pode abaixar a cabeça não. Porque se abaixar a cabeça... Lá está cheio [de invasores], estão entrando, entrando mesmo".
Para Rodrigo Junqueira, do ISA, o fortalecimento das cadeias dos produtos da floresta é essencial para garantir a integridade do território. "Se o território não estiver íntegro, protegido, cuidado, não tem economia da floresta. Mas se não tiver uma economia que valoriza essa floresta, não tem território".
Chicão, da Amoreri, olha para a plateia na sala e alerta. "Será que a gente vai continua nessa roda de conversa se o território continuar inseguro dessa maneira? Por que tem esse tanto de floresta na Amazônia? Porque têm indígenas, quilombolas e populações ribeirinhas preservando".
Os produtos têm o selo Origens Brasil®. A iniciativa é uma rede de articulação multissetorial entre produtores, empresas, e consumidores, concebida pelo Imaflora e ISA que visa mudar a forma convencional de se fazer negócios com produtos da sociobiodiversidade estimulando negócios mais éticos e transparentes. No final de junho, o selo ganhou o Prêmio Internacional de Inovação para a Alimentação e Agricultura Sustentáveis da ONU.
Isabel Harari
ISA
Foto: Kokoté, coodenadora do projeto menire, das Xikrin
https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/beiradeiros-e-indigenas-provam-que-a-economia-da-floresta-em-pe-e-possivel