Todos os povos têm o direito de decidir, livremente e sem constrangimentos, o seu enquadramento geopolítico e a forma de organização que entendam melhor satisfaça as suas necessidades coletivas.
1 - A vassalagem portuguesa face a Rajoy
Juncker, embora não goste de uma Europa que possa conter uns 90 estados considera que "a Europa não tem um papel a desempenhar no conflito evidente entre Barcelona e Madrid" e que "cabe aos espanhóis resolverem este problema". Trata-se de uma afirmação coerente, de não interferência num assunto interno de um estado-membro, embora seja também evidente que, depois de consensualizada uma eventual independência da Catalunha e esta vier a candidatar-se a membro da UE, a candidatura será certamente aceite.
Na mesma linha, Donald Tusk, após a declaração de independência da Catalunha de dia 27/10, refere que "Para a UE, nada mudou. A Espanha continua a ser a nossa única interlocutora". E acrescenta um apelo a Rajoy para escolher "a força do argumento e não o argumento da força". Um conselho que as subserviências portuguesas não quiseram ou puderam expressar.
Em 11 de outubro, na - até então - fase mais aguda da crise a propósito da questão catalã, o governo português mostrou-se prudente considerando o assunto como questão interna do estado espanhol, não deixando de evidenciar a sua subserviência a Rajoy que acabava de anunciar o recurso artº 155º (onde se prevê a suspensão da autonomia, entretanto concretizada). O governo português prescreve que "no quadro constitucional, sejam encontradas as soluções que assegurem a continuidade da Espanha unida, próspera, país irmão e parceira na União Europeia, na NATO". Quando é consensual que a Constituição de 1978 precisa de revisão, o governo Costa avançava uma opinião sobre uma questão interna que é a unidade das várias nações que integram o estado espanhol; o que, em outras circunstâncias, mereceria um repúdio de Madrid e que foi, naturalmente, ignorado em Barcelona, dada a irrelevância de quem produziu a opinião, no contexto que se conhece.
Precisamente, quando é a Constituição de 1978 que está em causa, a atitude de Costa em falar na defesa do quadro constitucional espanhol chama-se subserviência face ao Grande Irmão Rajoy; é um acto de vassalagem perante um estado que domina parte substantiva da economia portuguesa e que é a principal origem das importações e o primeiro comprador de bens portugueses. Nesse contexto de vassalagem, porque não oferecer-se Portugal para substituir a Catalunha como autonomia do reino bourbónico, assumindo o que é, em muito, a sua situação de facto?
A 27/10 António Costa reforça a subserviência face a Rajoy, contrariando as declarações prudentes de Juncker e Tusk, proclamando que a declaração de independência da Catalunha é "perturbação da vida política" espanhola, sobre a qual não tem que se manifestar. Na mesma linha, Marcelo Rebelo de Sousa, o actual figurante na função dessa inútil reminiscência monárquica denominada presidência da República comunicou que "O Presidente da República, tal como o Governo, reafirma o respeito pela unidade do Estado espanhol, incompatível com o reconhecimento da invocada declaração unilateral de independência da Catalunha, que, além de não respeitar a Constituição [espanhola], não contribui para a salvaguarda do Estado de direito democrático e o regular funcionamento das instituições".
Se ambos reconhecem tratar-se de um assunto específico do estado espanhol, não lhes compete meter o nariz no assunto; por razões bem mais elogiosas deveriam empertigar-se no caso de direitos humanos que assola os rohingyas. Como zelosos guardiões dos interesses pátrios deveriam ter em conta que o conflito na Catalunha não perturba a unidade patriótica em torno da geringonça, como aliás, também aconteceu com os fogos; e, por outro lado, também não se faz sentir grande pressão junto do governo por parte dos grupos de idiotas que reclamam a devolução de Olivença... mesmo que nunca se tenha ouvido um clamor dos oliventinos para o regresso à pátria lusitana. Em contrapartida, ninguém no estado espanhol, alguma vez terá comentado as quezílias entre o governo de Lisboa e o Jardim das delícias que floresceu na Madeira.
A unidade e o funcionamento da ordem constitucional espanhola é assunto dos espanhóis, do seu governo e das suas comunidades autonómicas, independentemente do que no exterior se pense sobre isso, como aliás frisado por Juncker e Tusk; e, nesse sentido, o da aplicação da constituição espanhola, António Costa e o seu fabuloso antecessor nunca manifestaram opinião e menos ainda, repúdio, sobre um caso de direitos humanos da autoria do governo Rajoy - a ley mordaza que também se mostra um bom negócio fiscal.
António Costa e Marcelo para emitirem algo de válido e digno sobre a questão catalã, teriam de referir que "A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos" e, não o contrário, como se assiste, na ação do neofranquista PP; a qual "deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto" (Declaração Universal dos Direitos do Homem artº 21º nº 3). Mais concretamente, teriam de referir que a independência ou não, da Catalunha só pode resultar da vontade dos seus cidadãos, muito acima das simpatias ou antipatias de todos os que não estão incorporados no cenário catalão.
E, para terminar, uma referência ao que Costa e Marcelo poderiam ter feito e não se atreveram a fazer. Fazendo jus à relação entre o povo português e os povos do estado espanhol, bem como às proximidades políticas e ideológicas entre as suas instituições governativas - diremos que se poderiam ter apresentado para intermediar o diálogo entre as duas partes do conflito centrado na Catalunha. De certo modo, compreende-se porque não o fizeram, pois andaram ambos, um a tentar apagar fogos e o outro, a dizer as banalidades habituais, entre abraços e beijos, aos quais acrescentou a importante declaração, nos Açores, sobre as suas capacidades... para coser botões; o que Cavaco não terá aprendido, porque tinha a consorte à disposição.
Costa e Marcelo, como homens de direito e de direita, conhecerão e saberão interpretar a Constituição que, aliás, têm a obrigação de cumprir.
Diz o artº 7º nº 2 que "Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos...". Ora o governo de Madrid mantém-se na lógica imperial que é apanágio da dinastia Bourbón e insiste em formas de humilhação e agressão sobre o povo catalão que até agora, tem privilegiado apenas formas pacíficas de reivindicar os seus direitos; e, no âmbito da agressão, vai permitindo (se não mesmo incentivando) a atuação de grupos fascistas não só na Catalunha, como em Madrid, Aragão e Valência, como num regresso aos gangs falangistas dos pais fundadores do PP;
O mesmo artigo constitucional, no seu nº 3, estatui que "Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão." Perante a realidade actual, Costa e Marcelo espezinham a Constituição que, aliás tem tido um tratamento deplorável por parte da classe política, a que se deve juntar o forte e primordial traço antidemocrático da própria Constituição e do modelo de representação naquela contido.
Os catalães são um povo e não uma bancada de fãs do futebol ou de um cantor na moda. Para que Marcelo e Costa emitam posições de subserviência ao hegemonismo repressivo de Madrid e, simultaneamente, interpretem bem a Constituição terão de dizer que não há povo catalão e que os milhões de independentistas são arruaceiros; se, na Catalunha, só há arruaceiros, não têm aplicação os conceitos seguintes insertos no artigo acima referido.
Se ambos os trintanários de serviço reconhecem existir um povo catalão e se lhe retiram implicitamente, o direito à autodeterminação, independência e o direito de resistir à opressão, então não cumprem a Constituição. E aí entra mais uma blindagem constitucional que favorece o regime cleptocrático vigente; o Tribunal Constitucional não tem iniciativas, é apenas um analista do que lhe é colocado pela classe política. O desrespeito pela Constituição adormece tranquilo no ninho da serpente;
Assim sendo, a atuação servil e oportunista da dupla que se tem evidenciado em posições favoráveis ao governo de Madrid e ao sublime Rajoy, só pode encarar-se como de subserviência ditada pela situação de dependência económica de Portugal, muito mais pobre do que Espanha, no seu conjunto. Em 2015, Espanha acolhia 29% das exportações portuguesas e apenas 10% das suas exportações se destinavam a Portugal, num contexto de grande desequilíbrio financeiro pois as exportações portuguesas valiam $ 3800 M e as importações de Espanha $ 7200). E, por outro lado há uma dependência financeira, tendo em conta o papel dos bancos espanhóis em Portugal, o país onde existem mais filiais de empresas espanholas (335 que empregam cerca de 37000 trabalhadores).
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